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    “A realidade é uma construção frágil, composta por escolhas necessárias e individuais, constantemente ameaçadas pelas forças de outras realidades. Defender essa construção é o dever de cada Mestre Arcano, pois a única outra opção é permitir que o caos prevaleça e destrua tudo.”

    Sussurros das Sombras IV,  transmissão oral do Clã Adaga Arcana.


    Desconcertado, Harley se via agora envolto pelo frescor e pela exuberância da natureza, algo que parecia saído diretamente de um conto de fadas. Cada folha, cada raio de luz que penetrava timidamente pela folhagem, era um testemunho tangível dessa metamorfose inexplicável. 

    O ranger suave das folhas sob seus pés, substituindo o silêncio impiedoso do deserto, era como uma melodia que anunciava uma nova fase. Entretanto, a deslumbrante visão desse cenário vibrante não conseguia silenciar uma dúvida imponente que crescia a cada momento:

    — Quem é você? O que deseja de mim?

    — Quem mais eu poderia ser? Sou sua ex-noiva.

    Harley observava com crescente desconfiança. Por mais que Isabella viesse de uma linha temporal diferente, por mais desafiadoras que fossem suas experiências, ela não poderia perder a essência que singulariza cada indivíduo. 

    Agora, para o jovem, sua ex-noiva era uma pessoa completamente distinta que habitava o corpo da Isabella mais velha. Contudo, o cerne, aquilo que verdadeiramente define alguém, não poderia ser imitado ou substituído. Ele não conseguia articular se era um conceito enraizado em seu clã de alma ou outra perspectiva, mas algo dentro dela não era genuíno.

    — Não! Você não é!

    — Você é muito desconfiado! Com essa atitude, como nós, mulheres, poderemos enganar e tirar vantagem de vocês, homens? — Isabella sorriu com mais intensidade.

    A figura exuberante de sua ex-noiva se alterou mais uma vez diante dele. Ela desvaneceu-se e assumiu uma nova forma. Sua mãe retornou e estava novamente à sua frente. A mulher agora exibia um olhar profundo, capaz de penetrar a alma de Harley. Uma vez mais, a sensação inexplicável de familiaridade o envolveu, como se estivesse diante da verdadeira essência materna.

    — Quem é você? O que deseja de mim? — o jovem repetiu a pergunta, apertando a adaga em suas mãos, símbolo de sua constante desconfiança.

    — Sou sua mãe. Não me culpe por testá-lo. Apenas queria verificar se estava preparado para conhecer a verdade!

    A mulher olhou com mais determinação e continuou:

    — Resolvi acreditar que meu filho tem o poder de mudar minha realidade. Ainda estou presa, e dessa forma, o poder que usei para aparecer aqui está próximo de retornar. Agora que sei que você não é fraco, posso deixar de ser uma ilusão ou uma morta. Saber da minha existência é uma informação que colocará metade do império querendo apagar essa verdade, apagar você e todos que sonharem em compartilhar dela.

    — Quem é você? O que deseja de mim? — Harley repetiu a pergunta, sem oferecer espaço para explicações ou oportunidades de persuasão. Sua crença era firme, e assim, essa era a sua verdade.

    A figura, antes a imagem maternal, mudou-se mais uma vez, revelando Lysandra, a menina que ele negligenciou. O olhar de reprovação nos olhos de Lysandra atingiu Harley como uma lâmina afiada. A culpa, a lembrança de sua promessa não cumprida, pairava sobre ele como uma sombra implacável. Ainda que fosse uma manipulação, as emoções que ele sentia eram reais.

    A adaga, agora mais do que nunca, parecia pesar em suas mãos. Sem hesitação, Harley a fincou em sua própria coxa, um gesto brutal que trouxe uma mistura de dor física e emocional. O sangue escorreu, tingindo a terra sob seus pés. Era uma tentativa desesperada de romper o controle das ilusões, de afirmar sua própria vontade.

    Entre a dor e o sangue, o jovem se recompôs. Uma muralha imaginária cercou seu coração, bloqueando as investidas emocionais das figuras ilusórias. A floresta, por um instante, pareceu piscar, como se uma falha na projeção revelasse a verdade subjacente. E então, num piscar de olhos, Harley se viu novamente no deserto abrasador, sob os três sóis ardentes.

    Ao seu lado, uma presença formada por magia tomava forma. Uma entidade etérea e misteriosa, emanando um poder que arrepiava sua pele. Era como se a magia do deserto, personificada, estivesse ali para testá-lo. A visão era surreal, mas ele, agora revestido de uma resistência renovada, encarou a figura com determinação.

    — O que você quer de mim? — indagou Harley, a voz firme cortando o silêncio que se estabeleceu ao seu redor.

    — Uma pessoa teimosa. O pior tipo de homem. Mas confesso que é o meu tipo de homem preferido. Menos miolos na cabeça e mais força. Uau!

