Capítulo 97 - Promessa feita no deserto ardente
“Os laços entre os indivíduos são forjados nas horas de desespero. Não são os momentos de alegria que revelam o verdadeiro caráter de alguém, mas sim os instantes em que a alma se vê diante da escolha entre si mesma e o outro.”
— O Código do Guerreiro Solitário, Verso 30.
Ivana abriu os olhos lentamente, o mundo ao seu redor voltando de maneira turva. A dor era uma companheira constante, mas o que a fazia lutar para permanecer consciente era o sentimento de não querer estar sozinha naquele momento final.
As últimas palavras de Harley ecoavam em sua mente como um sussurro distante, mas ela não conseguia se lembrar do que ele tinha dito. Ela o vira mexendo os lábios, mas o peso do cansaço a arrastara para a inconsciência antes que pudesse escutar a promessa.
Com esforço, ela ergueu a cabeça, seus olhos fixando-se no perfil determinado de Harley, que caminhava com dificuldade carregando-a em seus ombros. Ela precisava saber, precisava ouvir a resposta que não conseguira captar antes. Sua voz saiu como um murmúrio, quase sufocada pela fraqueza:
— O que… você disse antes? Você vai me prometer ou não?
Harley, surpreso ao ouvir a voz de Ivana, virou o rosto para encará-la. O cansaço marcava cada traço de seu semblante, mas seus olhos carregavam a mesma firmeza de antes. Ele respirou fundo, ajustando o peso dela em seus ombros.
Sem forças para discutir, ele assentiu. Ivana, talvez para provocá-lo um pouco mais, arqueou uma sobrancelha e perguntou:
— Isso quer dizer que você concorda ou não?
— Eu prometi que não te abandonaria. Lutarei até o fim, se preciso, para garantir sua segurança. Que fique claro: esta é uma promessa inquebrantável — disse, com uma convicção que parecia tocar a alma de ambos.
Ivana sorriu, mas havia algo amargo naquele gesto, como se ela estivesse se despedindo de um sonho distante.
— Então, quando eu morrer, retire o osso da minha garganta — ela disse — Tem poder mágico. Pode ser útil para você… Não se esqueça disso.
As palavras dela pareciam um golpe silencioso no peito de Harley. A ideia de extrair algo tão íntimo de uma pessoa que ele estava começando a considerar uma aliada era perturbadora.
Era diferente de arrancar uma arma de um inimigo derrotado. Aquela era Ivana, que o salvara, que estivera ao seu lado no momento em que ele mais precisara. Fazer isso parecia uma violação, um ato frio que ele não sabia se seria capaz de cumprir.
Harley olhou para ela por um instante, observando como os olhos dela agora se fechavam lentamente. Aquela mulher era um paradoxo em si mesma. A princípio, uma inimiga que ele pensou ser implacável, mas agora, uma companheira de dificuldades.
Aos poucos, Harley começou a aceitar a verdade que até então tinha evitado: Ivana não era apenas humana. Ela era um ser que transcendia as definições convencionais, e o que ele via nela ia além do que ele havia imaginado sobre demônios.
Havia algo que o tocava de uma maneira que ele nunca havia sentido antes: empatia, talvez fascínio e até uma atração inegável que o deixava em conflito. Estava claro para ele que ela tinha habilidade para manipular suas emoções, mas ele não podia evitar a conexão que se formava entre os dois.
As dúvidas sobre os verdadeiros motivos de Ivana começaram a atormentá-lo:
“Será que ela o estava usando desde o início? Estaria brincando com suas emoções, explorando suas fraquezas? Aquele sorriso, aquela promessa… tudo parecia parte de um jogo habilidoso.”
Harley refletia sobre a possibilidade de estar sendo manipulado o tempo todo. Com a Adaga Branca na mão, ele a examinou, verificando se havia qualquer sinal de deslocamento mágico ao redor deles.
Nada. A adaga permanecia impassível, e isso o fez perceber que não havia qualquer manipulação sobrenatural. Ivana não estava usando magia para controlá-lo. O que ele sentia era real, e isso era o que mais o assustava.
Reconhecendo sua própria inexperiência e a falta de convívio social, Harley percebeu como era vulnerável às emoções. Ele pensou em como aquela mulher, à beira da morte, ainda conseguia mexer com ele, e não pôde evitar em se questionar:
“Se ela estivesse saudável, em pleno controle de si mesma, qual seria o alcance de sua influência?
Enquanto carregava Ivana, Harley sentiu o peso da responsabilidade por aquela vida tornar-se insuportável. A angústia crescia dentro dele, a cada passo mais evidente. Ele não podia aceitar perder alguém mais. Não quando finalmente havia decidido fazer diferente, quando escolhera ser responsável e lutar por algo além de si mesmo.
O desespero transformava-se em um impulso, e, na escuridão, ele buscava qualquer vislumbre de esperança. Foi então que um pensamento reluziu em sua mente.
A Adaga Branca, símbolo de poder, de magia ancestral, ainda podia oferecer alguma solução. Ela tinha a habilidade de absorver energias mágicas; talvez pudesse purificar o veneno que a consumia.
