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    “A fronteira entre o possível e o impossível é desenhada pela nossa vontade. No limite, o impossível se curva à determinação do espírito.” 

    Sussurros das Sombras XXXI, transmissão oral do Clã Adaga Arcana.


    A energia que constituía Harley estava completamente despedaçada. Sua essência, antes coesa, havia sido violentamente arrancada. Ele sentia que não restava mais quase nada de si mesmo, uma sensação de vazio cada vez mais presente, como se estivesse sendo apagado de forma gradual, mas implacável. 

    Cada partícula que compunha seu ser vibrava em desespero, buscando se recompor, mas a própria ideia de voltar ao que era parecia uma fantasia distante.

    O impacto que o atingiu não só o dividiu em pedaços, mas eliminou momentaneamente qualquer chance de reabsorção. A energia que se soltou foi dispersa de tal forma que não poderia mais ser recuperada em um curto espaço de tempo. 

    Ele estava isolado, como se cada parte de seu ser fosse atirada a um ponto distante, inalcançável. Seus pensamentos eram fragmentados, seus instintos desorientados. 

    A entidade sombria, o inimigo que o atacara com tamanho ódio, permanecia como uma presença ameaçadora, sua raiva alimentando-se do desejo de aniquilar completamente Harley, apagá-lo de toda e qualquer existência. 

    Aquela forma sombria não desejava apenas vitória; desejava erradicar toda lembrança de desonra que Harley lhe trouxe. 

    Arremessado brutalmente contra o solo escuro, Harley ficou paralisado. Tentava, com esforço, recuperar os sentidos, mas o impacto fora devastador. 

    Sua mente lutava para organizar os pensamentos, e seu corpo constituído de massa sombria, agora reduzido a fragmentos de energia, mal respondia. 

    Por um breve momento, instigado pelo reflexo da sobrevivência, Harley tentou absorver a energia sombria ao redor. Era um ato desesperado, um reflexo de quem lutava contra o inevitável, buscando se agarrar a qualquer fagulha de poder que pudesse lhe dar vantagem. 

    Mas, ao fazer isso, percebeu o quanto sua capacidade de absorção estava reduzida. A energia fluía para ele em quantidades insignificantes, como um punhado de areia tentando preencher um buraco infinito.

    Era inútil. A energia sombria ao seu redor não apenas se recusava a ser absorvida, mas parecia rechaçá-lo, como se ele não fosse mais digno de recuperá-la. Ele estava se esvaindo, e, com essa percepção, veio um desespero profundo. 

    Sua mente oscilava entre a esperança fugidia e o crescente desânimo. Harley sentia-se como uma folha levada pelo vento, incapaz de controlar sua própria queda ou controlar o seu destino.

    A força de sua vontade, que outrora o sustentara em batalhas ferozes, estava se dissipando. Sentia finalmente que o peso do cansaço rastejava lentamente para dentro de sua alma, tentando subjugá-lo. 

    “Desistir!?” — a palavra reverberava em sua mente com uma insistência assustadora.

    E, ainda assim, algo dentro dele se recusava a ceder. Mesmo quando sua própria sobrevivência parecia ser um fardo, ele sabia que não podia simplesmente entregar-se. 

    “De que adiantaria prolongar o sofrimento, quando a morte era o único desfecho possível?” — sua mente se debatia com essa questão. 

    Cada segundo que passava parecia uma eternidade, uma tortura interminável entre o viver e o deixar de existir.

    Harley estava consciente de que continuar era apenas adiar o inevitável, um jogo cruel com fim previsível. A ideia de escapar do sofrimento através da morte o tentava, mas ele resistia. 

    “Desistir?” — novamente a palavra ecoava em sua mente, mas logo veio a resposta firme — “Isso não faz parte de quem eu sou.”

    Mesmo com as chances todas contra ele, Harley sempre se orgulhou de ser um lutador, e não seria agora, à beira da destruição, que ele deixaria de ser quem era.

    A entidade sombria queria aproveitar seu momento de maior fraqueza. O tempo que Harley usava para se recompor estava acabando, e o inimigo não mostrava nenhum sinal de hesitação. 

    A presença que irradiava ódio aumentou sua velocidade, movendo-se com mais fúria. A convicção de que o próximo ataque seria o último era palpável para todos que assistiam como para os dois combatentes. 

    Diante da aproximação da entidade, Harley sentiu algo inesperado: um riso. Fraco, rouco, mas crescente. Começou com um pequeno murmúrio e, então, ganhou força.

