Capítulo 06 - Segredos sob a penumbra
“A liberdade é o horizonte inalcançável que todos almejam. A persistência é o vento que enche nossas velas e nos leva adiante, apesar das tempestades.”
— Discursos do Grande Explorador Zandar, Vol. básico.
— Ginsu! — A voz de Thalassa ecoou suavemente pela Biblioteca das Marés, como se temesse despertar forças adormecidas além de Harley.
Era um chamado que reverberava, como se a própria água ao redor da ilha carregasse seu som, o entrelaçando com os segredos ancestrais daquela ilha conhecida como o Continente das Terras Esquecidas.
Harley sentiu o leve toque em seu ombro, uma carícia tão sutil que o trouxe de volta à realidade de forma lenta. Seus olhos se abriram pesadamente, ainda carregados pelo cansaço que parecia prender seus músculos em um torpor profundo.
A biblioteca, com suas prateleiras altas e corredores intermináveis, estava mergulhada em uma penumbra que acentuava o silêncio, como se o tempo ali fluísse de forma diferente. Ele piscou várias vezes, tentando focar a figura diante dele.
A imagem esbelta de Thalassa logo tomou forma, seus longos cabelos caindo como uma cascata negra sobre os ombros, sua túnica branca quase translúcida à luz fraca do lugar. Seu sorriso familiar, um misto de diversão e ternura, o saudava como um lembrete de que ele não estava sozinho.
Ainda assim, por mais reconfortante que fosse a presença de Thalassa, uma sombra de preocupação espreitava em seus olhos, como se houvesse algo que ela hesitasse em compartilhar.
“Pelo menos é ela” — Harley pensou, tentando se recompor — “E não o administrador.”
— Dormindo de novo? — Ela brincou, mas os olhos, sempre tão atentos, revelavam que ela percebia muito mais do que deixava transparecer.
Harley esfregou o rosto com as mãos, sentindo o peso da noite anterior em cada movimento. O soco de Sérgio ainda pulsava em sua memória, e o gosto do sangue seco insistia em permanecer nos lábios. Ele desviou o olhar, evitando a preocupação oculta nas perguntas de Thalassa.
— O que você sonhou desta vez? Fugir ou uma daquelas suas escapadas misteriosas? — Thalassa provocou, inclinando-se levemente para ele, como se esperasse alguma confissão.
— Ambos — A resposta saiu em um suspiro, carregada de exaustão.
— Ambos? — Ela repetiu, erguendo uma sobrancelha — Isso parece… bem, típico de você.
A voz de Thalassa estava carregada de uma doçura familiar, mas por baixo havia um tom de expectativa, uma curiosidade que Harley sabia que não conseguiria satisfazer plenamente.
Ele evitou seus olhos, deixando a tensão crescer no silêncio que se seguiu. Os momentos de paz ao lado dela sempre vinham com uma sombra, como se algo estivesse para ser dito, mas nunca dito de fato. O peso de segredos que pairava entre eles.
— Algum dia, você vai me contar o que realmente se passa nessas fugas noturnas, Ginsu — Ela sorriu, mas havia algo mais naquela frase. Uma expectativa não expressa.
— E o que você acha que acontece? — Harley respondeu, forçando um sorriso enquanto cruzava os braços. Ele tentava desesperadamente suavizar o clima, mas o olhar penetrante de Thalassa o deixava estranho, exposto de uma maneira que nunca tinha sentido antes.
Ela suspirou e deu de ombros, caminhando lentamente ao redor da mesa onde ele estava. Seus passos eram suaves, quase imperceptíveis no piso de mármore antigo da biblioteca.
— Eu não sei. Só sei que há muito que você não me conta. E, sendo bem sincera, me preocupo.
Um aperto profundo surgiu no peito de Harley. As palavras dela, tão honestas, o abalaram de uma maneira que nem os golpes mais brutais haviam conseguido.
“Por que Thalassa sempre conseguia fazer com que ele se sentisse culpado por esconder a verdade?” — pensou querendo compartilhar seus tormentos, mas não sabendo por onde começar.
— Você se preocupa demais, Thalassa — sua voz soou mais fria do que ele pretendia, e ele percebeu isso no exato momento em que as palavras saíram de sua boca — Eu… estou bem.
