Virellium não dormia mais.

    Não como antes.

    A cidade respirava em espasmos. As vielas se curvavam como lombadas de livros antigos, as janelas piscavam em sincronia com sussurros que ninguém queria ouvir. Palavras apagadas escorriam pelas rachaduras das pedras, e os lampiões acesos tremeluziam com a ansiedade de velas em vigília fúnebre.

    Era como se a cidade estivesse tentando esquecer algo que ainda não havia acontecido.

    Ou alguém.

    Cael Thornwald caminhava sozinho pelas ruas — sem destino, sem vigilância.

    A pena negra permanecia presa ao cinto, como uma adaga silenciosa, e o caderno que sangrava palavras falsas dormia em seu sobretudo.

    Mas ele sabia: não estava sozinho.

    Mesmo que ninguém o acompanhasse.

    Cada esquina parecia conhecê-lo.

    Cada vitrine em ruínas refletia sua silhueta com leves distorções — às vezes mais alta, às vezes encurvada, às vezes… de costas para ele.

    Em uma rua estreita no Distrito das Penas Mortas, as palavras de uma placa tremiam como se desejassem recuar:

    “Não olhe para trás, Cael.”

    Ele não se virou.

    Mas sentiu.

    Alguém — ou algo — caminhava atrás dele com o exato mesmo ritmo.

    As paredes vibravam.

    Não com som.

    Com memória.

    Frases esquecidas dançavam sob a superfície das pedras. Frases que Cael não lembrava de ter lido, mas que pareciam familiares demais para serem novas:

    • “Ele já fez isso antes.”
    • “Essa versão falhará também.”
    • “Quantos Caels já houve?”

    Ao ouvir essa última, Cael parou.

    O eco da pergunta ressoou dentro de si com o peso de um abismo.

    “Quantos Caels já houve?”

    Eco.

    Ressonância.

    Vazio.

    Olhou para o reflexo em uma vitrine quebrada.

    E viu a si mesmo — de costas.

    Vestido como estava, com a mesma postura, mas imóvel.

    O reflexo virou-se devagar, revelando um rosto com cicatrizes que Cael não tinha.

    E então… sorriu.

    Mas não com a boca.

    Com os olhos.

    E desapareceu em uma espiral de névoa.

    — Que… — murmurou Cael, cambaleando.

    Tocou o vidro.

    Não havia mais reflexo.

    Apenas o próprio rosto, agora pálido, suando frio.

    “Quantos Caels já houve?”

    A frase voltava a cada passo.

    Como uma pergunta escrita na pele do mundo.

    Cruzou a Praça dos Nomes Perdidos e encontrou Leor sentado em um banco, cercado por pombos imóveis — como se o tempo tivesse parado para observá-lo.

    O amigo o olhou, e algo em seus olhos parecia… deslocado.

    — Achei que você não fosse voltar aqui — disse Leor, com um tom que Cael não reconheceu.

    — Voltar?

    — Desde aquela vez, sabe… a noite em que você morreu na Biblioteca Afogada.

    Cael congelou.

    — O quê?

    Leor franziu a testa.

    — Você… lembra, não lembra? A gente fugiu pelos corredores que se dobravam. Você caiu nas águas e… e sua mão ficou escrita por três dias. Não lembra da palavra?

    Cael não respondeu.

    Porque não havia essa lembrança.

    Não para ele.

    — Isso nunca aconteceu, Leor.

    — Claro que aconteceu — disse o outro, levantando-se. — Eu… eu te ajudei a apagar a palavra. Era “SAEL”. Você dizia que era seu nome invertido. E que por isso… tinha que morrer de novo.

    Silêncio.

    Cael sentiu a cidade se mover.

    Não com o vento.

    Mas como um livro virando a página.

    Eles seguiram lado a lado pela Rua das Margens Ausentes — onde o calçamento rangia com frases mutiladas e onde, dizem, cada sombra que surge é de alguém que nunca existiu.

    — Você está lembrando errado — disse Cael, por fim. — Ou está lembrando de… outro.

    Leor parou.

    Olhou-o nos olhos.

    E pela primeira vez, Cael viu medo real.

    — Cael… e se eu não for o mesmo Leor?

    Silêncio.

    Tenso.

    Denso.

    Cortado apenas por um som distante — algo entre riso e choro.

    Mais à frente, uma casa abandonada chamava por ele.

    Literalmente.

    Na porta, rabiscado com sangue escuro, lia-se:

    “Cael, entre. Já vivemos isso antes.”

    Ele não queria entrar.

    Mas seus pés o levaram.

    A madeira da porta cedeu com um gemido que parecia dizer: “de novo?”

    Dentro, um espelho.
    Alto. Rachado. Quase familiar.

    E escrito no vidro, ao contrário:

    “VOCÊ NÃO É O PRIMEIRO.”

    Ao se aproximar, Cael viu.

    Outras versões.

    Reflexos de si mesmo com pequenas variações:

    • Um Cael cego.
    • Um Cael com asas de pena viva.
    • Um Cael com os olhos costurados.
    • Um Cael… sorrindo demais.

    Todos o encarando.
    Todos aguardando.
    Todos… ressentidos.

    “Quantos Caels já houve?”

    A frase retornava com o peso de revelação.

    Ou de sentença.

    Voltou à rua, onde Leor aguardava com o olhar perdido.

    — E se… e se essa cidade não estiver quebrando… — disse ele — …mas apenas mostrando todas as versões que tentaram dar certo?

    Cael passou a mão pela testa. Estava suando frio.

    A pena negra vibrava.
    Mas não com poder.
    Com hesitação.

    — Talvez… — murmurou ele — talvez não estejamos mais no mundo que criamos.
    — Talvez estejamos na margem entre mundos que tentamos salvar.

    Ao longe, os sinos dobravam — mas não em anúncio.

    Era um aviso.

    Era contagem.

    Treze badaladas.

    E na última, Cael viu algo impossível: A Centelha, parada em meio ao cruzamento adiante.

    Ela não dizia nada.

    Não sorria.

    Apenas… observava.

    E ao piscar, desapareceu.

    Na parede ao lado, uma nova frase havia sido escrita.

    Sangue fresco.

    Letra curva.

    “A Centelha é o espelho que ri quando esquecemos de ser reflexo.”

    Cael tocou a frase.

    Ela escorreu como tinta viva.

    E sussurrou:

    “Você precisa lembrar do que nunca viveu.”

    Eles caminharam até a antiga estação da Névoa Reta — onde os trilhos levam a lugar nenhum e voltavam como perguntas sem resposta.

    Lá, encontraram um velho dormindo sobre jornais que não existiam.

    Ao se aproximarem, o velho murmurou:

    — Cael Thornwald. Outra vez. Você já morreu aqui cinco vezes. Cada vez com uma frase diferente.

    — Que frase? — perguntou Cael, engolindo em seco.

    — Uma foi “Confie em Leor.”
    Outra foi “Você é apenas o esboço.”
    E a última… “Apague-se.”

    O velho voltou a dormir.

    E Cael… tremeu.

    No céu, surgiram espirais de luz — não do sol, mas de palavras que tentavam ser lidas sem ser escritas.

    E uma nova voz ecoou.

    Não fora dele.

    Mas de dentro.

    “Quantos Caels já houve?”

    O capítulo termina com Cael ajoelhando em meio à rua, olhos fechados, a pena negra ardendo na mão, enquanto todas as versões de si mesmo se acumulam nas margens do espelho do mundo.

    E uma última frase riscada aparece no chão, como uma maldição prestes a ser cumprida:

    “A próxima versão não será piedosa.”

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