Capítulo 10 - O que há na névoa?
“Aqueles que cruzam o limiar do desconhecido devem abandonar o medo e abraçar a vontade. Somente o visionário entende que o preço da incerteza é, na verdade, a moeda que compra a revelação final.”
— Misteriosos inscritos no templo da Adaga Arcana. Sem autor identificável.
Um gongo ressoou, anunciando o início do desafio. O jovem permaneceu imóvel por um momento, observando a movimentação dos outros competidores. Muitos avançaram cegamente, correndo na direção da névoa como se a pressa fosse sua única chance. Um erro fatal, ele sabia. A névoa não perdoa os impacientes.
Ele respirou fundo, seus anos de aprendizado na biblioteca surgindo como aliado. Enquanto outros caíam nas armadilhas iniciais, sendo engolidos pela névoa ou caindo em buracos ocultos, Harley estudava o movimento sutil da névoa, as lacunas que se abriam e fechavam em intervalos calculados.
Era como uma disputa com outro ser vivo, onde o tempo e a estratégia eram suas únicas armas. Cada passo precisava ser pensado, cada movimento antecipado.
Conforme avançava, sentiu algo diferente. Não era o cansaço físico que o incomodava, mas um sentimento estranho de distanciamento, como se memórias importantes começassem a se esvair de sua mente. A névoa estava testando sua resistência mental, tentando apagar seu passado.
Por um momento, ele quase se esqueceu do rosto de Thalassa, sua única amiga na biblioteca, e isso o assustou profundamente. Era como se as memórias mais queridas fossem as primeiras a serem apagadas.
Lembranças fragmentadas de conversas que ouvira ao longo dos anos na biblioteca surgiram. Alguém, um conhecido, havia morrido tentando atravessar a névoa. Outro, mais afortunado, conseguira atravessá-la, mas nunca mais retornara.
“O que a névoa fazia com aqueles que tentavam?” — Harley refletiu sobre isso enquanto evitava outro buraco traiçoeiro que se abriu sob seus pés.
A névoa não apenas apagava lembranças; ela reconfigurava a mente, moldando uma realidade distorcida e fragmentada. Embora esta névoa preliminar fosse menos densa e mortal do que a neblina do teste final que os Kamikazes teriam de enfrentar, seus efeitos já eram inquietantes.
Mesmo em sua forma inicial, causava confusão, desorientação e, em alguns pontos, a incapacitação completa dos competidores. Em certos casos, os danos eram tão profundos que, assim como na prova final, aqueles que sucumbiam à névoa retornavam sem qualquer lembrança da ilha.
Eles não sabiam onde estavam, quem eram, ou por que haviam tentado atravessar. Para essas mentes corrompidas, era como se a própria existência da ilha tivesse sido apagada de suas memórias.
Esse pensamento foi suficiente para manter Harley focado. Ele sabia que, se quisesse manter sua sanidade intacta, precisava se agarrar às suas memórias, às suas motivações. Precisava lembrar por que estava ali, mesmo que a névoa tentasse de tudo para apagar essas razões.
À medida que avançava, a dúvida começou a se infiltrar em sua mente:
“Será que o teste era apenas sobre resistência física e mental? E se a névoa fosse muito mais do que aparentava? Talvez o Clã Dragões de Sangue estivesse testando não apenas a força dos competidores, mas também sua capacidade de serem moldados, manipulados por um poder invisível.”
“A névoa” — continuou ele — “poderia ela ser a manifestação desse poder, uma força que não só testava, mas moldava as mentes para servir a um propósito maior?”
Os competidores eram munidos de pergaminhos que prometiam riquezas incalculáveis, tesouros além da imaginação e, o mais tentador de tudo, a libertação de seus entes queridos. As palavras eram cuidadosamente escolhidas para encher seus corações de esperança.
Porém, Harley não conseguia ignorar o desconforto crescente. Nada em sua vida, nem nos relatos que ouvira, parecia remotamente tão bom quanto aquelas promessas.
Para alguém que havia conquistado, o pouco que tinha, tudo à base de incontáveis horas de treino, dedicação e sacrifícios pessoais, essas grandiosas promessas soavam como ilusões fabricadas para capturar os desesperados.
“Há algo profundamente errado aqui” — refletiu, enquanto uma desconfiança fria se infiltrava em seus pensamentos.
No teste preliminar, eles já haviam recebido os pergaminhos finais, os mesmos que levariam consigo para a prova principal, caso passassem. E no de Harley, em meio às muitas promessas, havia uma oferta específica que o atingiu profundamente: Thalassa.
“Como isso pode ser possível? Como isso pode ser verdade?” — ele se perguntou, sentindo um calafrio percorrer sua espinha — “Por que o líder do clã privaria o próprio filho de sua esposa?”
A suspeita tomou forma em sua mente: eles tinham investigado cada um dos competidores nos mínimos detalhes, estudando seus desejos mais profundos, suas carências mais íntimas.
Os pergaminhos não eram apenas promessas vagas de tesouros; eram iscas. Iscas cuidadosamente desenhadas para cada um, explorando seus anseios e fraquezas, usando tudo o que fosse necessário para moldá-los.
