Capítulo 19 – A Ponte Não Vista
Virellium respirava pelas frestas.
Não como uma cidade viva, mas como uma criatura adormecida, que sonhava consigo mesma e se esquecia a cada ciclo. As ruas estavam mais silenciosas do que o habitual, como se o som estivesse preso atrás das paredes, hesitando em atravessar.
Era fim de tarde quando Cael, Senna e Leor deixaram a hospedaria. Não tinham um destino exato, apenas a necessidade de sair, de respirar longe das frases que apareciam sozinhas nos vidros do quarto e das páginas que viravam mesmo com as janelas fechadas.
— Vamos para os bairros baixos — sugeriu Leor, ajeitando o colar de prata no pescoço. — O Mercado dos Lamentos pode ter alguma pista nova. Ou alguém vendendo o que não devia existir.
— O que esperamos encontrar lá? — perguntou Senna, sem esconder o cansaço.
Cael não respondeu. Seus olhos estavam fixos no horizonte, como se tentasse encontrar algo que só ele via — ou lembrava.
Havia dias em que ele sentia que a cidade o observava. Mas naquele, era diferente.
Naquela tarde, ele sentia que Virellium **o reconhecia.**
—
O caminho os levou até o coração de uma viela conhecida como **Travessa dos Vagalumes Partidos**, um nome que já não fazia mais sentido — não havia mais vaga-lumes ali, apenas sombras pequenas que se apagavam antes de serem vistas.
As casas se espremiam umas contra as outras como livros mal empilhados. As portas eram estreitas, de madeira escurecida, e as janelas protegidas por grades de ferro em forma de palavras tortas. Lá, o tempo não passava: girava em círculos, como um ponteiro cansado tentando alcançar algo que havia esquecido.
— Ali — disse Senna, apontando discretamente com o queixo.
Entre duas arcadas de pedra, sentada sobre um caixote gasto, uma velha mulher vendia velas.
Não havia tenda, nem mesa, nem nome. Apenas ela e uma bandeja de ferro onde repousavam dezessete velas de diferentes tamanhos. A maioria era branca, mas três tinham tons esverdeados, e duas — as mais finas — eram pretas como a pena de Cael.
— Ela está fora de lugar — murmurou Leor. — Isso aqui não é ponto para venda. Ninguém atravessa essa rua por engano.
— Talvez ela não queira ser vista — disse Cael, e começou a se aproximar.
—
A mulher ergueu os olhos. Eram cinzentos e trêmulos, mas com um brilho que parecia memória.
Seu rosto estava marcado por rugas fundas — não de idade, mas de palavras. Era como se cada linha fosse um traço de escrita que tentara fugir da boca.
Ela sorriu antes que qualquer um dissesse algo.
— Boa noite, meus espectros favoritos.
Senna parou.
— Nós nos conhecemos?
— Ainda não. Mas isso nunca impediu ninguém de esquecer, certo?
Leor se enrijeceu.
— Esquecer o quê?
— A travessia.
—
Cael se aproximou. Seu olhar pousou sobre as velas. Elas não pareciam comuns.
Nenhuma tremia. Nenhuma derretia.
Mas ele sentia calor.
Um calor sutil, interior. Como se as velas iluminassem… lembranças.
— São para venda? — perguntou.
— Nada que vale seja vendido. Só deixado para trás — respondeu a mulher.
— E o que é isso aqui?
Ela passou a mão sobre a bandeja, sem tocá-las.
— Memórias disfarçadas de luz. Histórias que preferiram se apagar do que serem lembradas erradas.
Cael franziu o cenho.
— Que tipo de histórias?
Ela o encarou.
E pela primeira vez, o ar pareceu pesar.
— Aquelas que cruzaram a Ponte.
—
Cael sentiu o mundo desacelerar por um segundo.
— Que ponte?
A mulher ergueu a mão e apontou para o vazio à esquerda.
Nada havia ali. Apenas neblina.
Mas o gesto foi firme.
— A **Ponte das Almas**.
Senna se aproximou, lenta, como se temesse o nome.
— Isso é uma lenda urbana. Algo que a Sé dos Olhos Velados repete para assustar os iniciados.
— Lendas são apenas verdades ditas em voz baixa — respondeu a velha. — E essa é sussurrada desde antes da cidade ser escrita.