Com uma determinação feroz, ele decidiu arriscar. Não havia tempo para dúvidas. Harley firmou a lâmina sobre o braço de Ivana. O sangue e o veneno misturavam-se, e a luz da adaga começou a brilhar. A energia emanava, pulsante, e o jovem podia sentir a luta invisível se desenrolando. A adaga vibrava, absorvendo a Energia Negra, mas, em contrapartida, sugava também parte da força de Harley.
Ivana abriu os olhos, observando-o. Mesmo fraca, não perdeu a chance de ser sarcástica:
— Você… é realmente… um bobo sentimental. Quanto antes terminar com isso, maiores são suas chances.
Harley não se abalou. Seu rosto estava sério, os olhos focados no que precisava ser feito. As energias opostas continuavam em conflito, e cada segundo que passava oferecia a chance de eles serem alcançados por seus inimigos.
O brilho da adaga oscilava, e pequenas faíscas explodiam na lâmina. Ele sentiu uma parte de si enfraquecer. A adaga estava retrocedendo, perdendo a evolução que havia conquistado. Ele a viu regredir, tornando-se a arma simples que fora outrora.
Harley lamentou essa perda, mas sabia que era o preço a pagar. A questão não era a adaga; era salvar Ivana. Mesmo que isso significasse perder um recurso poderoso, ele estava disposto a correr o risco.
Ele podia sentir que a adaga estava no limite. Metade da energia acumulada nela havia se dissipado na tentativa de absorver a energia intrusa no corpo da mulher. O jovem respirou fundo, forçando-se a continuar.
O gesto era impulsivo, mas revelava o quanto ele se recusava a aceitar o destino iminente de Ivana. Ela o observava, um olhar de compreensão se formando em seus olhos cansados. Finalmente, em meio à agonia do momento, a voz dela ecoou, agradecida, quase um sussurro.
— Por que você… fez isso… por mim? — Ivana conseguiu dizer, seus olhos se fixando nos de Harley, buscando uma resposta que ele talvez não soubesse dar.
Harley permaneceu em silêncio por um instante, sem saber exatamente o que responder. As palavras pareciam insuficientes, pequenas demais para expressar o que sentia.
Ele simplesmente colocou novamente Ivana em seus ombros, sentindo o peso da fragilidade dela e a urgência de continuar. Não havia tempo para discutir ou refletir. Precisavam seguir em frente.
Enquanto avançavam, o caminho diante deles se mostrava cada vez mais árduo. O deserto não oferecia descanso, os três sóis continuavam a castigá-los com sua luz implacável, e o ar parecia pesar toneladas sobre os ombros de Harley.
A mulher, enfraquecida, descansava contra seus ombros, e por um momento ele se perguntou se ela ainda estava consciente. Era difícil saber. Ela respirava, mas estava fraca, como uma chama prestes a se apagar.
Harley começou a falar, mesmo sem esperar uma resposta. Queria manter Ivana acordada, não deixar que ela se entregasse ao cansaço.
— Sabe, nunca imaginei que estaria nesta situação. Quando te encontrei pela primeira vez, pensei que você fosse apenas uma ameaça. Um obstáculo a ser superado — confessou ele, a voz baixa, enquanto caminhava — Mas agora… vejo que há muito mais do que eu poderia entender.
Ivana abriu os olhos brevemente, apenas o suficiente para encará-lo. Um sorriso fraco, quase imperceptível, tocou seus lábios.
— Talvez… você esteja começando a me entender… afinal — murmurou ela, antes de voltar a fechar os olhos.
O caminho parecia interminável, cada passo ecoando na aridez do deserto como um lembrete do quão distante estavam de qualquer segurança. Harley sabia que o tempo estava contra eles.
A Guardiã Sombria ainda estava à espreita, e Harley sabia que as sombras não demorariam a alcançá-los novamente. Mas ele tinha chegado ao limite. Precisava parar por um breve momento, precisava de ar, de força, para seguir carregando-a. Tinha que encontrar um abrigo para proteger Ivana antes que fosse tarde demais.
Finalmente, ao longe, ele avistou uma formação rochosa que parecia prometer abrigo. A sombra projetada pelas pedras parecia um oásis em meio àquele inferno de luz e calor. Harley sentiu um sopro de esperança, acelerando o passo.
Chegando ao abrigo, ele cuidadosamente deitou-a no chão, à sombra das rochas. Ela parecia ainda mais pálida sob a luz difusa que filtrava pelas fendas das pedras, mas pelo menos ali estariam protegidos do calor opressor.
Harley sentou-se ao lado dela, exausto. Seus olhos percorreram o horizonte vazio, à procura de qualquer sinal de perigo.
Ele sabia que não podiam ficar ali por muito tempo. Precisavam seguir adiante. Fugir da Guardiã Sombria.
Mas, por um breve momento, Harley permitiu-se um pouco de descanso, ouvindo a respiração fraca de Ivana ao seu lado e torcendo, com todas as suas forças, para que aquele não fosse o último momento deles juntos.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.