O dia em Virellium amanhecera sem sol.

    Apenas uma luz opaca se esgueirava entre os prédios de pedra, como se o próprio céu hesitasse em revelar demais. Era o tipo de luz que deixava as coisas visíveis, mas não compreensíveis.

    Cael Thornwald caminhava em silêncio pelas margens do bairro Sul-Cinzel, com Senna e Leor alguns passos atrás. Nenhum deles falava. Havia uma tensão suspensa entre as palavras — não entre eles, mas dentro do próprio mundo. Como se a cidade, em seus alicerces, começasse a perceber que estava sendo contada por alguém que não a compreendia.

    Havia uma casa em ruínas ao lado do canal dos Cantores Surdos. Um prédio antigo, marcado por símbolos apagados e janelas veladas por panos costurados com frases rasuradas. Eles pararam ali, não porque soubessem o motivo, mas porque sentiram que deviam.

    — Vocês ouviram isso? — perguntou Senna, a voz baixa.

    — O quê? — murmurou Leor, atento.

    Ela hesitou.

    — Não sei. Uma palavra que não terminou de nascer.

    Cael se adiantou, como se o prédio o chamasse. Como se uma lembrança desconhecida tivesse despertado.

    — Vamos entrar — disse ele.

    O interior era úmido. As tábuas rangiam como se lessem em voz alta cada passo dos invasores. Teias de aranha preenchiam os cantos, mas nelas não havia aranhas — apenas letras, como pequenos alfabetos mortos presos no fio.

    No centro da sala, sobre uma cadeira destruída, repousava um livro. A capa de couro estava coberta por um tecido translúcido, onde frases apagadas pulsavam levemente como veias sob a pele.

    Cael aproximou-se, mas foi Leor quem o pegou.

    — Não está frio — disse Leor, franzindo a testa. — Está… morno.

    Senna aproximou-se. Havia algo no ar. Como uma expectativa. Como o som de alguém virando páginas no andar de cima, embora soubessem que estavam sozinhos.

    Leor tirou o tecido e abriu o livro.

    A primeira página estava em branco.

    A segunda também.

    Mas na terceira, palavras começaram a surgir.

    Sozinhas.

    Letra por letra, com uma caligrafia tremida, quase infantil.

    Senna segurou o punho de Cael.

    Leor leu em voz alta:

    > “Este é o livro das palavras que ainda não decidiram existir.”

    Cael sentiu um leve calafrio correr pela espinha.

    > “Frases negadas. Nomes suprimidos. Verdades adiadas.”

    A tinta parecia surgir de dentro do papel, como se fosse suor.

    E então, surgiu:

    > “Cael. O Rascunho.”

    Cael caiu de joelhos.

    O impacto foi direto. Não físico. Não mental. Algo além — como se todas as camadas de sua existência tivessem se contraído.

    A dor não era em um ponto. Era total. Como se cada célula reagisse ao som de seu nome.

    Senna ajoelhou ao seu lado, desesperada.

    — O que houve? Fala comigo!

    Cael apertava o próprio peito. Sua respiração era curta, mas os olhos estavam lúcidos — e com medo.

    — Leor… — ele disse, quase sem voz. — Nunca diga meu nome de novo… se ele estiver escrito naquele livro.

    — Por quê?

    — Porque doeu. — Ele engasgou com a própria saliva. — Como se eu estivesse sendo… *confirmado.*

    Leor fechou o livro com força. O som do fecho reverberou como um sino oco. E naquele instante, algo caiu do teto — uma lasca de tinta. Era como se as paredes também reagissem.

    Cael encostou-se na parede, sentado no chão, suando.

    — Estou cansado de não saber se existo por mim ou por quem me escreve.

    — Você está aqui — disse Senna, firme.

    — Estou, mas por quanto tempo? — murmurou ele. — E mais importante… por vontade de quem?

    Silêncio.

    Voltaram à hospedaria antes que o céu escurecesse. O livro fora embrulhado em panos e guardado com cautela por Leor. Nenhum deles quis mais tocá-lo naquele momento. Era como uma bomba em repouso.

    No quarto, o vento que entrava pela janela trazia consigo cheiro de papel velho. As cortinas balançavam sem ritmo, e as velas tremulavam mesmo sem corrente de ar.

    Cael sentou-se à mesa.

    O silêncio da cidade parecia agora um eco atrasado de uma leitura antiga.

