Capítulo 2 – SUSSURROS NO VÉU
A chuva, que até pouco tempo atrás parecia ameaçar afogar a cidade, finalmente cessara. Mas o cheiro persistia. Era o cheiro de Virellium: ferrugem, fuligem e pecado. A cidade estava imersa em sua essência. As vielas estreitas ainda estavam molhadas, espelhando as lâmpadas a gás que lançavam sombras vacilantes nas paredes de tijolos negros. Um cenário como o de um pesadelo antigo, repetindo-se noite após noite, onde a luz não vinha para iluminar, mas para reforçar o que estava nas sombras.
Cael caminhava pelas ruas, com a capa encharcada, que pesava como se fosse feita de chumbo, e a mão repousando sobre a espada enferrujada que estava presa à sua cintura. Não havia pressa nos seus passos, apenas direção. Cada passo que ele dava parecia ecoar de forma inquietante, ressoando através dos becos e das paredes que pareciam engolir qualquer som. Ele estava indo para onde sua mente, mais do que suas pernas, o conduziam.
A conversa com o mendigo enforcado ainda o perturbava. Aquelas palavras que ele proferiu – “Assombros do Véu” – continuavam a ecoar em sua mente, acompanhadas de uma sensação estranha, como se algo em seu passado tivesse sido tocado. As palavras não eram completamente novas, mas sim um lembrete de algo antigo, algo que ele tentara enterrar nas profundezas de sua própria memória. Era uma seita antiga, falada apenas em sussurros entre as paredes de cavernas abandonadas, associada a desaparecimentos inexplicáveis, olhos arrancados e sorrisos forçados costurados em rostos de mortos. Cael não podia negar a sensação de que esse nome, “Assombros do Véu”, de algum modo estava ligado a algo que ele já tinha enfrentado — ou algo que ele deveria enfrentar.
Com esse pensamento em mente, Cael seguiu por um caminho tortuoso até o Distrito Súbito, um lugar que ficava entre o centro aristocrático da cidade e as zonas pós-industriais, onde o glamour da elite se dissipava lentamente, sendo engolido pelos trilhos de trem enferrujados e os bordéis desbotados. Era uma zona de transição, onde a classe alta encontrava a miséria. Ali, Cael parou diante de um antigo armazém abandonado. As janelas estavam seladas com pregos enferrujados, como se o tempo tivesse tentado fechar aquele lugar para sempre, mas as portas, apesar de cobertas por símbolos riscados com giz vermelho, estavam abertas.
Ele reconheceu um dos símbolos. Três espirais circulares entrelaçadas, como serpentes mordendo os próprios rabos. O mesmo desenho estava entalhado, quase apagado, na base de sua espada. Cael franziu o cenho.
— Não pode ser coincidência.
Sacou um giz preto do bolso interno e, com precisão, desenhou um pequeno círculo ao lado do símbolo. Era uma técnica antiga, usada por caçadores de relíquias para sinalizar entradas secretas. Aqueles símbolos não eram apenas marcas aleatórias. Eles tinham um propósito, e Cael sabia disso.
Com um empurrão sutil, a porta rangeu e se abriu. O interior do armazém estava mergulhado em uma penumbra densa. O cheiro no ar era uma mistura agridoce de incenso barato e carne queimada, uma combinação repulsiva, mas familiar para Cael, como se ele já tivesse sentido aquele cheiro antes, em algum lugar de seu passado. Ele entrou com passos leves, como se o próprio chão pudesse traí-lo a qualquer momento. Cada rangido das tábuas de madeira parecia um alerta, mas ele não recuou.
Ele subiu por uma escada de madeira parcialmente destruída, cujos degraus rangiam com o peso de cada movimento, e chegou ao segundo andar, onde encontrou um círculo ritualístico no chão. A cena à sua frente parecia ter sido deixada ali há muito tempo, mas ainda havia algo de recente no ambiente. Velas apagadas estavam espalhadas pelo piso, e fitas pretas pendiam do teto, balançando suavemente, como se ainda estivessem ligadas a uma energia invisível. No centro do círculo, um pedestal de madeira sustentava um livro aberto. As páginas estavam manchadas, algumas borradas, mas, para Cael, ainda legíveis. Ele se aproximou, com a cautela de quem não sabe o que vai encontrar.
