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    “O que é uma tempestade senão um renascimento de caos? O deserto a vê como o arauto da transformação, enquanto os fracos a temem como um prenúncio de destruição.” 

    — Sussurros das Sombras XX , transmissão oral do Clã Adaga Arcana.


    A adaga negra pulsava nas mãos de Sergio Romanov, sua superfície fria vibrando como se fosse viva, como se tivesse um coração próprio, batendo de forma irregular e sombria. 

    Havia uma conexão visceral entre ele e o artefato, um elo que não se baseava apenas no toque físico, mas sim em algo mais profundo. 

    Era como se a lâmina fosse uma extensão da sua própria alma, sussurrando-lhe segredos antigos e obscuros, oferecendo-lhe poder a um preço que ele ainda não estava disposto a admitir. 

    Sergio respirou fundo, sentindo a pressão da adaga em seus dedos. A sensação era como se estivesse sendo sugado para dentro dela, tragado por uma força invisível que se nutria de suas fraquezas. 

    O poder maligno emanava do objeto, um poder que envolvia sua mente com promessas tentadoras de força. Ele sabia, contudo, que havia mais. Havia um lado sombrio, um preço que o aterrorizava. Um custo que exigia não apenas sacrifícios, mas a perda de tudo o que ele fora, a rendição de sua própria humanidade.

    Num instante, Sergio abriu os olhos. A névoa do passado que o envolvia dissipou-se abruptamente, como um vento cortante que dissipa um pesadelo. A realidade crua o atingiu como um golpe implacável: 

    “Eu… não estou morto… Não estou perdido no passado como pensei… O encontro com Harley, a adaga dele… ela não me perfurou… Tudo não passou de uma ilusão… Mas, se isso é só uma ilusão… então, o que é real?”

    “O que estava acontecendo?”— pensou, enquanto a impotência o consumia. O caos parecia se materializar ao redor, o mundo desmoronando aos poucos, as linhas entre a ficção e a realidade se desfazendo em suas mãos.

    Inesperadamente, Isabella apareceu novamente diante dele. A adaga negra que ele segurava ainda estava cravada no corpo dela. O sangue fluía livremente, como um rio amaldiçoado, tingindo o chão de um vermelho escuro e pulsante. 

    Seus olhos estavam fixos nele, e o olhar dela não era de ódio, mas de uma dor fria, como se já não restasse mais nada a se perder.

    Sergio piscou, confuso. A visão à sua frente parecia distorcida, como um reflexo numa superfície de água. Ele mal conseguia distinguir o que era verdade e o que era uma construção de sua mente esgotada. 

    “Estou perdendo a sanidade?” — refletiu, tentando encontrar algum traço de lógica nos fragmentos desconexos de seus pensamentos. 

    Havia uma mistura de choque, culpa e uma sensação profunda de inevitabilidade. A imagem do corpo de Isabella não era apenas uma manifestação do presente, mas também um espelho que refletia todas as suas ações passadas, todos os erros, todas as traições.

    O silêncio era ensurdecedor, uma ausência de som que pressionava seus ouvidos como um grito abafado. Naquele momento, Sergio sentiu-se tragado de volta para seus piores pesadelos, aqueles que sempre retornavam nas noites mais escuras. 

    Visões de pessoas que ele havia traído e abandonado surgiam à sua mente, como espectros vingativos que jamais lhe dariam paz. O corpo de Isabella imóvel parecia encarnar todos esses erros, uma representação material de suas falhas e da destruição que ele espalhara ao longo dos anos.

    — Quem é você? — Sergio murmurou, sua voz rouca e quase inaudível, as palavras ecoando no vazio ao seu redor, como se nem mesmo o ambiente acreditasse em sua própria existência. 

    “Estou falando com ela ou estas palavras são apenas um eco dos meus próprios pensamentos?” — questionou-se, sentindo a dúvida crescer em seu íntimo, sufocando qualquer certeza que pudesse ter.

    A voz de Isabella finalmente emergiu. Era fraca, mas não deixava de ser carregada de uma verdade cruel:

    — Você abandonou sua identidade!

    Aquelas palavras simples ecoaram como um golpe, reverberando até os recantos mais profundos de sua alma. O impacto não estava apenas no som, mas no significado por trás. 

    Era como se Isabella tivesse sido capaz de expor o segredo que ele mantinha enterrado, uma maldição que ele tentava desesperadamente reprimir, mas que sempre encontrava uma forma de ressurgir.

    De repente, o deserto desapareceu ao redor. Sergio não estava mais ali. Ele se viu de volta no passado, revisitando os momentos em que sua alma fora moldada pela traição. 

    Reviu-se nos dias sombrios, quando vivia na sombra de outros homens, incapaz de encontrar seu verdadeiro lugar no mundo, sempre buscando algo que parecia fugir de suas mãos. Foi viver em um novo clã, entre os Dragões de Sangue, um clã de guerreiros que respeitava apenas o poder. 

