Capítulo 19 – A Ponte Não Vista parte 2
O silêncio entre os quatro parecia tecido à mão, ponto por ponto, como se cada palavra não dita fosse cuidadosamente alinhavada entre os gestos e os olhares.
Senna sentou-se no parapeito de pedra ao lado. Não tirava os olhos da velha, mas parecia cada vez mais distante — como se já não escutasse tudo que era dito.
— O que acontece com quem atravessa e tenta voltar? — perguntou Cael, sem olhar diretamente para ela.
A mulher sorriu.
— Ninguém volta.
O que volta é o que sobrou.
Leor se levantou, irritado.
— Isso é poesia, não verdade.
A velha virou-se para ele com uma suavidade inesperada.
— Toda verdade começa como metáfora, menino. Depois… se você tiver coragem o bastante, ela vira cicatriz.
Cael não respondeu. Estava focado na bandeja de velas.
A que lhe fora oferecida…
agora tremia.
Sem vento.
Sem fogo.
Mas vibrava.
Como se o reconhecesse.
—
A mulher retirou um pequeno pano escuro do bolso de sua capa e começou a limpar algo invisível na superfície do caixote.
— A cidade esqueceu a ponte. Mas a ponte… lembra da cidade.
— Onde ela está? — perguntou Senna, de repente.
A velha olhou para ela.
— Ninguém a vê antes de pisar. Só depois de já estar no meio. E aí, já não se está mais aqui… nem lá.
— Então é um limiar?
A mulher assentiu.
— É onde as palavras vão para morrer.
E para nascer de novo.
—
Cael respirou fundo.
— Como você sobreviveu à travessia?
A velha parou. Sua mão ficou suspensa no ar.
Por um instante, tudo pareceu parar.
A respiração do ar.
O brilho das velas.
Até os pequenos ruídos da cidade.
Então, ela falou — quase como quem reza:
— Porque me dei um nome novo antes de entrar.
Silêncio.
— E nunca mais o disse em voz alta desde então.
—
O olhar de Cael se perdeu no horizonte.
A travessa parecia diferente.
Mais escura.
Mais… distante.
Como se aquele canto da cidade estivesse se descolando do resto, flutuando entre linhas rasgadas da narrativa.
— Quantas pessoas, você acha, cruzaram essa ponte sem perceber? — murmurou ele.
A mulher olhou para ele com estranha ternura.
— Todas.
—
Ela então se levantou, com dificuldade.
Pegou duas das velas verdes e uma branca.
Enrolou-as num pano.
E colocou-as em uma pequena bolsa de tecido pendurada ao ombro.
— Já vão? — perguntou Leor.
Ela sorriu.
— Já fui.
— E a venda?
— Isso não se vende, menino.
Se oferece.
Se esquece.
Ela estendeu uma das velas restantes para Senna.
— Guarde. Queime quando quiser esquecer algo…
ou lembrar o que nunca viveu.
Senna a pegou. A vela estava fria, mas seu toque provocava uma leve ardência na pele.
Não machucava.
Mas dizia algo.
Algo como: *estou viva.*
—
Cael então fez a pergunta que não queria fazer.
— E se eu já tiver atravessado?
A velha parou. Seu corpo inteiro pareceu endurecer.
Ela virou-se pela última vez.
— Então…
não há volta, Cael.
Só a próxima travessia.
—
Ele deu um passo à frente.
— Quem te disse meu nome?
A velha sorriu.
Mas dessa vez, havia melancolia no sorriso.
— Não fui eu.
Foi o livro que você carrega nos ossos.
—
Então, ela se virou.
E começou a caminhar pela travessa —
lenta, apoiada na bengala invisível de sua própria memória.
E antes que qualquer um pudesse segui-la…
Ela virou uma esquina.
E sumiu.
—
Senna correu atrás.
Leor gritou.
Mas não havia ninguém ali.
Nenhuma saída.
Nenhuma porta.
Nenhuma sombra.
A velha simplesmente… **não existia mais.**
Ou talvez nunca tivesse existido fora da conversa.
—
— Isso não é possível — murmurou Leor, tateando as pedras da parede. — Não tem para onde ela ter ido!
— Ela era um eco — disse Cael, lentamente. — Um aviso deixado para trás.
Senna apertava a vela com força, os olhos fixos no chão.
— Um aviso de quê?
Cael não respondeu.
Mas algo dentro dele… sabia.