As palavras que encontrou no livro eram um aviso, uma mensagem que parecia estar destinada a ele, e não a qualquer outra pessoa.
— “A carne é apenas o invólucro. O véu rasgado liberta a essência. O três vezes morto renasce na espiral.”
Cael leu as palavras com uma expressão de desconcerto. “Três vezes morto.” Aquelas palavras eram um eco distante, mas familiar. Ele recuou um passo, a mente tentando processar a informação. Elas estavam nos Textos Abissais, fragmentos de manuscritos que ele lera na juventude, escondido de tudo e de todos. Os Textos falavam do Caminho da Morte Circular, uma arte secreta e proibida, onde o corpo passava por três mortes simbólicas, e o espírito renascia como algo “além da forma”. Ele lembrou-se de que, na época, considerara aquilo tudo apenas lendas, histórias de velhos pirados. Mas agora, ao ver aquelas palavras, Cael sabia que o que ele achara ser ficção era, na verdade, muito real.
O som de algo se movendo atrás de si o fez virar de imediato, a espada já parcialmente sacada, pronto para enfrentar o que fosse necessário. Mas ao olhar ao redor, não viu ninguém. O silêncio voltou a dominar o espaço, mas ele não estava mais sozinho. Não fisicamente, mas a sensação de ser observado o envolvia. Ele ouviu, então, o som de algo sendo arrastado, algo pesado. Ele seguiu o som até um buraco na parede, um estreito espaço, como uma passagem secreta que levava a algo mais profundo.
— O que mais está escondido aqui?
Sem hesitar, Cael se espremeu pelo buraco, sentindo os tijolos rasparem contra a capa, fazendo-a prender-se a eles em um movimento desconfortável. Do outro lado, encontrou um quarto estreito e imundo. Dentro dele, havia uma figura amarrada e amordaçada, seus olhos abertos em desespero, mas incapazes de emitir um som compreensível. Quando Cael se ajoelhou e olhou diretamente em seus olhos, o homem tentou falar, mas sua garganta produziu um som estranho e seco, como se ele não tivesse mais cordas vocais.
Com um movimento brusco, Cael se aproximou, querendo entender mais. Foi quando notou a marca a ferro no peito do prisioneiro. O símbolo da espiral. A mesma espiral que ele vira na porta do armazém, a mesma que estava entalhada na base de sua espada. Cael sentiu algo estremecer no fundo de si. O que ele acreditava ser coincidência agora se revelava uma direção clara, um chamado, como se ele fosse parte de um jogo maior, um plano do qual ele era inconscientemente o protagonista.
— O que fizeram com você?
Antes que ele pudesse fazer algo, uma explosão de fumaça negra tomou o cômodo. Cael cobriu os olhos instintivamente, recuando, a espada erguida em uma defesa silenciosa. Quando a fumaça finalmente se dissipou, o prisioneiro havia desaparecido. Não havia mais rastros dele, exceto por uma única palavra, rabiscada no chão com sangue.
— Desperta…
A palavra parecia pulsar como se ainda estivesse viva.
Cael permaneceu ali, parado, em silêncio absoluto. O peso da espada na cintura era quase imperceptível, mas ele sentia o tremor discreto que vinha dela. Pela primeira vez desde que chegara a Virellium, ele não estava apenas caçando. Ele estava sendo chamado. Algo ou alguém queria que ele tomasse uma direção, uma ação que ele ainda não compreendia totalmente, mas que já estava profundamente entrelaçada com seu destino. O que quer que fosse o Véu, estava prestes a se revelar. Mas Cael sabia que, quando isso acontecesse, não haveria volta.
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