Capítulo 99 - No coração das trevas
“As trevas não são apenas a ausência de luz, mas um reino próprio onde as leis do mundo material se dobram e se distorcem. Aventurar-se nesse domínio é desafiar o próprio tecido da realidade.”
— Discursos do Grande Explorador Zandar, Vol. sobre possíveis dimensões.
O choque ecoou através de Harley, reverberando em cada fibra de seu ser ao perceber que o lugar onde antes repousava seu braço agora era apenas um vazio surpreendente.
A separação abrupta de seu membro do corpo atingiu-o com uma intensidade devastadora. A lembrança da sensação de seu próprio braço desprendendo-se, uma dança grotesca de sombras e dor, causou-lhe uma paralisia momentânea.
Harley neste curto intervalo de tempo descobriu, da maneira mais difícil, que por mais que imaginasse estar preparado, a realidade se revelou brutalmente diferente. No momento em que seu braço se separou abruptamente do corpo, a ilusão de controle desmoronou.
Não havia preparação que o guiasse através do turbilhão de emoções que o envolvia. O horror da vida podia ser teorizado, antecipado, mas nunca plenamente assimilado até o momento da tragédia.
O corpo de Harley respondia ao trauma com uma cascata de reações físicas e emocionais. Sua pele tornava-se pálida, uma resposta visceral ao choque que o atingia.
Gotas de suor brotavam de sua testa. A respiração tornava-se rápida, irregular, um reflexo do tumulto interno que o consumia. Cada pulsação ecoava na ausência do membro perdido, um eco doloroso do que era.
E indiferente ao estado do jovem, a grande horda de sombras, antes um horizonte distante, agora avançava rapidamente.
O cerco se fechava, e ele, em seu estado de choque, mal percebia a proximidade iminente. A escuridão ameaçadora se agigantava à medida que as sombras convergiam, como se respondendo ao ritual acelerado de Ivana.
Antes que a escuridão o envolvesse por completo, Harley finalmente vislumbrou a horda de sombras cerrando o cerco, uma massa sinistra de criaturas ávidas por sua presença.
Contudo, mesmo diante do crescente perigo, seu estado de paralisia persistia, e a apatia continuava a dominá-lo. O pulsar acelerado mesclava-se ao ruído agudo em seus ouvidos, eco de sua própria consciência vacilante.
Enquanto Harley debatia-se para manter a consciência, Ivana entregava-se a um frenesi sombrio. A cada sorvo do sangue que escorria do braço decepado, ela não apenas absorvia a vida dele, mas também uma energia mágica oculta que permeava o ar.
Uma mordida em sua pele e a ingestão voraz da carne do braço amputado completavam a cena, selando um pacto sangrento. Palavras ininteligíveis fluíam de seus lábios, ecoando no vazio, como uma língua ancestral que transcende a compreensão humana.
Com a mão impregnada de sangue, a mulher de olhos puxados desenhava uma estrela em seu próprio peito. O sangue formava padrões intrincados, revelando um simbolismo obscuro.
A estrela se materializava, um portal para o desconhecido. Em um gesto tão ritualístico quanto sinistro, Ivana replicava a marca no peito do jovem sem reação pralisado pelo choque da perda. A carne, agora marcada, exalava uma energia sombria, uma ligação que transcendia os limites da compreensão.
A escuridão, como um amante faminto, começou a se insinuar em torno dos dois, uma força atraída pela tragédia e pela magia entrelaçadas. O ambiente estava enegrecendo à medida que as sombras eram sugadas para o epicentro do ritual macabro.
Toda a escuridão ao redor dos dois foi atraída, como se uma força invisível os convocasse. O ambiente encolhia diante da convergência das sombras. Uma sensação de dissipação e desvanecimento envolvia Harley e Ivana. A realidade tornava-se turva, distorcendo-se.
A dissolução da luz revelou um espetáculo derradeiro. Ivana, com sua fisionomia transfigurada pela absorção do poder, e o jovem que perdia muito sangue era como uma pintura borrada, uma última imagem antes da completa desaparição.
E antes que desaparecesse por completo, um último som os acompanhou: um grito raivoso.
— Ivana, esse corpo me pertence. Vou te caçar, você nunca estará livre de mim!