    — Vocês lembram da primeira vez que usei a pena? — perguntou ele.

    Senna assentiu lentamente.

    Leor não.

    — Eu me lembro de você descrevendo — disse ele. — Mas não estava presente.

    — Não é possível. Você estava. Nós três estávamos lá.

    Leor ergueu uma sobrancelha.

    — Não, Cael. Você escreveu isso. E contou. Mas nós não vivemos juntos.

    Cael se levantou.

    — Não… Não pode ser.

    — Pode, sim — disse Senna, baixando o tom. — E já aconteceu antes.

    — O quê?

    — Você lembrar de coisas que a gente não viveu com você.

    Cael passou a mão pelo rosto. Sua pele estava fria.

    Demais.

    Leor suspirou.

    — E se você não está lembrando errado?

    E se… o que você lembra pertence a outro Cael?

    Cael o encarou.

    A frase soava absurda.

    E perfeitamente coerente.

    — Se isso for verdade… então o que sou eu agora? — perguntou ele. — Uma versão temporária? Um substituto entre fracassos?

    Senna sentou-se ao lado dele.

    — Não. Você é você. E está aqui. Com a gente.

    — Por enquanto.

    — Isso basta — respondeu ela, firme. — Cada palavra dita no agora é mais real do que o medo do que veio antes.

    Na madrugada, Cael acordou com o som do livro.

    Não virando páginas.

    Mas murmurando.

    Levantou-se. Aproximou-se.

    As páginas estavam abertas. Palavras surgiam e desapareciam com velocidade incerta. Como batimentos cardíacos.

    Ele leu:

    > “Cael.672.

    > Status: ativo.

    > Reescrita em risco.”

    > “Fragmentação: 61%”

    > “Registro atual: sujeito acredita ser o original.

    > Correção em andamento.”

    Cael trancou o livro.

    Mas as palavras continuavam… em sua mente.

    Pela manhã, Senna fez chá com raízes amargas. Leor reorganizava anotações soltas, conectando pistas sobre a Última Página e os Treze Fragmentos.

    Cael escrevia.

    Não no caderno oficial.

    Num papel solto.

    Escrevia o próprio nome.

    “Cael.”

    E, a cada vez, sentia uma variação.

    Uma vibração.

    Um desconforto.

    Um leve afastamento de si.

    Até que parou.

    E escreveu outra coisa:

    > “Se sou uma história, quem segura minha pena?”

    Ao meio-dia, saíram. Precisavam respirar fora da realidade trincada do quarto.

    Passaram pela Rua dos Códigos Mortos, onde as estátuas dos fundadores da cidade estavam sem olhos — com símbolos escritos sobre as pálpebras de pedra.

    Ali, Senna sentiu algo. Parou.

    Apontou para a lateral de um muro desabado.

    Entre tijolos partidos, uma frase escondida:

    > “Cael, pare de tentar se lembrar. Isso te aproxima do fim.”

    Voltaram em silêncio.

    No fim da tarde, enquanto o sol se apagava sob a névoa, Leor estendeu a Cael algo que encontrara ao remexer seus próprios bolsos:

    — Isso é seu?

    Cael pegou o objeto.

    Era uma pena.

    Mas não a negra.

    Não a dourada.

    Era **cinzenta**, envelhecida, quebrada na ponta.

    Ele nunca a vira antes.

    E, ainda assim… algo nela era familiar.

    Algo **dele**.

    Ele passou os dedos sobre a pena.

    Sentiu um calafrio.

    — O que é isso? — perguntou Senna.

    Cael fechou os olhos.

    E respondeu:

    — É uma versão anterior.

    Leor arregalou os olhos.

    — De você?

    — Não só. — Cael olhou para a pena. — De quem eu fui.

    Ou… do que sobrou quando me apagaram pela última vez.

    A pena tremeu.

    E dele, brotou uma lembrança que não era sua:

    > Uma janela riscada.

    > Uma cidade feita de frases partidas.

    > Um reflexo sorrindo sem boca.

    O capítulo termina com Cael sentado à escrivaninha.

    O livro pulsando no canto.

    A pena cinzenta em sua mão.

    E na janela, gravada em vapor, uma nova frase escrita por ninguém:

    > “Toda história sabe quando está prestes a morrer.”

    Cael encosta a testa no vidro.

    E sussurra:

    — E toda história… sente medo de virar personagem.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota