Capítulo 16 – As Palavras que se Apagam
Havia algo perversamente reconfortante na taverna “Os Três Epitáfios”. O cheiro de madeira encharcada, o chiado baixo da lareira sempre acesa, o rumor das conversas que preenchiam o espaço como velhos livros abertos — tudo conspirava para criar a ilusão de que o mundo ainda funcionava.
Ou fingia funcionar.
Cael entrou primeiro, o sobretudo marcado por fragmentos de palavras coladas pela névoa. Leor o seguiu com passos lentos, o olhar girando em torno do ambiente como se cada cliente ali pudesse ser um eco de algo esquecido.
Senna já estava sentada em uma mesa de canto, os olhos fixos numa xícara de porcelana rachada. A luz âmbar da luminária pendia acima como uma interrogação torta.
Por alguns instantes, era possível acreditar que nada estava errado.
Mas então, as palavras começaram a desaparecer.
— Você não devia ter vindo pelo norte — disse Leor, puxando a cadeira.
— Eu não vim pelo norte — respondeu Cael, confuso.
Senna levantou os olhos, como se estivesse escutando algo que não queria entender.
— Cael… — começou ela — você lembra quando estivemos aqui da última vez?
— Claro. Foi quando fugimos dos Anuladores. Você quase foi pega pela—
Ela piscou.
E franziu a testa.
— Fugimos de quem?
Cael parou.
— Dos Anuladores. Você… gritou meu nome quando eles rasgaram o chão com aqueles ganchos. Você me chamou—
— Cael — interrompeu ela, com a voz estranhamente calma. — Isso não aconteceu.
Ele a encarou.
— Sim, aconteceu. Foi aqui. Você teve uma cicatriz na panturrilha por semanas depois daquilo.
Senna olhou para a própria perna. Nenhuma cicatriz. Nem sombra dela.
Ela apenas murmurou:
— Acho que você está confundindo com outra coisa…
Cael recostou-se na cadeira, desconcertado. As vozes ao redor oscilavam.
Não em volume. Em permanência.
As frases ditas por outros clientes flutuavam no ar como traços de fumaça. Mas ao invés de dissiparem lentamente, elas sumiam. Literalmente.
Frase após frase dissolvia no ar, como se a própria linguagem estivesse sendo desautorizada.
Uma mulher ao lado disse algo ao garçom. Cael viu seus lábios se moverem. Viu o som sair. Mas a frase desapareceu a meio caminho. Como se o mundo tivesse deixado de reconhecer o conceito da fala.
— Você viu isso? — perguntou ele a Leor.
Leor assentiu, olhos arregalados.
— Isso começou quando entramos — disse ele, baixo. — Os sons ainda existem. Mas… as frases não. Elas são apagadas.
— Apagadas por quem?
Senna respondeu, sem olhar para eles:
— Talvez alguém esteja escrevendo outra coisa por cima.
No balcão, o espelho rachado devolvia imagens atrasadas. Reflexos que se moviam um segundo depois. Alguns, nem isso.
Cael observou um homem beber. No reflexo, o homem não estava lá. E no instante seguinte… o homem também desapareceu da taverna.
As palavras estavam desaparecendo. E agora… as pessoas também.
— Nós precisamos sair — disse Leor, levantando-se. — Agora.
— Espera — murmurou Cael, os olhos fixos numa sombra presa à parede. — Olha aquilo.
A sombra de uma mulher sentada sozinha. Mas não havia ninguém na cadeira.
A sombra continuava ali, imóvel, como um rascunho não apagado. E então, no ar acima da mesa, surgiu uma frase:
“Ela foi escrita. Mas nunca vivida.”
— Senna — disse Cael, com a voz tensa — me diz o que aconteceu na primeira vez que você segurou a pena negra.
Ela hesitou. Olhou para ele. E sua expressão ficou… vazia.
— Que pena?
Cael congelou.
