Capítulo 96 - Pacto com o demônio
“No universo dos pactos, o preço sempre deve ser pago, e o devedor raramente sai ileso. Cada acordo com o desconhecido carrega consigo as marcas da incerteza e do sacrifício.”
— Discursos do Grande Explorador Zandar, Vol. sobre magia.
Harley, mais uma vez carregando uma mulher ferida, refletia sobre a natureza de seus próprios motivos. Sentia como se estivesse preso em um ciclo interminável, uma repetição que ele não conseguia evitar.
Agora, em seus ombros não estava Isabella, a menina que fora acordada entres suas famílias para ser sua esposa, mas Ivana, uma desconhecida que, há pouco tempo, representava uma ameaça letal.
A ironia da situação não lhe escapava. Ivana, uma mulher envolta em mistérios, com intenções ainda obscuras, agora precisava desesperadamente dele. O contraste entre Isabella e Ivana não podia ser ignorado.
O jovem se questionava se, lá no fundo, ele se via como um guerreiro nobre, cumprindo um papel que, em outro contexto, teria sido destinado à sua antiga ex-noiva. As memórias de Isabella eram dolorosas, e ele sabia que sua morte havia deixado cicatrizes que nunca seriam curadas.
Porém, ao virar a cabeça para olhar para o rosto de Ivana, não conseguia evitar o desejo de agir diferente desta vez, como se quisesse, de algum modo, compensar os erros do passado.
Contudo, a dúvida logo dissipou-se ao relembrar os eventos recentes. Ivana, apesar de ter sido inicialmente hostil, havia desempenhado um papel crucial ao salvá-lo novamente, agora do ataque invisível do guepardo sombrio.
A criatura, com seus movimentos precisos e quase imperceptíveis, havia sido uma ameaça que ele não conseguiu prever. A intervenção de Ivana fora vital para sua sobrevivência, e isso transformava tudo.
Enquanto caminhava carregando a mulher de olhos puxados, Harley sentia o peso não apenas físico, mas também emocional daquela situação.
Ele não podia ignorar a ironia do destino que o colocava novamente em posição de salvador, mas algo em seu íntimo clamava por uma mudança de atitude. Ele tinha uma dívida para com Ivana, uma dívida que era muito mais profunda do que uma simples questão de honra.
As emoções do jovem eram um turbilhão. Gratidão, culpa, medo e esperança se misturavam de uma forma que ele nunca tinha experimentado antes. Harley sabia que não podia recompensar um ato de bondade com indiferença e egoísmo.
A ligação entre eles, forjada em meio ao caos, transcendeu as aparências iniciais, tornando-se algo mais palpável. Embora não soubesse dizer se era confiança ou algo próximo disso, ele não podia se dar ao luxo de abandoná-la agora.
O caminho diante dele parecia interminável, a paisagem desolada e hostil refletindo sua própria incerteza. A luminosidade dos três sóis castigava o terreno, e cada passo parecia mais árduo do que o anterior.
Ivana repousava em suas costas, o corpo inerte, com os braços em volta de seu pescoço. Ela estava inconsciente, e o calor sufocante tornava a situação ainda mais desesperadora.
Foi então que algo chamou a atenção de Harley. Seus olhos fixaram-se no braço da mulher, onde uma mancha preta começava a se expandir lentamente, se alastrando pela pele pálida de Ivana como um veneno vivo.
Preocupado, ele parou e, com o máximo de cuidado, desceu a mulher de suas costas, pousando-a suavemente sobre o solo. Ele puxou a manga da vestimenta dela, revelando a origem daquela mancha. O tecido estava úmido e, por baixo, a carne parecia estar corroendo-se de dentro para fora.
— Que tipo de veneno é esse…? — murmurou Harley, os olhos arregalados, enquanto tentava avaliar a gravidade da situação.
Antes que ele pudesse fazer algo, Ivana abriu os olhos, com uma expressão entre a dor e a provocação. Um riso descontraído escapou de seus lábios, embora estivesse enfraquecida.
— Não resistiu? Resolveu finalmente aproveitar-se de uma mulher indefesa como eu? — ela brincou, a voz rouca e quase um sussurro.