— Escrita?
— Toda cidade é um texto. E toda ponte… é uma vírgula antes do esquecimento.
Cael manteve os olhos fixos na mulher, tentando medir onde terminava a metáfora e começava a ameaça real.
— Diga o que sabe — pediu. — A verdade. Sem véus.
A velha riu, mas foi um som sem ironia — seco, pequeno, como se já estivesse acostumada a ser desacreditada.
— A verdade nunca está sozinha — disse ela, olhando para as velas. — Sempre vem acompanhada de versões que gritam mais alto.
Ela pegou uma das velas pretas, a mais fina.
— A Ponte das Almas aparece apenas uma vez.
Nunca no mesmo lugar.
Nunca da mesma forma.
Mas para todos… ela tem o mesmo preço.
— E qual seria? — murmurou Leor.
Ela olhou para ele, e por um instante, seus olhos pareceram mais jovens.
Mais perigosos.
— A identidade.
Silêncio.
Senna se encolheu ligeiramente.
— Está dizendo que quem atravessa esquece quem é?
— Não. — A mulher passou a ponta do dedo sobre a cera fria. — Estou dizendo que quem atravessa… esquece que existiu.
Cael sentiu um arrepio escorrer pela espinha. Algo naquela frase… tocava fundo demais.
— Isso já aconteceu com alguém que a senhora conheceu?
— Com todos que conheci — disse ela. — Até comigo.
Ela sorriu.
— Mas eu voltei, não voltei?
Leor cruzou os braços.
— E como pode ter voltado se esqueceu quem era?
— Porque esqueci menos que os outros. Porque guardei um pedaço de mim nas palavras de outros.
Ela ergueu o olhar para Cael.
— Como você faz.
—
Cael se aproximou devagar.
— Você sabe quem eu sou?
— Sei o que você está tentando não descobrir.
Ela se inclinou sobre a bandeja de velas.
— Você já viu a ponte, Cael. Já sentiu o peso dela no vento. Talvez até tenha cruzado. Talvez… ainda esteja atravessando.
Cael deu um passo para trás.
— E como saberia disso?
A velha ergueu uma das velas verdes. As chamas tremeluziram. Ou pareciam tremeluzir, mesmo apagadas.
— Porque sua sombra não está presa a você. Ela tenta fugir toda vez que seu nome é dito.
— Meu nome…
— É uma cicatriz tentando se manter aberta.
—
Senna se agachou ao lado da velha, os olhos cravados nas velas.
— E essas? O que são?
— Lembranças esquecidas que preferiram arder devagar do que desaparecer de vez. Algumas são doces. Outras são gritos silenciosos que ninguém mais quer carregar.
Leor hesitou.
— Posso tocar uma?
— Pode — disse a velha. — Mas ao fazê-lo, ela pode tocar você de volta.
Ele estendeu a mão devagar e tocou a vela verde.
Nada aconteceu no início.
Mas então, ele fechou os olhos.
E murmurou algo que ninguém entendeu.
Como se dissesse um nome… que não conhecia.
Quando abriu os olhos, havia lágrimas.
— Eu vi uma criança… sozinha numa biblioteca.
Ela… ela estava escrevendo com o dedo no chão.
E ninguém a via.
A mulher assentiu.
— Foi você.
Ou alguém que quis te contar que foi.
—
Cael ajoelhou diante dela.
— Essa ponte… ela ainda está aqui?
A velha o encarou.
— A ponte nunca vai embora. Ela só… muda de lugar.
— E por que alguém atravessaria?
Ela respondeu sem hesitação:
— Para esquecer o que o mundo não permite perdoar.
Cael fechou os olhos.
Pensou em todas as versões de si que já vira.
Nos reflexos atrasados.
Nos espelhos errados.
Nos nomes sussurrados como maldições.
> E se ele já tivesse atravessado?
—
A mulher então pegou a vela preta que segurava e a estendeu para Cael.
— Não vai te dar todas as respostas.
Mas talvez… te mostre o que você ainda não aceitou esquecer.
Cael hesitou.
Seus dedos roçaram a base fria da vela.
E por um instante, o mundo ficou em silêncio.
Absoluto.
Mas ele não a pegou.
— Não ainda.
— Sabia que diria isso — murmurou a velha.
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