—
A ponte estava próxima.
Ou ele já caminhava sobre ela.
E quanto mais avançasse, menos se lembraria de quem era antes.
A noite caiu com mais peso do que costume.
De volta à hospedaria, os três permaneceram em silêncio. O mundo parecia recuar ao redor deles. A cidade, tão viva em suas rachaduras, agora assistia — mas sem intervir.
Senna deixou a vela dada pela velha sobre a mesa. Ela não queria olhar para ela, mas tampouco conseguia ignorá-la.
Havia algo em sua presença que alterava o ar.
Leor fechava e abria as mãos compulsivamente.
A ausência da mulher, tão repentina, corroía suas certezas.
Ele murmurava para si, frases curtas, tentando se lembrar de tudo que ouvira — como se temesse que cada palavra já estivesse sendo apagada.
E Cael…
Cael escrevia.
Com a pena negra, sobre um papel rasgado retirado do fundo da mochila.
Mas a tinta não pegava.
As palavras se recusavam a permanecer.
Ele escrevia:
> “Atravessar é esquecer.”
E a frase desaparecia segundos depois, como se jamais tivesse existido.
Ele tentou de novo:
> “Meu nome não é meu.”
Desapareceu.
A pena tremeu em sua mão, mas não de poder.
De **medo.**
—
Mais tarde, já deitado, Cael fechou os olhos.
Mas não dormiu.
Não como os outros dormem.
Ele caiu.
Deslizou.
Como se sua mente se movesse sobre algo que não tinha chão — apenas névoa, reflexos e palavras esquecidas.
E então a viu.
—
A Ponte.
Mas não como a velha dissera.
Ela não surgia como um arco majestoso nem como uma estrutura linear.
Era uma espiral flutuante de símbolos.
Feita de frases mortas, títulos sem livros, vozes que ecoavam sem garganta.
Cael caminhava sobre ela descalço.
Sentia cada palavra se curvando sob seus pés.
Algumas gritavam.
Outras choravam.
— Cael.672 — sussurrou uma.
— Cael.411 foi melhor — murmurou outra.
— Cael.001 ainda se lembra da Aurora.
Ele apertava os olhos, mas não conseguia acordar.
Porque talvez…
aquilo não fosse sonho.
—
No centro da ponte, uma sombra esperava.
Idêntica a ele.
Sem olhos.
Sem boca.
Apenas o nome “CAEL” gravado no peito —
em letras que pareciam ter sido queimadas no osso.
A sombra ergueu a mão.
E apontou para trás.
Lá, Cael viu a velha.
Mas ela agora estava vazia.
Como uma casca deixada para trás.
E, por fim, viu a si mesmo.
Não o atual.
Não o que caminhava.
Mas aquele que **ficou.**
—
Acordou com um sobressalto.
A vela tremia sobre a mesa.
Mas ainda não havia sido acesa.
Leor dormia sentado, a cabeça tombada.
Senna, encolhida no canto, segurava o pulso — onde uma marca nova havia surgido.
Três linhas paralelas.
As mesmas da vela de Cael.
—
Ele se levantou.
A sala parecia menor.
Ou ele, maior.
Ou talvez o espaço estivesse sendo… **reescrito** em silêncio.
Cael se aproximou da janela.
A rua estava vazia.
Mas por um segundo — um segundo exato — ele viu **a velha de novo**.
De pé no centro da Travessa dos Vagalumes Partidos.
Olhando diretamente para ele.
E então, atrás dela… a ponte.
Simples.
Reta.
De pedra negra.
Como se sempre estivesse ali.
Como se fosse parte do cenário esquecido.
Como se o mundo só agora a tivesse lembrado.
—
Cael piscou.
E ela sumiu.
A ponte também.
Tudo voltou a ser como antes.
Mas ele sabia:
> Alguma coisa, naquele instante, havia se mexido dentro do tempo.
—
Ao lado da vela, o papel onde ele escrevera antes agora tinha uma frase nova.
Ele não a havia escrito.
Pelo menos, não se lembrava de tê-lo feito.
Mas a caligrafia era sua.
> “A próxima travessia será a última.”
E abaixo:
> “Leve apenas o que não pode lembrar.”
—
O capítulo termina com Cael sentado na poltrona, vela entre os dedos, olhos fixos em sua própria sombra na parede.
Mas a sombra… não o imitava mais.
Ela olhava para ele.
E sorria.
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