O silêncio, uma cortina densa, preencheu o vácuo deixado por sua ausência. O ambiente, privado da presença dos dois, respirou um suspiro pesado, como se a própria realidade absorvesse o acontecimento.
O que restou foi apenas o eco fantasmagórico de uma história que se desdobrava em meio às sombras.
Após um tempo insondável, o jovem despertou de maneira peculiar, sem sentir a dor que poderia esperar. A escuridão desse novo mundo se revelava para Harley como um canal insondável, um abismo que atravessava todas as coisas e podia eclipsar tudo em seu caminho.
Nesse vácuo sombrio, não havia vontade, não havia desejo; apenas um equilíbrio sinistro entre as diferentes tonalidades de escuridão que se contrapunham, como uma teia escura sobreposta por outras teias, cada vez mais pretas até que as tonalidades se fundissem na plenitude, engolindo todas as outras.
Cada teia, entretanto, possuía um buraco, uma abertura que lhe concedia acesso a uma nova tonalidade de escuridão.
Enquanto abria e fechava os olhos novamente, Harley se deparava com uma escuridão tão densa que o fazia questionar se estava cego ou se fora lançado em um abismo maior do que aquele que percebia com os olhos fechados.
Ele procurou seu braço, mas de maneira estranha, percebia que não tinha mais um corpo tangível; tornara-se uma mancha escura, uma parte intrínseca da própria escuridão que o envolvia.
A realidade se desdobrava de maneira surreal, e Harley, perdido nesse abismo sombrio, indagava sobre o destino ao qual Ivana o lançara. Perguntava-se se se tornara uma invocação, um servo desprovido de controle sobre sua própria vontade.
A reflexão atormentava o jovem, imerso em uma crise existencial que o deixava perturbado.
Se não estava morto, para qual tipo de mundo a mulher de olhos puxados o arrastara? Qual destino obscuro ela lhe reservara? Será que a servidão ou prisão seria preferível à morte certa que o aguardava no confronto com os lacaios da Guardiã Sombria?
A incerteza pairava no ar, entrelaçada com a escuridão que o envolvia. Em meio à sombra densa, Harley ponderava sobre as escolhas que o conduziram a esse ponto, as decisões que o fizeram baixar a guarda diante desta mulher.
O jovem reduzido a uma massa indescritível de escuro compreendia, amargamente, que eram nos momentos de crise que se revelava a verdadeira índole das pessoas. Pensava nas ações de Ivana, nos perigos passados juntos.
Contudo, agora, na escuridão desconhecida, ele se via confrontado com a possibilidade de ter se tornado apenas um peão nas mãos daquela que um dia ele estendeu a mão.
O pensamento aprofundava-se, e Harley reconhecia a dura realidade da ingratidão e traição. Baixara a guarda para alguém cujos interesses se mostraram, no final, opostos aos seus.
Naquele vácuo de sombras, percebia que a confiança provisória depositada em Ivana fora uma vulnerabilidade explorada. A sensação de exposição diante do maior inimigo, a traição, o assombrava na escuridão.
O jovem, sentindo-se como uma entidade sombria e sem formas definidas, de maneira peculiar, experimentava uma conexão interna com todo aquele lugar, percebendo e compreendendo os perigos que o cercavam.
Provavelmente, aqui as perdas seriam em uma escala maior do que apenas um braço. Ele percebia que, nesta escuridão, não havia espaço para lamentações, e uma mente frágil poderia ceder, perdendo sua identidade ao ser arrastada por tonalidades mais intensas. Nesse processo, a consciência de si mesma se desvaneceria, levando consigo a essência que o tornava um ser vivo.
Ela percebia que neste mundo de escuridão não existia espaço para indecisões. A crise, agora, desvendava sua natureza impiedosa, expondo as verdadeiras intenções de um mundo que tendia a forçar a indiferenciação.
Harley, imerso no manto sombrio, compreendia que os laços entre as pessoas, assim como a intersecção entre as tonalidades, podiam tornar-se frágeis quando a luz se extinguia, deixando apenas as sombras da verdade.
A traição de Ivana, assim como a presença neste mundo de sombras, representava uma lição amarga sobre o preço da confiança e a fragilidade das alianças em um universo imerso na escuridão.
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