Virellium estava mais quieta do que nunca.
    Não com o silêncio de um cemitério, mas com o silêncio de uma biblioteca em ruínas. Um silêncio de páginas que não foram lidas, de nomes que foram riscados com pressa, de promessas murmuradas por trás das paredes que se lembram.

    Cael caminhava sozinho pela Travessa das Molduras Veladas — uma rua que jamais existia da mesma forma duas vezes. Diziam que ali viviam colecionadores de reflexos. Gente que comprava espelhos não para se ver, mas para observar o que deveria ter permanecido oculto. Eram negociadas memórias visuais como relíquias: cenas roubadas, futuros rasurados, confissões refletidas que ninguém ousava dizer em voz alta.

    Hoje, a travessa parecia abandonada até pelos ecos. A névoa era mais densa do que nunca, quase sólida, tornando cada passo um mergulho em algo não dito. O céu não se decidia entre espiral e deserto, e os lampiões apagados pareciam lamentar seu próprio esquecimento.

    Cael sentia a pena negra pesar mais que o habitual no bolso interno. Não era o peso físico, mas o simbólico — o peso do chamado. Algo ali o reconhecia. Algo o aguardava com a paciência cruel das armadilhas bem postas.

    Foi então que ele viu: a loja de número 13B.
    Sem nome, sem placas, sem janelas normais. As vidraças estavam riscadas, não por acidente ou tempo, mas por intenção. Arranhadas de dentro para fora, como se o reflexo de alguém tivesse tentado escapar da moldura.

    A porta estava entreaberta, oscilando levemente como o fôlego de um moribundo. Um convite ambíguo. Cael entrou.

    O interior da loja cheirava a verniz antigo, ferrugem e tinta seca. As sombras estavam vivas, não por movimento, mas por insistência. Pareciam lembrar de quem entrara ali antes dele.

    Espelhos pendiam das paredes como cadáveres pendurados pela moldura. Uns cobertos por tecidos escuros, outros rachados em silêncio. E um, apenas um, limpo. Limpo demais. Intocado pelo pó. Intocado pelo tempo. Um vidro que recusava história.

    Cael se aproximou.
    E viu-se.
    Quase.

    Seu reflexo o encarava com um segundo de atraso. Um Cael com as mesmas roupas, a mesma postura, mas com um fôlego que não lhe pertencia. Quando ele piscou, o reflexo hesitou. Quando ergueu a mão, o reflexo imitou — mas a mão era a esquerda, e Cael era destro.

    Por fim, o reflexo sorriu. Sozinho. Antes dele.

    Era como olhar não para um espelho, mas para uma lembrança de si mesmo escrita por outra pessoa.

    Ele tocou o vidro.

    A loja desapareceu.

    Não de verdade, mas no que Cael conhecia como realidade. O vidro tornou-se tinta líquida e espessa, escurecendo como uma página sendo manchada por palavras não pronunciadas. E então… surgiu a outra cidade.

    Ainda Virellium. Mas em colapso.

    A Virellium do outro lado era feita de riscos. Literalmente. A cidade parecia ter sido desenhada por mãos trêmulas e depois parcialmente apagada. As construções tremiam sob a ameaça de palavras não ditas. As ruas escorriam tinta pelas calçadas. As janelas gritavam, mesmo fechadas.

    No céu, pendiam palavras desconexas, como cadáveres de ideias que não chegaram a existir.

    No centro da rua, uma figura. De costas. Com um sobretudo idêntico ao de Cael. No ombro, uma pena — mas branca, antiga, com fios que brilhavam como neve sob lâmpada fraca.

    Cael sentiu o corpo inteiro se contrair. A figura virou-se.

    Era ele.
    Mas não era.

    A cicatriz na sobrancelha estava invertida. Os olhos, espirais vivas. A expressão, resignada.

    O reflexo estendeu a mão. Tocou o lado oposto do vidro. E murmurou — sem som, mas com presença:

    — Você já escreveu aqui antes.

    A frase não era apenas um eco. Era uma afirmação ritualística. Uma acusação. Uma profecia.

    Cael retirou a mão.
    O espelho voltou a ser espelho.
    Mas o reflexo… agora parecia comum demais. O Cael refletido não tinha a cicatriz deixada pela Aurora semanas atrás. Não carregava a exaustão recente. Não era ele. Era um modelo anterior.

    Atrás dele, uma voz:

    — O que você viu?

    Leor. Pálido, ofegante, como se também houvesse atravessado alguma dobra sem saber.

    — Uma versão. Um rascunho. Um Cael… que talvez eu tenha sido. Ou esteja para ser.

    Leor entrou na loja, e os espelhos pareceram suspirar. Ele retirou o pano de um espelho pequeno e empalideceu.

    — Isso… não reflete nada. Só mostra uma frase.

    Cael se aproximou. No vidro, a caligrafia tremia:

    “Nem todas as versões tuas foram escritas pela mesma mão.”

    Houve um ruído de madeira se partindo. Os espelhos tremeram, e um deles caiu. Mas não quebrou. Ao invés disso, revelou uma moldura por trás da moldura — um espelho atrás do espelho. E lá, uma nova imagem: uma Virellium ainda diferente, com torres torcidas e céus rachados.

    Leor recuou, sem palavras.

    — Há camadas, Leor. E talvez… esta seja apenas uma entre tantas. Talvez o autor nunca tenha decidido qual é a versão final.

    Saíram da loja como quem sai de uma câmara funerária. Do lado de fora, a rua parecia sussurrar nomes esquecidos. A Travessa já não era a mesma.

    Mas Cael voltou-se.
    O espelho do lado de dentro exibia agora um bilhete que não estava ali antes:

    “Esta não é tua última cidade, Cael.
    Apenas a próxima.”

    Na hospedaria, à noite, o mundo parecia hesitar entre continuar e parar. Cael deixou a pena negra sobre a mesa e foi até a janela. A janela também estava riscada.

    Passou um pano. Mas os riscos permaneciam. E então, algo brilhou ali. Uma mensagem, escrita no vidro com a mesma caligrafia do espelho:

    “Já não és o primeiro.
    E não serás o último.”

    Ele encarou o próprio reflexo, que o imitava com precisão. Mas seus olhos… tinham um leve brilho dourado. Como se a pena negra tivesse deixado algo nele.

    Cael tocou o vidro.
    E do outro lado, o reflexo não reagiu.
    Apenas observou.

    O capítulo termina com o som de tinta gotejando no chão do quarto — mas quando Cael olha para trás, não há tinteiro, nem pena. Apenas um novo espelho. E dentro dele… uma porta se abrindo.
    O capítulo termina com Cael fitando seu reflexo no vidro da janela riscada.
    E o reflexo, com um brilho sutil nos olhos, move os lábios antes dele e diz silenciosamente:“Já não és o primeiro.
    E não serás o último.”

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