Interlúdio: As Versões que Falharam
Compilado dos Arquivos Não-Reconhecidos do Compêndio Menor dos Caels Perdidos. Este documento não é considerado canônico pela Última Página. Sua leitura é autossabotagem. E ainda assim, inevitável.
I. Introdução ao Erro Persistente
Há versões de Cael Thornwald que falharam em reescrever o mundo.
Elas não são lembradas.
Não por escolha.
Mas por autodefesa da narrativa.
Cada tentativa de alterar o fluxo do real sem pleno domínio da pena resultou em colapso:
Do autor.
Do mundo.
Ou de ambos.
Este interlúdio reúne fragmentos resgatados por observadores marginais — membros silenciosos da Corte dos Fragmentos que se dedicaram a registrar as tentativas falhas de autoria.
O que você lerá a seguir são ecos.
Sussurros de autores caídos.
II. Cael.145 – O Esteta da Ruína
- Domínio perdido: Beleza narrativa
- Motivação: Criar um mundo onde a dor fosse sempre bela
- Erro: Reescreveu todas as mortes como poesia
Este Cael acreditava que poderia suavizar a dor do mundo transformando sofrimento em arte. Cada assassinato era uma elegia. Cada destruição, um espetáculo.
Mas o mundo não aceitou.
A própria dor se revoltou contra a tentativa de embelezamento.
E Cael.145 morreu sufocado por versos não rimados.
Última frase registrada:
“Tentei que fosse belo.
E o mundo me respondeu com silêncio quebrado.”
III. Cael.006 – O Redentor Involuntário
- Domínio perdido: Livre-arbítrio
- Motivação: Reescrever todas as decisões ruins de todos
- Erro: Apagou a dúvida do mundo
Cael.006 acreditava que ninguém merecia culpa.
Reescreveu escolhas.
Corrigiu passados.
Interveio nas margens do livre-arbítrio.
E o mundo… parou.
Sem dúvida, não há tensão.
Sem tensão, não há história.
Sem história… o mundo rui.
Última visão registrada: Cael.006 tentando lembrar por que começou a escrever — e falhando.
IV. Cael.311 – O Autor que Escreveu com Sangue
- Domínio perdido: Empatia
- Motivação: Usar sua própria carne como papel
- Erro: Quanto mais escrevia, menos humano se tornava
Este Cael descobriu que poderia escrever o mundo através de sua própria carne. Cada frase entalhada em seu corpo se realizava.
Mas para manter o poder, precisou continuar escrevendo.
E aos poucos, restou apenas uma pele rasurada.
Uma mente costurada em parágrafos de loucura.
Última sentença antes do silêncio:
“Sou a história que não para de sangrar.”
V. Cael.000 – A Primeira Tentativa
- Domínio perdido: Verdade
- Motivação: Ser o primeiro a vencer o ciclo
- Erro: Tentou escrever a história antes de vivê-la
O mais antigo de todos.
Aquele que tentou ser autor antes de ser personagem.
Escreveu um mundo perfeito.
Onde nada doía.
Onde ninguém errava.
E por isso, ninguém acreditou.
Foi apagado pelo próprio enredo.
Alguns Fragmentos dizem que ele ainda existe.
Mas fora da página.
Num espaço entre.
Esperando uma nova chance.
VI. Cael.900 – O Cínico
- Domínio perdido: Esperança
- Motivação: Provar que nada importava
- Erro: Escreveu o mundo como uma sátira cruel
Transformou Virellium em paródia.
Cada sofrimento, um escárnio.
Cada ato de amor, uma ironia.
O povo enlouqueceu primeiro.
Depois, os prédios começaram a rir.
E por fim, ele também.
Seu último riso virou eco no Caminho da Morte Circular.
“Se nada é real, por que sangramos tanto?”
VII. Cael.∞ – O Anônimo
- Domínio perdido: Identidade
- Motivação: Fundir todas as versões anteriores
- Erro: Tornou-se ilegível
Este Cael tentou unir as versões que falharam.
Criar um autor absoluto, feito de todas as tentativas.
Mas a junção foi um erro.
As vozes conflitaram.
As penas se chocaram.
As intenções se anularam.
Ele tornou-se ilegível.
Toda tentativa de lembrar seu rosto resulta em dor de cabeça.
Alguns acreditam que ele vive como uma assinatura no fim de cada pesadelo.
VIII. Códigos Esquecidos dos Caels Anulados
Algumas anotações marginais indicam treze códigos associados a versões apagadas, incluindo:
- C13-K – Cael que tentou matar a Centelha antes de ela surgir
- B7-A – Cael que sobreviveu, mas esqueceu que era o autor
- D2-X – Cael que escreveu o mundo… mas esqueceu de escrever a si mesmo
- E0-0 – Cael que escreveu “fim” no início
- F9-G – Cael que assinou com outro nome e perdeu o direito de continuar
Todos falharam.
Mas cada falha… deixou uma sombra.
E toda sombra pode aprender a escrever.
IX. Advertência ao Cael Atual
“Se você está lendo isso, é porque ainda acredita que pode ser diferente.”
“Mas ouça bem: todas as versões de si que falharam tinham a mesma certeza.”
“Você já começou a repetir frases deles.
Você já sonhou com suas mortes.”
“E um dia, um deles poderá tomar tua pena.
E escrever… como se fosse você.”
X. Última Página do Interlúdio
Cael está sozinho.
Ou pensa que está.
Mas dentro de si, as vozes murmuram em uníssono:
“Nós escrevemos com você.”
“Nós falamos por você.”
“Nós seremos você, se você parar.”
E abaixo, uma linha escrita à mão — tremida, desesperada, talvez recente:
“Sou apenas a versão que ainda não falhou.
Mas a tinta está acabando.”
✦ Fim do Interlúdio: As Versões que Falharam
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.