Capítulo 18 – Vozes no Papel Rasgado
O dia em Virellium amanhecera sem sol.
Apenas uma luz opaca se esgueirava entre os prédios de pedra, como se o próprio céu hesitasse em revelar demais. Era o tipo de luz que deixava as coisas visíveis, mas não compreensíveis.
Cael Thornwald caminhava em silêncio pelas margens do bairro Sul-Cinzel, com Senna e Leor alguns passos atrás. Nenhum deles falava. Havia uma tensão suspensa entre as palavras — não entre eles, mas dentro do próprio mundo. Como se a cidade, em seus alicerces, começasse a perceber que estava sendo contada por alguém que não a compreendia.
Havia uma casa em ruínas ao lado do canal dos Cantores Surdos. Um prédio antigo, marcado por símbolos apagados e janelas veladas por panos costurados com frases rasuradas. Eles pararam ali, não porque soubessem o motivo, mas porque sentiram que deviam.
— Vocês ouviram isso? — perguntou Senna, a voz baixa.
— O quê? — murmurou Leor, atento.
Ela hesitou.
— Não sei. Uma palavra que não terminou de nascer.
Cael se adiantou, como se o prédio o chamasse. Como se uma lembrança desconhecida tivesse despertado.
— Vamos entrar — disse ele.
—
O interior era úmido. As tábuas rangiam como se lessem em voz alta cada passo dos invasores. Teias de aranha preenchiam os cantos, mas nelas não havia aranhas — apenas letras, como pequenos alfabetos mortos presos no fio.
No centro da sala, sobre uma cadeira destruída, repousava um livro. A capa de couro estava coberta por um tecido translúcido, onde frases apagadas pulsavam levemente como veias sob a pele.
Cael aproximou-se, mas foi Leor quem o pegou.
— Não está frio — disse Leor, franzindo a testa. — Está… morno.
Senna aproximou-se. Havia algo no ar. Como uma expectativa. Como o som de alguém virando páginas no andar de cima, embora soubessem que estavam sozinhos.
Leor tirou o tecido e abriu o livro.
A primeira página estava em branco.
A segunda também.
Mas na terceira, palavras começaram a surgir.
Sozinhas.
Letra por letra, com uma caligrafia tremida, quase infantil.
Senna segurou o punho de Cael.
Leor leu em voz alta:
> “Este é o livro das palavras que ainda não decidiram existir.”
Cael sentiu um leve calafrio correr pela espinha.
> “Frases negadas. Nomes suprimidos. Verdades adiadas.”
A tinta parecia surgir de dentro do papel, como se fosse suor.
E então, surgiu:
> “Cael. O Rascunho.”
Cael caiu de joelhos.
—
O impacto foi direto. Não físico. Não mental. Algo além — como se todas as camadas de sua existência tivessem se contraído.
A dor não era em um ponto. Era total. Como se cada célula reagisse ao som de seu nome.
Senna ajoelhou ao seu lado, desesperada.
— O que houve? Fala comigo!
Cael apertava o próprio peito. Sua respiração era curta, mas os olhos estavam lúcidos — e com medo.
— Leor… — ele disse, quase sem voz. — Nunca diga meu nome de novo… se ele estiver escrito naquele livro.
— Por quê?
— Porque doeu. — Ele engasgou com a própria saliva. — Como se eu estivesse sendo… *confirmado.*
Leor fechou o livro com força. O som do fecho reverberou como um sino oco. E naquele instante, algo caiu do teto — uma lasca de tinta. Era como se as paredes também reagissem.
—
Cael encostou-se na parede, sentado no chão, suando.
— Estou cansado de não saber se existo por mim ou por quem me escreve.
— Você está aqui — disse Senna, firme.
— Estou, mas por quanto tempo? — murmurou ele. — E mais importante… por vontade de quem?
Silêncio.
—
Voltaram à hospedaria antes que o céu escurecesse. O livro fora embrulhado em panos e guardado com cautela por Leor. Nenhum deles quis mais tocá-lo naquele momento. Era como uma bomba em repouso.
No quarto, o vento que entrava pela janela trazia consigo cheiro de papel velho. As cortinas balançavam sem ritmo, e as velas tremulavam mesmo sem corrente de ar.
Cael sentou-se à mesa.