    — Hah… hahah…

    Era um riso descontrolado, sem motivo claro, mas completamente fora de lugar. Algo em sua mente havia se quebrado, e, num lampejo de absurdo, ele se viu como alguém tentando encher um abismo infinito com meros grãos de areia. 

    A imagem surreal das próprias ações o fez rir ainda mais alto, até que sua gargalhada ecoava pelo vazio ao redor, preenchendo o silêncio com um som tão perdido quanto ele próprio.

    — Bwahahahahahaha!

    O som de sua risada parecia preencher o ar com uma loucura desesperada. As entidades ao redor, incluindo a que o enfrentava, pararam por um momento, observando-o com perplexidade. Aquilo era um espetáculo grotesco. Para os outros seres presentes, era como se Harley tivesse perdido completamente a razão.

    — Idiota! — era a impressão compartilhada por todas as entidades observadoras. !

    Todos os presentes compartilhavam entendiam que o jovem forasteiro estava apenas adiando o inevitável. Seu ato desesperado era considerado indigno de um verdadeiro guerreiro sombrio, que deveria compreender a hora de parar e reconhecer a supremacia da força sobre todas as coisas.

    — Grãos de areia! — exclamava o jovem Ginsu entre gargalhadas alheio e indiferente à percepção dominante sobre si — Tudo isso por grãos de areia…

    O riso descontrolado se intensificava, e Harley, ao mesmo tempo em que ria, experimentava uma sensação estranha de liberdade. Sem medo. Pela primeira vez, a noção de medo havia desaparecido completamente. 

    Ele se sentia livre de todas as amarras, das expectativas, da dor, da própria vida. A morte, que antes parecia uma sombra inevitável, agora era um fim aceitável, quase reconfortante.

    Seus pensamentos mudaram. Se a morte estava próxima, então ele a receberia de braços abertos, mas não sem antes oferecer uma última resistência. Não para vencer, mas para deixar sua marca, mesmo que fosse insignificante. 

    Concentrando o que restava de sua força de vontade, Harley começou a dividir sua própria energia.

    Era um processo estranho, quase intuitivo. Sua essência física, antes única, começou a se fragmentar. A cada novo pedaço, ele sentia uma leveza, como se estivesse se livrando de uma carga insuportável. 

    Uma, duas, vinte e duas massas de energia surgiram dele, cada uma menor que a anterior, como partículas pulsantes que formavam a totalidade de seu ser. A divisão continuava, e Harley se multiplicava, criando e se transformando em uma miríade de pequenas esferas negras espalhadas por todo o espaço.

    Essas partículas numerosas, tomavam o espaço por completo, constituindo o que era, em sua essência, a totalidade de Harley. Ele havia se dispersado, dividido em centenas de pedaços. A entidade sombria, assistindo àquilo, lançou um grito de fúria:

    — Grrr…Idiota! Isso não vai te salvar! Está apenas adiando o inevitável!

    Mas Harley já não ouvia. Ele havia transcendido a dor, o medo e o desespero. Agora, dividido em incontáveis partes que flutuavam. 

    “Grãos de areia!” — repetia para si, enquanto sua consciência lentamente se dissolvia no infinito.

    O fim estava próximo, mas Harley já não se importava. A entidade sombria avançava com fúria cega, ansiosa por consumar sua destruição, mas Harley não oferecia resistência. Ele se sentia leve, liberto do fardo de lutar contra o inevitável.

    Enquanto seus pedaços de energia sombria aguardavam o choque final, algo curioso começou a acontecer. Cada uma das partículas parecia vibrar com uma frequência diferente, emitindo uma luz fraca, mas persistente. Harley estava em todas elas, em cada fragmento, em cada grão de sua própria existência espalhada.

    A entidade, movida pela raiva, lançou-se sobre os fragmentos dispersos, esperando destruí-los de uma vez por todas. Mas, ao tentar consumir a energia restante de Harley, foi surpreendida. 

    As partículas de Harley, ao invés de desaparecer, se multiplicavam ainda mais, escapando do impacto com a criatura como areia escoando por fendas invisíveis. O que era para ser um fim definitivo tornou-se uma multiplicação incontrolável.

    As gargalhadas de Harley, agora ecoando de cada pequeno fragmento, voltava a ressoar por todo o espaço. Ele não estava mais rindo de desespero, mas de uma nova compreensão. A entidade sombria poderia tentar destruí-lo mil vezes, mas ele sempre encontraria um modo de resistir.

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