Capítulo 206 - O sangue da Dimensão da Morte
A Dimensão Sombria chegou primeiro.
Harley Ginsu sentiu antes de compreender: os Cobradores que orbitavam cautelosas ao redor da zona temporal recuaram. Os fragmentos da criatura que ele havia dividido se dissolveram. Eram resquícios de sua luta anterior que ainda pairavam na realidade na forma de cicatrizes, agora sendo varridos por força muito maior.
O ar mudou. Não esfriou nem esquentou. Simplesmente deixou de obedecer à ordem conhecida. A densidade que pressionava sua pele há séculos tornou-se outra coisa: mais pesada, mais úmida e carregada de presságio que fazia cada terminação nervosa gritar alerta primitivo.
Então veio a pressão.
Não física. Existencial. Era a sensação de que a própria realidade, diante de autoridade maior, se curvava em submissão. Os três sóis imóveis pulsaram uma única vez, sincronizados, reconhecendo a presença de algo que transcendia suas jurisdições dimensionais.
A areia marrom-escura, resquício de sangue cristalizado no tempo, escurecia aos pés de Harley de maneira diferente desta vez. Não era transformação, era conclusão.
Partícula por partícula, grão por grão, a areia simplesmente… terminava. Deixava de ser areia e tornava-se ausência pura, transmitindo a sensação de que cada grão vivera até o fim e aceitara o nada como desfecho.
O processo avançava em ondas concêntricas. Marrom morrendo para cinza. Cinza expirando em negro. Negro dissolvendo-se em algo que não tinha nome: a cor que restava quando todas as possibilidades haviam sido esgotadas.
O jovem Ginsu reconheceu a assinatura dimensional. Já a havia sentido quando o bracelete explodiu e o arrastou para além do véu, direto para a Dimensão da Morte, onde aprendera o peso de quem governa o fim. Era uma presença que não precisava de precursores: quando aparecia, era porque havia decidido olhar de perto.
A conexão viva das Linhas do Destino retorceu-se em sua mente, pulsando numa frequência que transformava os ossos em ressonância dolorosa. E, tal qual sempre ocorria, o conhecimento o alcançou: brutal, inevitável e acompanhado do custo.
Atração por oposição dimensional.
Uma Verdade universal manifestando-se em tempo real. Caos e Finalidade, Sombra e Morte, mutabilidade e permanência: forças opostas que não podiam existir separadas por muito tempo. Quanto mais Harley usava poder sombrio, mais intensamente a Dimensão da Morte era puxada em sua direção.
E ele havia usado muito poder.
A mancha escura na areia alcançou os limites da bolha temporal.
Então começou a subir.
Não tal qual líquido escalando parede, e sim inevitabilidade dissolvendo ilusão. A zona temporal não era física, ainda assim a energia da Dimensão da Morte a reduzia à mera condição mortal: algo com começo, meio e, inevitavelmente, fim.
A deterioração era quase gentil. Carinhosa, até. Reconhecia lentamente o esforço daquela formação temporal, consolidada por séculos, mas deixava claro que seu tempo chegara ao fim.
Harley assistiu sua prisão começar a apodrecer.
Fissuras apareceram primeiro. Não eram rachaduras violentas, e sim linhas de dissolução elegante. Eram lugares onde o fluxo congelado do tempo simplesmente concordava em parar de resistir. A estase reconhecia autoridade maior e se rendia com dignidade.
Através das fissuras, sensações há muito esquecidas retornaram: o peso de seu próprio corpo, a textura áspera da areia sob suas botas, o calor dos três sóis batendo em sua pele.
E então, inesperadamente, algo viscoso tocou seus tornozelos.
Harley olhou para baixo.
Sangue. Quente. Vivo. Lambendo seus pés, tal qual animal faminto reconhecendo dono há muito ausente. O líquido suspirava ocasionalmente, liberando vapores que carregavam cheiro inconfundível de ferro e decomposição.
Não era sangue dele. Não era sangue de ninguém específico. Era todo o sangue vindo do passado, cada gota de morte condensada em massa viscosa que agora o e o reivindicava como aquele que lhe dera origem.
Dor.
