Capítulo 118 - Confrontando o desconhecido
“Cada encontro com o desconhecido é uma porta para o crescimento. É ao atravessarmos essas fronteiras que encontramos a verdadeira essência que reflete não apenas o que somos, mas o que podemos nos tornar.”
— Fragmentos da Libertação, de Nostradamus.
Harley foi lançado para fora da dimensão do Mundo Sombrio, sendo arrancado por uma força invisível e arremessado para um lugar incerto.
Despertou sobre um leito desconhecido, o corpo ainda pesado e a mente enevoada. Tudo ao redor parecia estranho, impregnado com um silêncio desconcertante que o fazia questionar onde, ou quando, realmente estava.
O jovem em sua visão inicial percebeu que estava em um espaço pequeno. As paredes eram feitas de uma madeira branca, dando uma sensação de pureza ao ambiente.
A cama onde ele jazia, ocupando quase todo o espaço do quarto, era menor do que ele estava acostumado, seus pés pendendo para fora da estrutura. Ao redor, apenas uma porta e uma cômoda, esta última exibindo frascos de vidro com líquidos coloridos, adicionando uma atmosfera misteriosa ao ambiente.
Uma percepção peculiar tomava conta de Harley enquanto ele tentava se orientar. O ambiente não estava parado; ao contrário, ele sentia uma leve movimentação, dando-lhe a sensação de que estava sendo transportado de um lugar para outro.
Antes que pudesse assimilar completamente sua situação, uma jovem magra adentrou o espaço.
Ela parecia ser alguns anos mais nova que ele, com traços comuns, mas algumas características chamavam atenção: grandes orelhas de abano, nariz pontiagudo e olhos vesgos. Além disso, seu cabelo era azul e estava cortado bem curto.
Harley, em sua própria escala subjetiva de beleza, a classificava como a mulher mais desinteressante que já havia visto. Não era desagradável, mas tampouco atraente aos seus olhos.
A jovem usava um vestido surrado e um colar de cipó trançado em volta do pescoço, um detalhe que acrescentava um toque peculiar à sua aparência. Com um sorriso nos lábios e uma expressão curiosa, ela exclamou:
— Doravan! O estranho finalmente acordou — aproximando-se da cama, ela dirigiu a palavra a Harley — seja bem-vindo ao mundo dos vivos!
Após uma risada descontraída em decorrência da expressão feia que o jovem tinha dado, ela continuou:
— Desculpe pela brincadeira. Você ficou muitos dias desacordado. Eu pensei que estava perdido para sempre.
Doravan, um velho homem alto e magro, de barba por fazer, adentrou o cômodo vestindo um macacão surrado. Harley fitou-o com curiosidade, percebendo imediatamente que tanto ele quanto a jovem possuíam um estilo de vestimenta completamente diferente do que estava acostumado.
As roupas de ambos pareciam estranhas e inúteis para o jovem, dando a impressão de que foram deliberadamente concebidas para restringir seus movimentos e não oferecer qualquer tipo de proteção
No entanto, o velho não parecia se importar com o olhar de estranheza de Harley.
— Você está bem? — perguntou o homem.
Harley respondeu que sim, e Doravan continuou:
— Você entendeu o que Aurora disse? Você consegue me entender?
Harley assentiu inicialmente, achando a pergunta um tanto óbvia até perceber instantaneamente a preocupação do homem. Nesse momento, ele começou a refletir sobre a diversidade dos mundos e a possibilidade de encontrar indivíduos ou povos com formas de comunicação incomuns.
Essa ideia nunca havia cruzado sua mente antes, talvez porque, em toda a sua experiência de vida, ele ainda não tivesse se deparado com uma realidade tão diferente.
Interrompendo os pensamentos de Harley, Aurora perguntou animadamente:
— Você é um descendente dos Demônios Sombrios?
O jovem sentiu-se desconcertado pela pergunta, mais uma vez surpreendido. Ele se perguntava o que poderia ter levado aqueles estranhos a pensarem assim. Teriam eles de alguma forma percebido a energia sombria que o trouxera até ali?
De repente, uma revelação o atingiu: Seu braço esquerdo ainda estava ligado a seu corpo. Seu braço esquerdo que fora decapitado estava perfeitamente curado. Apenas outro detalhe o espantava. O seu braço esquerdo estava tomado por uma tonalidade negra, evidenciando a presença da magia sombria.
Durante sua estadia no mundo sombrio, ele havia relegado essa grande perda ao fundo de suas preocupações. Porém, agora, as memórias dolorosas retornavam com força total.
Ele recordou vividamente o momento em que Ivana o decepara durante a fuga do mundo sombrio, o choque, a dor, o espanto, e a visão de seu próprio membro caído no chão, envolto em sangue.
Ao tocar seu braço, Harley percebeu que ele era sólido, áspero, uma cópia bem parecida com todas as características de seu braço perdido. Esquecendo-se de seus anfitriões, começou a experimentar seu braço, analisando sua força, mobilidade e resistência ao toque.
Doravan, visivelmente feliz, retirou um pequeno instrumento com lentes sobrepostas e aproximou-o do olho direito enquanto observava Harley. Este, após todas as tensões vividas, sorriu pela primeira vez em muito tempo.
— Algo errado com seu braço? — perguntou Doravan, também com um sorriso no rosto.
Harley, decidido a manter o segredo sobre o mundo sombrio, respondeu que não.