O jovem ficou momentaneamente desconcertado. As palavras dela o pegaram de surpresa, e ele tentou explicar apressadamente:
— Não, não! Eu estava… só estava vendo essa mancha em…
Ivana interrompeu suas palavras colocando a mão suavemente em seus lábios, fazendo um gesto para que ele se calasse. Seus olhos, agora abertos, estavam marcados pela dor, mas também havia uma serenidade inesperada ali.
— Fui atingida — disse ela, com dificuldade — É um veneno mortal. Não há cura. Eu sabia o risco, e sabia que este seria o meu fim. Queria apenas aproveitar esses últimos momentos sem estar sozinha.
Harley sentiu o chão sumir debaixo de si. Ele abriu a boca para falar, mas as palavras não saíram. Finalmente, ele conseguiu dizer, a voz embargada:
— Por que não me contou antes? Poderíamos… !
Ivana sorriu levemente, com uma expressão triste. Seus olhos estavam fixos nele, analisando cada reação, como se quisesse memorizar cada detalhe daquele momento. Ela suspirou, dolorosamente.
— Não há nada que possa ser feito, Harley. O veneno já tomou conta. E eu… eu fui egoísta até agora. Quis ter alguém ao meu lado, mesmo sabendo que isso estava te colocando em risco. Mas agora chegou a hora de você seguir sozinho.
Harley segurou a mão dela com firmeza, sua expressão revelando uma determinação que ele raramente deixava transparecer.
— Não — ele respondeu, sua voz firme, quase feroz — Não vou te abandonar. Deve haver alguma solução, alguém que possa nos ajudar. Não posso simplesmente deixá-la aqui. Nós lutamos juntos contra tudo e vamos lutar contra isso. Vamos encontrar um caminho.
Ivana fechou os olhos por um instante, deixando uma lágrima escapar pelo canto. Ela sabia que a insistência dele era sincera, que ele estava disposto a lutar por ela, mas também sabia o custo disso. Com um último esforço, ela olhou para ele, e sorrindo disse:
— Todos os homens são fáceis de enganar! E você é o mais bobo de todos! — murmurou ela, enquanto uma nova dor a tomava — É o fim! O que enfrentamos é muito maior do que você imagina. A Guardiã Sombria não deixará nenhum de nós escapar. E você, permanecendo aqui, só estará prolongando sua própria agonia.
Harley balançou a cabeça, uma expressão de frustração estampada em seu rosto. Ele sentia que estava perdendo algo precioso e que não havia nada que pudesse fazer para mudar aquele destino cruel.
— Você acha que eu tenho medo da morte? — ele perguntou — Não tenho mais nada a perder, Ivana. Eu já perdi tudo uma vez e sobrevivi. Não vou perder de novo.
— Então me prometa uma coisa… — disse Ivana, a respiração começando a falhar — Se não houver mais como lutar, se perceber que realmente não há mais esperança, você vai continuar… sem mim. Você precisa viver. Precisa ser mais forte do que qualquer sombra que possa te perseguir.
Harley fechou os olhos, tentando controlar as lágrimas que ameaçavam cair. Ele sabia que ela estava certa, mas aceitar aquilo era como abrir mão de uma parte de si mesmo. No entanto, a força no olhar dela não deixava espaço para protestos.
— Eu prometo — disse ele, finalmente, com a voz falha — Mas saiba que vou fazer tudo ao meu alcance para salvar você antes disso.
Mas Ivana tinha desmaiado antes e não tinha ouvido. O tempo parecia parar ao redor dos dois. O calor opressivo, o ar pesado, o perigo que os rodeava – tudo isso desapareceu, dando lugar a um silêncio que falava mais do que qualquer palavra.
Harley sentiu a respiração de Ivana enfraquecer, e a angústia tomou conta de seu peito. Ele sabia que precisava ser rápido, mas também sabia que estava lidando contra algo implacável. Com um último olhar para o horizonte árido, ele levantou-se, pegando Ivana nos ombros mais uma vez.
Ele não sabia para onde ir, não sabia se havia alguma esperança, mas a única certeza que tinha era que não a deixaria para trás. Não importava o quão desesperadora fosse a situação, ele continuaria lutando.
E enquanto as sombras continuassem a persegui-los, ele continuaria carregando o peso de suas promessas, como um escudo contra a escuridão que ameaçava devorar a ambos.
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