— A pena. Aquela que tiramos da sala do Escriba da Ruína. Aquela que—
Ela balançou a cabeça.
— Eu não… Cael, nunca vi essa pena.
— Você a usou. Você escreveu no chão da Sé, Senna! Você fez a parede desaparecer!
— Isso não aconteceu.
Leor se afastou.
— Cael… ela está certa. Eu… também não lembro disso.
A cadeira de Senna rangeu. Mas Cael não conseguia mais olhar para ela. Porque em seu lugar, ele viu… outra pessoa. Outro rosto. Sem nome. Sem expressão. Como se Senna estivesse sendo reescrita em tempo real. Como se o conceito de “Senna” estivesse sendo editado.
Ele apertou a pena negra sob o sobretudo. Ela ainda vibrava. Ainda sabia o que estava errado.
— Saímos — disse ele, de repente.
Eles levantaram-se, saíram. O ar fora da taverna estava mais denso, quase sólido. Como caminhar por dentro de um parágrafo trancado. Ao olhar para trás, Cael viu que o letreiro da taverna agora dizia:
“Os Dois Epitáfios”
Na rua, o silêncio reinava. Nenhuma palavra flutuava no ar. Somente frases caídas no chão, rachadas, como cacos de vidro linguístico.
Cael caminhava como quem persegue uma lembrança. Até que a mão direita esbarrou no bolso interno do sobretudo. Algo estava ali. Algo que não deveria estar.
Tirou o objeto com cuidado. Era uma pena. Antiga. Cinzenta. Com as bordas desfiadas como asas de pássaro queimada. Não a pena negra que o acompanhava. Outra. Mais velha. Mais… familiar.
E nela, uma frase gravada a fogo:
“Use-me quando esquecer o que nunca viveu.”
Cael olhou para Senna e Leor. Eles estavam discutindo algo — mas as palavras… não saíam. Ou saíam. Mas sumiam. Como respirações em um inverno muito mais frio do que a carne entende.
Ele apertou a pena nova entre os dedos. E naquele instante, a rua pareceu se curvar. Como se o mundo estivesse prestes a lembrar algo… que nunca existiu.
Aos poucos, as fachadas dos prédios ao redor começaram a tremer. Palavras ocultas vinham à tona nos muros, frases antes apagadas reapareciam — nomes riscados, datas que nunca foram ditas, memórias que não pertenciam a ninguém. Leor olhou ao redor, assustado.
— Isso é… como se a realidade estivesse tentando se lembrar de versões anteriores de si mesma — disse ele, sussurrando.
Senna caiu de joelhos. Não por fraqueza, mas como se tivesse sido puxada por uma força que agia dentro da linguagem. Do chão, ela murmurou:
— Eu lembro… algo. Um quarto com páginas no teto. Um nome que eu não devia conhecer. Alguém… me chamou de Cifra. Eu…
Cael não sabia como reagir. Aquilo não fazia sentido. Ou fazia. Demais.
Ele olhou para a pena cinzenta. Não era apenas um artefato. Era um fragmento de um autor.
E naquele momento, o céu se partiu.
Não em trovões ou luz. Mas em frases. Chovia texto. Literalmente.
Páginas rasgadas caíam das nuvens, cada uma com um fragmento de memória. Algumas pareciam pertencer a livros que Cael havia lido. Outras… vinham dele mesmo.
Uma página caiu sobre seu ombro. Lia-se:
“Cael Thornwald não existe desde o Capítulo 9.”
Ele olhou para Leor, e entendeu: o mundo não estava sendo apagado. Estava sendo revisado. Por alguém que ainda escrevia por trás do véu.
O capítulo termina com Cael de pé diante de uma parede pálida, onde surgem — uma a uma — frases que haviam sido apagadas. E entre elas, uma que brilha:
“Você já escreveu demais, Cael. Talvez essa seja sua versão final.”
E, do nada, atrás dele… O som de páginas virando.
Mas não havia vento.
Nem livro aberto.
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