— É uma grande surpresa para mim me deparar com um descendente de uma raça considerada extinta ou perdida — disse o velho homem alto — os demônios sombrios estão mais para lendas e histórias inventadas do que realidade. Quer dizer, até agora.
O jovem, diante das palavras do homem e da constituição de seu braço, começou a entender a confusão de interpretação da realidade feita por Doravan.
— Sim — Harley respondeu, numa mentira que parecia necessária naquele momento — no mundo onde vivia sozinho, fui envolvido por uma espécie de força e acabei vindo parar aqui. Mas, afinal, onde estou?
— Onde mais poderíamos estar? Na Vanguarda Autônoma! — respondeu Aurora prontamente.
Sua resposta despertou uma nova onda de perguntas na mente de Harley:
— Onde? — ele perguntou involuntariamente, mostrando sua confusão.
Doravan interveio, visivelmente contente com a oportunidade de explicar, uma vez que adorava refletir sobre as coisas e compartilhar seu conhecimento:
— Vou explicar de um jeito simples — começou o velho — aqui é um entreposto de conhecimento e desenvolvimento. Somos uma comunidade de cientistas, estudiosos e magos. Vivemos para criar e desenvolver prosperidade e avanço. A autoridade aqui era exercida pelo conhecimento.
Harley ouviu atentamente, mesmo que ainda estivesse confuso sobre onde diabos ele foi parar. Doravan então pediu que ele se levantasse e o acompanhasse até o lado de fora do quarto. Antes, no entanto, ele lembrou de algo importante e perguntou:
— Desculpe pela minha empolgação. Acho que, depois de todo esse tempo desacordado, você vai precisar repor suas energias. Deve estar com fome ou sede — ele apontou para os frascos na cômoda — pode consumir. Esses líquidos vão repor todas as suas energias por dois dias, então não vai precisar de mais nada durante esse tempo.
Harley já havia percebido há muito tempo que não precisava mais se alimentar, nutrindo-se da energia mágica de sua adaga negra. Ele recordou-se da antiga mochila, agora abandonada, que costumava carregar alimentos e suprimentos, um luxo que não necessitava mais depois da adaga negra.
Decidindo manter seu segredo, ele aceitou a oferta de Doravan e bebeu os líquidos, escondendo a verdade por trás de sua necessidade aparente. Ele o fez sem muita preocupação, confiante de que, se seus anfitriões tivessem a intenção de prejudicá-lo, teriam feito enquanto ele estava desacordado.
Antes de deixarem o cômodo, o velho entregou uma malha e dois pares de luvas para Harley, expressando preocupação:
— Vista isso! É melhor manter seu segredo só para você. Recomendo que nunca revele isso para ninguém.
Ele aceitou os itens com gratidão, agradecendo a atenção de Doravan e assegurando que já tinha a intenção de manter seu segredo bem guardado. No entanto, enquanto se vestia, uma sensação de inquietação se instalou em sua mente.
Harley refletiu sobre os potenciais desafios que poderia encontrar em um mundo governado pelo conhecimento. A revelação de sua energia sombria, ele percebeu, poderia despertar cobiças e desencadear problemas indesejados.
Ele se indagava se essa revelação tinha o potencial de reduzi-lo a pouco mais que uma cobaia para experimentos, ou se imporia restrições.
Deixando essas preocupações registradas em sua mente para agir com cautela, ele logo se juntou aos outros para sair do cômodo. Sua surpresa foi imensa ao perceber que estavam em uma espécie de carroça, puxada por dois animais extraordinários.
Essas criaturas lembravam uma estranha fusão entre lagartos e elefantes, com arreios presos à carroça. Enquanto um dos animais era azul, o outro era cinza.
Observando os animais, Harley estranhamente sentiu que estava olhando mais para um objeto do que para seres vivos. Ele percebeu uma certa rigidez e falta de instinto nos movimentos dos animais, algo incomum para as criaturas que conhecia. Reflexivo, concluiu que cada mundo tinha suas características únicas.
A carroça seguia por uma planície sem fim, que parecia opaca, dando a impressão de ser um vitral separando o mundo de um abismo infinito. Era a sensação de estarem suspensos por uma camada translúcida, a base do mundo, separando-os de um abismo negro abaixo.
Harley observou maravilhado, tentando compreender a estrutura única daquele mundo.
Doravan percebeu a admiração do jovem e decidiu compartilhar um pouco de conhecimento:
— Nosso mundo foi construído sobre essa barreira que nos protege da queda no grande abismo — explicou ele — Dizem as lendas que os grandes clãs demoníacos viviam lá embaixo. Ninguém sabe ao certo.
— Você quer dizer que nunca ninguém explorou esse abismo? — perguntou Harley.
— Ninguém que eu saiba jamais conseguiu ultrapassar essa camada. É intransponível.
Ele ponderou sobre as palavras de Doravan, refletindo sobre a vastidão e os mistérios daquele novo mundo desconhecido. E querendo evitar complicações desnecessárias, decidiu mudar de assunto perguntando:
— Para onde estávamos indo?
Aurora, que observava Harley com um sorriso curioso, respondeu prontamente:
— Para a Academia de Produção Mágica — ampliando ainda mais o sorriso a garota completou — Para o melhor departamento e menos prestigiado da Academia de Magia e Ciência.
Harley assentiu, absorvendo as informações enquanto a carroça avançava pela planície interminável.
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