Capítulo 75 - Verdades obscuras
“As verdades obscuras são os alicerces invisíveis do mundo. Para compreendê-las, um explorador deve estar disposto a sacrificar sua visão confortável da realidade e abraçar a escuridão.”
— Discursos do Grande Explorador Zandar, Vol. básico.
A cabeça de sua mãe curvou-se, lágrimas copiosas banhando seu rosto em soluços angustiantes. Mesmo nesse momento de profunda emoção, a barreira de energia mágica persistia, intransponível, mantendo mãe e filho separados. Era um lembrete cruel de que viver em um mundo implacável exigia manter a desconfiança erguida contra tudo e todos.
Desde tenra idade, Harley absorveu a dura lição de que só podia contar consigo mesmo. Os alicerces que deveriam oferecer segurança, como pais, familiares, tribo e conhecidos, haviam desaparecido precocemente ou sido destruídos. Essa realidade moldou-o, forjando uma mentalidade independente e resistente, onde as decepções e perdas se tornaram companheiras constantes em sua jornada.
Enquanto Harley debatia internamente sobre qual caminho seguir diante da situação inusitada e complexa, sua mãe persistia em lágrimas.
— Eu não tive culpa! Eu não tive culpa! Eu não tive culpa! — repetia ela cada vez mais ininteligível com as palavras emergindo entre soluços desesperados.
— GRRRAAAHHH!
Subitamente, o rugido do dragão ecoou mais uma vez, desencadeando um mergulho furioso e veloz que surpreendeu a todos. A sua velocidade alucinante manifestou-se a partir de uma altura imprevisível, precipitando-se em direção ao solo com uma rapidez impressionante. Suas presas afiadas cravaram-se no corpo da mãe de Harley, elevando-a abruptamente no ar antes de voar para longe.
Em um movimento coordenado, das garras com o giro repentino de sua cabeça, o dragão, movendo-se com uma agilidade surpreendente, engoliu o corpo da sua mãe de uma só vez. O ato brutal e súbito transformou o cenário num vislumbre assustador, enquanto o corpo desaparecia na garganta da fera colossal.
O rugido gutural do dragão ecoou, ecoando a consumação da tragédia diante dos olhos atônitos do jovem.
Uma leve névoa verde marcava a retirada do dragão ferido. Gotas do líquido verde, remanescentes da última batalha entre eles, jorravam do ferimento, esculpindo uma trilha de poças no solo à medida que o dragão se afastava em uma velocidade vertiginosa.
O inusitado ataque do dragão deixou Harley inicialmente atordoado, paralisado diante da cena cruel. A barreira que ele ergueu, entre ele e sua mãe, desmoronou, refletindo um algo quebrado dentro dele. A oportunidade de descobrir a verdade desapareceu, e, junto com a barreira, algo se quebrou também.
Agora, incapaz de desvendar os mistérios que envolviam sua mãe, ele se viu perdido em um mar de emoções. A dor da perda se misturava à culpa, à indecisão que o havia paralisado por tanto tempo. A realidade cruel se impôs, e o que restava era o eco vazio do que poderia ter sido.
O dragão, ferido e traído, deixou um último ataque traiçoeiro antes de desaparecer no horizonte. Harley, absorvido pela tristeza e desamparo, questionava a validade de sua dor e ressentimento. De que valia agora sua mágoa quando a esperança, mesmo que ínfima, fora aniquilada?
A vida, como sempre, se mostrava implacável. Não dava tempo aos indecisos, aos medrosos. Ele se culpava pela hesitação, pela falta de ação diante das circunstâncias. Em meio à tragédia, percebia que a verdade agora era inatingível. A busca por respostas transformou-se em cinzas, e o que restava eram os destroços de uma vida marcada pela crueldade e pela dor.
Ele se culpava, mas a culpa não trazia consolo. Sua mãe, sem margem para dúvidas ou esperanças, estava definitivamente morta.
A realidade, por mais cruel que fosse, exigia que Harley enfrentasse a dor de frente, mesmo que isso significasse confrontar sua própria inércia diante do destino implacável. O lamento ecoava, não apenas pelo que fora perdido, mas pela oportunidade de ter conhecido a verdade que escapou entre as garras do dragão.
Isabella, solta ao chão com a chegada da mãe de Harley, permanecia próxima dele. Com uma destreza surpreendente, desferiu um golpe rápido que pegou o jovem desprevenido. O impacto cortante foi profundo, abrindo um ferimento marcante em seu braço.