    A aparente influência da determinação e crença de Harley começou a manifestar-se na realidade ao seu redor. O ambiente oscilava entre diferentes formas, como se estivesse respondendo à força das convicções do próprio jovem.

    Subitamente, o ser feito de energia mágica, transmutou-se novamente, desta vez revelando a figura imponente de um dragão. As escamas reluziam com cores iridescentes, e as asas se estendiam majestosamente. Era uma visão magnífica, mas Harley permaneceu firme, ciente de que aquilo era apenas mais uma ilusão criada para testá-lo.

    A figura do dragão dominava o espaço com imponência avassaladora. Cada detalhe, desde as garras afiadas até a cauda escamosa, fora produzido para evocar terror. Entretanto, Harley permaneceu inabalável, resistindo à tentativa de manipulação mental pela ilusão, que buscava evocar o medo e a reverência que um dragão poderia impor. 

    A dor persistente em sua coxa, causada pela adaga, servia como um lembrete constante e um escudo impenetrável contra qualquer artifício destinado a testar sua resistência. Ele concentrava-se com determinação, recusando-se a sucumbir às sensações que a ilusão tentava impor.

    A cada movimento da criatura mágica, Harley podia sentir a presença da magia desconhecida tentando se infiltrar nele, tentando manipular suas emoções e desejos mais profundos. 

    Cada rugido do dragão reverberava em sua mente como um eco ameaçador, provocando uma tempestade de sentimentos contraditórios. A ilusão buscava explorar seus medos mais profundos, amplificando-os para minar sua determinação.

    Mais uma vez, o jovem aprofundou a adaga na ferida, buscando, pela dor, um vínculo mais forte com a realidade. A paisagem ao redor começou a oscilar, como se as ilusões estivessem lutando para manter o controle. 

    O deserto escaldante mais uma vez transformou-se em uma floresta,  e o dragão assumiu uma forma distorcida e grotesca. As tentativas de manipulação da realidade intensificaram-se, testando a força mental de Harley.

    Cada pedaço da ilusão parecia real, o mundo parecia fragmentado e cada pedaço perceptivo provocava sensações intensas que iam desde o calor abrasador do deserto até a frieza da presença do ser distorcido. Era como se ele estivesse imerso em um pesadelo vívido, onde suas percepções eram distorcidas e moldadas pelo capricho da magia manipuladora.

    No entanto, Harley conhecia a natureza ilusória do que estava experimentando. Ele lutava contra as emoções avassaladoras, reconhecendo que aquelas sensações eram apenas construções imaginárias, uma tentativa de minar sua resistência e controle sobre a própria mente.

    A luta interna do jovem se desenrolava enquanto ele enfrentava seus medos mais profundos. A magia tentava plantar sementes de dúvida, alimentando-se da incerteza e do temor que emergiam da escuridão de sua própria psique.

    Harley permaneceu firme; nenhum dragão, nenhuma derrota, nenhum outro inimigo ou emoção conseguiu desestabilizar a ligação que ele estabeleceu, através da dor auto infligida, com a determinação de não se deixar manipular ou enganar pelas ilusões.

    Em um momento crucial, Harley se ergueu contra a tormenta de emoções manipuladas. Como uma tempestade que desvanece diante da luz, as ilusões começaram a dissipar-se. O dragão, antes imponente, desfez-se em fragmentos de magia, e a paisagem vacilou antes de se recompor.

    Em seguida, a figura se transformou novamente, assumindo a forma de um anão. Esse ser diminuto tinha uma barba longa e emaranhada, vestindo roupas robustas. Era um contraste notável em relação ao dragão, mas Harley não se deixou iludir. Observou atentamente cada detalhe, tentando decifrar as intenções por trás dessas metamorfoses.

    Harley não conseguia acreditar que a verdadeira forma daquele inimigo fosse a de um anão simpático ou de um dragão majestoso. Como poderia confiar em algo que parecia tão ilusório e contraditório? No entanto, ele sabia que focar nesses pensamentos irrelevantes poderia ser perigoso diante do perigo iminente que se apresentava.

    Enquanto a ilusão do anão persistia diante dele, Harley preferiu direcionar sua atenção para o que realmente importava: enfrentar o inimigo que estava manipulando essas manifestações. Ele apertou ainda mais a adaga em suas mãos, preparando-se para o confronto que se aproximava.

    O inimigo, que agora assumiu a forma de um anão, lançou um olhar irônico na direção de Harley. 

    — A verdade muitas vezes é tão flexível quanto a mente que a interpreta. Mas deixemos as brincadeiras de lado. Você é mais resistente do que eu imaginava.

    As palavras do inimigo soaram como uma ameaça velada, ecoando na mente de Harley. Ele sabia que estava diante de uma força formidável, capaz de manipular a própria realidade para confundi-lo e testar sua resistência.

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