    A sede de poder era insaciável, mas para ele era sempre fugidia. Ele não era o herdeiro daquele clã, era um estrangeiro. 

    Com uma máscara mágica e uma língua afiada, Sergio enganara seu amigo, usurpando a identidade que não lhe pertencia por direito. Não se contentou apenas em roubar o nome e a posição. Também o traira de maneira irreparável, tomando tudo o que deveria ter pertencido ao outro.

    A expressão de desespero e desilusão no rosto do amigo estava gravada em sua memória, uma marca que jamais se apagaria. Os olhos, que um dia brilharam com confiança, agora refletiam apenas incredulidade.

    Sergio sabia que não havia perdido apenas uma amizade. Ele havia perdido a si mesmo. A traição, embora tenha lhe dado poder, corroeu mais uma vez sua própria essência. A cada passo em direção à ambição, mais ele se afastava do que um dia havia sido. 

    Trair sua família, trair seu clã natal, trair o seu amigo significou trair o que tinha de mais genuíno dentro de si.

    A primeira grande ignomínia era apenas o começo de uma espiral descendente. Uma marca profunda, mas não definitiva. A vida de Sergio tornou-se um ciclo de traições, cada uma enterrando-o mais profundamente na escuridão, cada passo na busca pelo poder sendo pago com mais destruição. 

    Agora, diante do corpo de Isabella, ele encarava os fantasmas do passado e se perguntava se algum dia havia realmente escapado das sombras que suas próprias ações projetaram.

    Isabella representava todas as vidas que ele arruinara, cada alma que ele ferira. Ela não o olhava com ódio, mas com uma verdade dolorosa, um olhar que refletia a realidade que Sergio nunca ousara admitir. O peso de suas decisões estava agora esmagando-o.

    — Eu… nunca… escaparei! — murmurou para si mesmo, enquanto a imagem do amigo traído o assombrava, surgindo como um espectro que jamais o deixaria em paz, observando sua queda final. 

    Não havia consolo, não havia saída aparente. Sergio estava encurralado entre o passado e o presente, ambos implacáveis em seus julgamentos.

    — Você pode mudar isso. Pode reescrever sua história! — a voz soou novamente, carregada de uma promessa. 

    A mesma voz que ele havia ouvido quando envenenou sua própria mãe. As palavras não vinham de Isabella. Vinham de algo mais profundo, algo que ressoava em sua consciência. 

    Eram tentadoras, tão atraentes quanto as palavras de um demônio oferecendo um pacto. Ele ouvira aquilo antes e caíra na tentação. Agora, a voz estava lá novamente, saindo da boca de Isabella, oferecendo uma terceira ou quarta chance.

    “Eu perdi a cabeça de vez?” — perguntou-se, enquanto o desespero aumentava, afundando suas raízes cada vez mais fundo em seu ser. 

    O demônio o tentava mais uma vez, abrindo portas que deviam permanecer fechadas. As lembranças que ele havia enterrado voltavam à tona, como fantasmas emergindo de uma neblina sinistra.

    Dentro dele, algo profundo e sombrio mexeu-se, algo que ele havia trancado há muito tempo. Uma promessa que fizera, uma chance de redenção que aceitara, mas que, na verdade, não passava de mais uma tentativa de escapar de si mesmo. 

    Era a primeira promessa de redenção, uma oferta para apagar tudo o que havia feito e começar de novo entre os Dragões de Sangue.

    Ele aceitou, mudou sua essência, abandonou quem fora e adotou uma nova identidade no clã. Mas não havia verdadeira redenção naquele caminho. 

    O que ele queria de fato não era transformar-se, mas sim fugir das garras do arrependimento e da culpa por ter matado sua própria mãe e não ter conseguido matar seu pai e seu irmão.

    Reinventou-se, um novo começo construído sobre as fundações instáveis de mentiras e ilusões. Cada passo tomado em direção a esse destino recém-criado afastava-o dos fantasmas do passado, ou ao menos era o que ele desejava acreditar.

    No entanto, as sombras que ele tentava evitar jamais o abandonaram. Elas estavam sempre presentes, como vultos à espreita, aguardando o momento certo para se revelarem. 

    De volta ao presente, ele piscou, tentando afastar aquelas lembranças. Isabella permanecia ali, sua presença tão real quanto o frio da adaga em suas mãos. O sangue continuava a escorrer pela lâmina negra, mas Sergio não desviou o olhar. 

    Sabia que seu passado estava gravado naquela lâmina. Ela era um símbolo de tudo o que ele fizera, de todas as vidas que destruíra. Mas, finalmente, ele decidiu que não seria mais prisioneiro disso.

    — Eu sou Sergio Romanov! — sussurrou para si mesmo, como uma afirmação definitiva, uma declaração que ecoava em meio ao vazio ao seu redor. 

    Não importava quantas vidas ele tivesse destruído ou teria que destruir, quantas identidades tivesse usurpado ou ainda ia usurpar. Ele seguiria e conseguiria sua vitória. Sua vingança. 

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