“Mas seria mesmo isso?” — Harley não tinha certeza. Era uma hipótese que lhe corroía a mente, mas a falta de respostas concretas o deixava em um estado de inquietação constante.
O paraíso prometido além da névoa, para o jovem, não passava de uma farsa. Ele estava certo de que aqueles que conseguiam atravessá-la saíam irreconhecíveis — transformados em algo que nem eles mesmos entendiam, moldados para servir sem questionar, sem sequer perceberem o quanto haviam perdido de si mesmos.
Harley, no entanto, estava determinado a não se deixar cair nessa armadilha. Precisava sobreviver e escapar desse ciclo manipulador. Mas a pergunta que martelava sua mente continuava:
“Como posso escapar de algo que já consumiu tantos outros?”
Harley desviou instintivamente de uma porção espessa da névoa, movendo-se por um corredor estreito formado entre as ondulações turvas.
Era impossível dizer se aquele caminho era uma solução momentânea para evitar os efeitos da névoa ou se o levava diretamente para a ‘boca’ da armadilha, onde a névoa o consumiria por completo. Cada passo era uma aposta, mas ele sabia que não tinha escolha a não ser seguir adiante.
A névoa se adensava ao redor de Harley, engolindo o mundo em uma cortina densa e opressora. O som dos competidores ao longe se transformava em ecos abafados, distantes, como se já estivessem perdidos para sempre no vazio.
A linha entre a realidade e a ilusão tornava-se cada vez mais tênue, e sentia a névoa tentando se infiltrar em sua mente, dissolvendo suas lembranças como uma maré invisível.
Mas ele resistiu.
Com a respiração controlada, Harley fechou os olhos por um momento, recorrendo a uma técnica antiga que aprendera em seu clã de origem — os Sussurros das Sombras.
Eram 100 versos transmitidos oralmente de geração em geração, recitados incessantemente pelos anciãos nas profundezas das celas do Clã Adaga Arcana, onde o jovem passou anos treinando.
À noite, na escuridão densa de sua cela, ele ouvia esses ensinamentos repetidos à exaustão, como um mantra oculto, gravando-se profundamente em sua mente. Aqueles versos continham tudo: moral, regras, crenças, técnicas e suporte para momentos de crise.
Esse era o seu kata mental. Uma sequência exata e previsível de pensamentos que, assim como os movimentos de combate físico, formavam um fio lógico que ele sempre poderia seguir, mesmo no caos. Repetição, persistência e clareza — o que havia aprendido nas sombras, agora lhe servia de âncora.
Ele começava pelo primeiro verso: “Olhe para o passado, pois nele estão as raízes que sustentam a árvore do presente.” Depois, o segundo: “Os segredos enterrados sob camadas de tempo e silêncio são as chaves para a libertação.”
E assim continuava, verso após verso, cada um o guiando mais profundamente para longe da influência da névoa. Cada frase formava uma linha de defesa contra o ataque insidioso da neblina, mantendo sua mente intacta:
“Eu sou Harley Ginsu. Fui criado pelos Sussurros. Sou um Mestre Arcano. Treinei na escuridão e aprendi a suportar o silêncio. Eu estou aqui para vencer.” — cada pensamento, cada verso, cravava suas lembranças mais profundamente, resistindo ao apagamento.
Quando abriu os olhos, a névoa ainda tentava dissolver sua identidade, mas ele estava ancorado. Ela pulsava ao seu redor, movendo-se em um ciclo que, embora caótico, revelava um padrão sutil.
Com a paciência que aprendera em sua técnica, Harley percebeu o comportamento da névoa como algo previsível, como uma fera que repetia os mesmos ataques, revelando suas fraquezas. Conhecia esse ritmo — não era um jogo estratégico, mas uma batalha de pura sobrevivência.
De repente, a névoa enfraqueceu por um breve instante, e viu o que buscava: uma passagem estreita, quase imperceptível. Aquele era o seu momento.
Harley avançou. Seus passos eram rápidos, precisos, cada movimento ajustado ao pulsar da névoa. Ele sentia a pressão ao seu redor, a névoa tentando enlaçá-lo, puxá-lo para o esquecimento, mas sua mente estava clara, focada. Cada passo era uma vitória, uma reafirmação de quem era.
Quando finalmente atravessou o centro da clareira, olhou para trás e viu a névoa se fechar com força, como as mandíbulas de uma fera faminta. Aqueles que hesitaram não teriam a mesma sorte. Haley não precisava ver o que aconteceria com eles — a névoa não perdoava os indecisos.
O sol começou a se pôr, e o caos do terreno acalmou-se. O jovem estava do outro lado, mas o verdadeiro triunfo não era apenas sua habilidade de atravessar a névoa. A verdadeira vitória era outra: ele ainda se lembrava. Seus pensamentos estavam intactos, sua identidade preservada:
— Eu sou Harley Ginsu. Eu estou aqui para vencer — declarou em um sussurro rouco.
A névoa não o quebrara.
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