Cinco séculos de tensão muscular acumulada explodiram através de suas terminações nervosas. Embora Harley não conseguisse gritar, sua garganta ainda estava parcialmente congelada, e cada fibra de seu corpo convulsionou em agonia silenciosa.
O desespero intensificou a Energia Sombria em suas veias. O braço negro pulsou com fome renovada, respondendo ao sofrimento com o único idioma que conhecia: mais poder, mais caos e mais transformação.
E isso atraiu a Dimensão da Morte com força ainda maior.
A deterioração acelerou. Pedaços inteiros da bolha temporal começaram a se desprender, dissolvendo-se em névoa cinza que era imediatamente devorada pela escuridão rastejante. Mas não era destruição: era permissão.
A Dimensão da Morte não explodia coisas. Ela simplesmente as convencia de que haviam vivido tempo suficiente.
O sangue ao redor de seus tornozelos começou a borbulhar. O ar tornou-se sufocante. Cada respiração trazia partículas de algo pútrido que se instalava nos pulmões de Harley. O próprio ambiente estava sendo contaminado pela presença da Dimensão da Morte, transformando deserto temporal em algo que pertencia a ela.
Cada célula parecia gritar, empurrando contra a opressão, preparando-se para reivindicar algum controle sobre o próprio corpo.
O jovem Ginsu conseguiu mover os dedos da mão direita. Depois o pulso. O antebraço. A cada fragmento de liberdade recuperada, mais da bolha se desfazia, criando ciclo de feedback que acelerava exponencialmente.
Até que finalmente, inevitavelmente, a barreira colapsou.
Harley caiu de joelhos no sangue que agora cobria completamente a areia negra. O impacto mandou ondas de dor através de pernas que não se moviam há meio milênio. O líquido viscoso se agarrou em seus pés com dedos invisíveis, criando som de sucção nauseante que ecoava no silêncio absoluto.
Estava livre.
Estava em agonia.
E o céu havia mudado.
Onde antes havia três sóis imóveis, agora havia apenas substância escura e sem forma. Sem estrelas, sem lua, sem qualquer fonte de luz identificável. E ainda assim, Harley conseguia ver. Uma vez que das próprias sombras brotava uma iluminação, uma claridade fantasmagórica que expunha exatamente o que preferia permanecer oculto.
Instável, a massa pulsava. Buracos se abriam e fechavam em sua superfície, revelando fragmentos do deserto além: pedaços de realidade espiando através da invasão dimensional.
O Cobrador que testava a barreira sentiu a mudança.
Atacou.
Não mergulhou através da brecha. Estendeu-se: um tentáculo de escuridão viva, cortando o ar com a precisão de um chicote dimensional. Um ataque veio na velocidade do desespero, um raio negro projetando-se contra o rosto.
Harley jogou o corpo para o lado.
O tentáculo passou centímetros de sua orelha esquerda, o frio dimensional deixando rastro de dormência que queimava sua pele. Sentiu o vento do golpe. A fome daquilo deslizou sobre sua consciência, insistente e grudenta tal qual mão pegajosa.
Mas o ataque não podia cruzar completamente.
Quando a ponta do tentáculo bateu na barreira invisível, ricocheteou com violência. O sibilo que escapou da criatura parecia traduzir a frustração de ser repelida. Ela recuou da zona deteriorada, confusa diante da força que não esperava.
Então o buraco que o ataque havia aberto começou a fechar.
Não naturalmente. Não pela zona temporal se autorrecuperando. E sim pela Dimensão da Morte selando ativamente a fissura: sangue ao redor dos pés de Harley borbulhou com intensidade renovada, vapores subindo e solidificando no ar, preenchendo a rachadura como carne cicatrizando ferida.
A mensagem era clara: este território agora tinha um novo dono. E ela não toleraria invasores.
A voz veio então.
Não de lugar específico. De todos os lugares. Do sangue borbulhante, do ar sufocante, da massa negra que substituíra o céu e das próprias sombras que dançavam nas bordas da percepção. A Dimensão da Morte falava através de sua invasão.
“NEXUS.”
Não era pergunta. Era designação. Classificação. Reconhecimento. E continuou, ecoando através de cada partícula do ambiente transformado:
“VOCÊ ME CHAMOU?”

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