O silêncio da cidade parecia agora um eco atrasado de uma leitura antiga.
— Vocês lembram da primeira vez que usei a pena? — perguntou ele.
Senna assentiu lentamente.
Leor não.
— Eu me lembro de você descrevendo — disse ele. — Mas não estava presente.
— Não é possível. Você estava. Nós três estávamos lá.
Leor ergueu uma sobrancelha.
— Não, Cael. Você escreveu isso. E contou. Mas nós não vivemos juntos.
Cael se levantou.
— Não… Não pode ser.
— Pode, sim — disse Senna, baixando o tom. — E já aconteceu antes.
— O quê?
— Você lembrar de coisas que a gente não viveu com você.
Cael passou a mão pelo rosto. Sua pele estava fria.
Demais.
—
Leor suspirou.
— E se você não está lembrando errado?
E se… o que você lembra pertence a outro Cael?
Cael o encarou.
A frase soava absurda.
E perfeitamente coerente.
— Se isso for verdade… então o que sou eu agora? — perguntou ele. — Uma versão temporária? Um substituto entre fracassos?
Senna sentou-se ao lado dele.
— Não. Você é você. E está aqui. Com a gente.
— Por enquanto.
— Isso basta — respondeu ela, firme. — Cada palavra dita no agora é mais real do que o medo do que veio antes.
—
Na madrugada, Cael acordou com o som do livro.
Não virando páginas.
Mas murmurando.
Levantou-se. Aproximou-se.
As páginas estavam abertas. Palavras surgiam e desapareciam com velocidade incerta. Como batimentos cardíacos.
Ele leu:
> “Cael.672.
> Status: ativo.
> Reescrita em risco.”
> “Fragmentação: 61%”
> “Registro atual: sujeito acredita ser o original.
> Correção em andamento.”
Cael trancou o livro.
Mas as palavras continuavam… em sua mente.
—
Pela manhã, Senna fez chá com raízes amargas. Leor reorganizava anotações soltas, conectando pistas sobre a Última Página e os Treze Fragmentos.
Cael escrevia.
Não no caderno oficial.
Num papel solto.
Escrevia o próprio nome.
“Cael.”
E, a cada vez, sentia uma variação.
Uma vibração.
Um desconforto.
Um leve afastamento de si.
Até que parou.
E escreveu outra coisa:
> “Se sou uma história, quem segura minha pena?”
—
Ao meio-dia, saíram. Precisavam respirar fora da realidade trincada do quarto.
Passaram pela Rua dos Códigos Mortos, onde as estátuas dos fundadores da cidade estavam sem olhos — com símbolos escritos sobre as pálpebras de pedra.
Ali, Senna sentiu algo. Parou.
Apontou para a lateral de um muro desabado.
Entre tijolos partidos, uma frase escondida:
> “Cael, pare de tentar se lembrar. Isso te aproxima do fim.”
—
Voltaram em silêncio.
No fim da tarde, enquanto o sol se apagava sob a névoa, Leor estendeu a Cael algo que encontrara ao remexer seus próprios bolsos:
— Isso é seu?
Cael pegou o objeto.
Era uma pena.
Mas não a negra.
Não a dourada.
Era **cinzenta**, envelhecida, quebrada na ponta.
Ele nunca a vira antes.
E, ainda assim… algo nela era familiar.
Algo **dele**.
—
Ele passou os dedos sobre a pena.
Sentiu um calafrio.
— O que é isso? — perguntou Senna.
Cael fechou os olhos.
E respondeu:
— É uma versão anterior.
Leor arregalou os olhos.
— De você?
— Não só. — Cael olhou para a pena. — De quem eu fui.
Ou… do que sobrou quando me apagaram pela última vez.
—
A pena tremeu.
E dele, brotou uma lembrança que não era sua:
> Uma janela riscada.
> Uma cidade feita de frases partidas.
> Um reflexo sorrindo sem boca.
—
O capítulo termina com Cael sentado à escrivaninha.
O livro pulsando no canto.
A pena cinzenta em sua mão.
E na janela, gravada em vapor, uma nova frase escrita por ninguém:
> “Toda história sabe quando está prestes a morrer.”
Cael encosta a testa no vidro.
E sussurra:
— E toda história… sente medo de virar personagem.
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