Ela parou de andar e o encarou. O sorriso havia desaparecido, e agora havia apenas seriedade em seus olhos — Não me engane, Harley. Eu conheço você melhor do que ninguém. Quando vai parar de carregar tudo sozinho?
Ele abriu a boca para responder, mas as palavras não vieram. Thalassa se aproximou, estendendo a mão até a dele, que descansava em cima da mesa. Embora seu toque fosse quente, não trazia conforto.
Era quase uma cobrança muda, esperando que ele dissesse algo, mesmo que fosse qualquer coisa insignificante.
— Eu queria poder te contar, mas… — Harley começou, mas sua voz sumiu. Ele não sabia como dizer que os segredos que guardava não eram apenas sobre suas fugas noturnas, mas sobre o vazio crescente que o consumia, sobre a incerteza do que ele estava se tornando.
— Mas o quê? — Ela perguntou, agora mais próxima, sua voz quase um sussurro. Seus olhos estavam fixos nos dele, e Harley sentiu o peso de tudo o que tinha deixado de falar ao longo dos anos.
— Eu não sei se você entenderia — ele desviou o olhar, mas Thalassa não recuou.
— Tente — ela sussurrou, sua mão apertando a dele com mais firmeza — Eu estou aqui, Harley. Sempre estive. O que quer que esteja te atormentando, nós podemos enfrentar juntos.
Por um instante, Harley quase cedeu. Quase contou a ela sobre as lutas clandestinas, sobre a culpa que carregava por não conseguir se desvincular daquele ciclo de violência, e sobre o medo de perder a única pessoa que parecia realmente se importar com ele. Mas, como sempre, ele se conteve.
— E você? O que te trouxe aqui tão cedo? — perguntou, tentando afastar a tensão crescente, esperando mudar o rumo da conversa.
Thalassa abriu um sorriso, embora seus olhos ainda estivessem afiados. Ela recuou um passo, como se soubesse que havia perdido a batalha de tirá-lo de sua concha.
— Tenho novidades. Algo que eu encontrei nos pergaminhos antigos — Ela disse com um brilho nos olhos, mas antes que Harley pudesse reagir, acrescentou:
— Mas acho que você não quer saber.
Harley olhou para ela por um longo momento, sabendo que a provocação era uma maneira de aliviar o clima tenso que acabava de se formar. Ele sorriu, mas seu coração ainda estava pesado.
— Hoje não estou no clima para enigmas — Harley respondeu, sem esconder sua impaciência.
— O que aconteceu, Harley? — o tom de Thalassa agora era sério, uma seriedade que ele raramente via nela.
Harley hesitou pensativo:
“O que ele poderia realmente dizer? Que, desde suas leituras e os anos no Clã dos Dragões de Sangue, sua percepção da realidade havia se despedaçado? Que ele vinha criando desculpas para não fugir e continuar preso àquele ciclo? Que seus encontros com Thalassa eram os únicos momentos de paz em sua vida? Ou que, finalmente, começava a entender que viver era muito mais do que treinar sem parar — que existiam outras formas de conexão humana além de cobranças e lições?”
Antes que ele pudesse dizer algo, o som de passos firmes ecoou pelos corredores da biblioteca. Os dois ficaram tensos, como se um predador estivesse se aproximando. Logo, um servo surgiu, a expressão de preocupação clara em seu rosto.
— Ginsu, o administrador quer vê-lo imediatamente — disse o servo, a urgência em sua voz inegável.
Por um momento, Harley congelou.
“Será que eles já sabiam da sua última fuga? E se tivesse machucado um dos jovens sem perceber? Ou, pior ainda, será que algo terrível estava se aproximando, algo que ele ainda não havia previsto?” — seus pensamentos eram um redemoinho de medo e incerteza, enquanto a adrenalina disparava por suas veias, colocando seu corpo em alerta máximo.
Ele trocou um olhar com Thalassa, e os pensamentos se alinharam em silêncio entre eles: seja o que fosse, não seria algo bom.
— Eu vou com você — Disse Thalassa, firme.
— Não, eu resolvo isso sozinho — Harley respondeu prontamente, levantando-se com rapidez. Ele ajustou a mochila nas costas e lançou um olhar final a Thalassa. Sabia que qualquer envolvimento dela só complicaria mais as coisas — Confie em mim, é melhor que você fique aqui.
Thalassa hesitou, mas por fim acenou com a cabeça, respeitando sua decisão.
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