Surpreso pela agressividade de sua ex-noiva, ele fitou o corte, observando o sangue escorrer. Nesse instante, reforçou em sua mente o compromisso inabalável de que, em um mundo cruel, a guarda não podia ser baixada. No entanto, esse compromisso não amenizava a dor do golpe físico ou a surpresa pela traição de alguém tão próximo.
No mundo implacável em que vivia, Harley compreendia que não havia espaço para sentimentos como gratidão, confiança e mesmo para paralisias emocionais. Não havia espaço para sentir, chorar e lamentar. A vida continuava, implacável como sempre, e qualquer pausa poderia resultar em mais feridas e dor.
Viver era ser submetido a pancadas constantes e ininterruptas da vida. E a cada pancada, a exigência era de que ele se erguesse e reagisse. A reflexão rápida sobre a natureza cruel da existência o impulsionava a se manter alerta, mesmo diante da ingratidão de Isabella.
— Você é um monstro egoísta! — brandou sua ex-noiva, após o ataque inicial, revelando sua mágoa — Você me abandonou como abandonou a sua mãe agora.
As acusações ecoaram no ar enquanto ela continuava a investir contra Harley, brandindo sua adaga com ferocidade. Ele se defendia e esquivava-se dos ataques, tentando compreender a origem da fúria que estava sendo direcionada a ele.
— Você sabia que um dragão como Sergio também devoraria minha vida e meu clã. Você acabou com minha vida!
As palavras de Isabella cortavam o ar junto com a lâmina de sua adaga.
— Não vai fugir novamente? Não vai abandonar tudo e todos como sempre faz?
Harley, impactado pela intensidade do ataque e pelas acusações que não faziam sentido, questionava-se sobre o que poderia ter feito no futuro para despertar tamanha hostilidade, mesmo enquanto se esquivava habilmente dos golpes desferidos contra ele.
Agora, a expressão anterior de Isabella fazia mais sentido para o jovem. Agora a súbita agressão de sua ex-noiva ganhava um significado mais profundo e compreensivo. No confronto anterior contra as criaturas e os magos, ela não o atacara simplesmente para proteger seu novo marido, mas sim por nutrir um ódio profundo e pré-existente.
A compreensão desta revelação mergulhava Harley em desespero, pois ele se via, de alguma maneira, responsável por eventos futuros que ainda desconhecia por completo.
As palavras acusatórias de Isabella cortavam mais fundo que a própria adaga. Cada movimento de esquiva tornava-se uma dança frenética, onde o impacto físico da adaga era evitado, mas as palavras perfuravam como lâminas afiadas de acusação e ódio. A cada frase proferida, mais cortes invisíveis se formavam, criando uma teia de feridas emocionais que se estendiam além do simples embate físico.
Para Harley, a verdade parecia se esconder nos cantos escuros do tempo, desafiando a compreensão e a modificação da realidade. Envolto na perplexidade, o jovem debatia-se para entender como suas ações presentes poderiam moldar eventos futuros de forma tão dramática.
A incerteza pairava sobre ele, questionando se era possível alterar o curso do futuro a partir do presente. A realidade, por sua vez, revelava-se cruel, mostrando que, mesmo diante de um destino imprevisível, as escolhas do presente eram fios entrelaçados com consequências que ecoavam através do tempo.
Ferido não apenas fisicamente pelo ataque, mas também pelas implicações de seu próprio papel em um destino que se desdobrava diante de seus olhos, ele sentia-se cada vez mais acuado pelo peso do desconhecido.
A luta prosseguia, com Harley defendendo-se dos ataques de Isabella enquanto tentava entender o que poderia ter causado tanta animosidade. A dor física do ferimento em seu braço era agora acompanhada pela dor emocional de ser acusado injustamente por algo que desconhecia.
O futuro parecia um enigma ameaçador, e ele se via preso em uma teia de eventos desconhecidos e relacionamentos fragmentados.
A narrativa emocional continuava a se desdobrar, deixando Harley e Isabella presos em um ciclo de confrontos e revelações. O mundo implacável ao redor deles continuava a exigir respostas e a forçá-los a enfrentar verdades obscuras, enquanto o destino tecia seu intricado padrão sobre as vidas entrelaçadas.
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