Capítulo 4 – Ecos Sob a Cidade
A madrugada repousava como uma manta encharcada sobre Virellium. As ruas permaneciam mergulhadas em penumbra, com as luzes amareladas dos lampiões mal atravessando a névoa densa que se arrastava como uma criatura viva pelas vielas. As sombras da noite parecem sussurrar segredos, e Cael Thornwald caminhava como se as escutasse.
O encontro com Leor havia deixado mais perguntas do que respostas. O homem ainda dormia no quarto de hospedaria que Cael alugara por segurança, enquanto ele próprio retornava ao beco onde encontrara o corpo deformado, ignorando o conselho do inspetor Orvain de se manter afastado.
Mas Cael não era alguém que aceitava limitações. Algo naquele beco chamava por ele, e não era apenas a curiosidade. Era aquela sensação incômoda em sua espinha, como se fios invisíveis se enredassem ao seu redor, puxando-o para algo maior, mais escuro.
Chegando ao local, notou que os corpos haviam sido removidos, mas as marcas no chão ainda estavam ali. Riscos estranhos no paralelepípedo — não sangue, não carvão. Algo… queimado, mas não por fogo comum. Símbolos deformados, como se alguém houvesse tentado escrever em uma língua esquecida com uma mão trêmula.
Cael se ajoelhou, passando os dedos lentamente sobre os traços. Uma corrente fria percorreu seu braço. Seu corpo reagiu com um calafrio involuntário. Fechou os olhos, focando. A espada enferrujada presa à sua cintura vibrava levemente, como se reconhecesse algo.
— Não é só um assassinato — murmurou. — É um ritual.
Atrás dele, um som leve de vidro sendo pisado o fez girar.
— Está mais envolvido do que deveria, Thornwald — disse uma voz familiar.
Orvain. Sua silhueta surgiu da névoa como um fantasma de casaco comprido, o charuto semi-apagado tremeluzindo sob o vapor do frio. Seus olhos, cansados e cínicos, estudaram Cael com a mesma intensidade de antes.
— Não consegui dormir — respondeu Cael, erguendo-se lentamente.
— Você nunca dorme, pelo que percebo. E, se dorme, sonha com ossos quebrando.
Cael ignorou a provocação. — Isto é magia ritual. Do tipo antigo.
Orvain soltou uma baforada de fumaça. — Você sabe demais para um forasteiro.
Cael se aproximou. — Você também.
O inspetor hesitou. — Encontrei traços semelhantes em outras três cenas… mas os corpos desapareceram antes que pudessem ser catalogados. Arquivaram os casos como ataques de bestas subterrâneas. Nada oficial. Nada que se possa rastrear. Mas agora, alguém está aumentando o ritmo. Isso está ficando mais perto do coração da cidade.
— Ou do coração de alguém em particular — completou Cael.
Orvain franziu a testa. — O que exatamente você procura aqui?
Cael desviou o olhar. — Uma resposta para o passado que esqueci… e o presente que estou começando a odiar.
Orvain balançou a cabeça. — Você devia partir. Mas se ficar, cuidado com os degraus onde pisa. Algumas verdades têm garras.
No caminho de volta, Cael sentia a pressão da cidade sobre seus ombros. Cada rua era uma memória que não lhe pertencia, cada vitral um espelho embaçado de algo que não queria lembrar. Virellium tinha vida própria. E começava a sussurrar o nome dele.
Leor o esperava acordado, sentado na cadeira da janela, um copo de algo barato nas mãos.
— Fui seguido hoje — disse Leor, antes mesmo de Cael perguntar algo.
Cael arqueou a sobrancelha. — Tem certeza?
— Quando se está bêbado há anos, aprende a perceber quem te observa em silêncio. Foi um homem pequeno, com olhos que não piscavam. Desapareceu quando virei a esquina.
Cael o estudou em silêncio. Leor ainda era um enigma. Tinha o olhar de quem perdera tudo, mas também o brilho de alguém que ansiava por algo novo — ou talvez apenas um último motivo para continuar respirando.
— E o que pretende fazer? — perguntou Cael.
Leor deu de ombros. — Você é quem me trouxe para isso. Achei que veria demônios e ouro. Só vi cadáveres e pedra fria.
— Ainda é o começo.
Naquela noite, Cael examinou os símbolos anotados num caderno. Comparou com antigos diagramas ocultistas. Nada batia. Até que uma palavra surgiu em um dos livros trazidos de seu esconderijo: “Nephraim”. Uma entidade esquecida, mencionada em registros perdidos da Ordem dos Sussurros, uma das antigas facções que haviam caído em desgraça depois da Guerra das Chamas Silenciosas.
Segundo os registros, Nephraim era invocado não por palavras, mas por emoções. Medo, desespero e culpa. Alimentava-se de memórias. Sua presença era como uma rachadura na realidade — e seus seguidores eram devotados ao esquecimento.
— Então é isso… — sussurrou Cael. — Alguém quer apagar o mundo.
Leor levantou os olhos. — O que disse?
— Nada.
Mas em sua mente, algo despertava. Um fio tênue de conexão, ligando os assassinatos, os símbolos, as vozes sussurradas nos becos.
Virellium estava sendo corroída por dentro. E talvez ele tivesse chegado tarde demais para salvá-la… mas não tarde demais para entender.
Naquela mesma madrugada, incapaz de pregar os olhos, Cael desceu para o porão do pequeno edifício onde estavam hospedados. O ambiente cheirava a umidade e mofo antigo. Caixas empilhadas escondiam parte das paredes e uma caldeira velha rangia a cada poucos minutos, como se sentisse frio.
Lá, Cael desenhou novamente os símbolos no chão com giz, formando um círculo ritualístico improvisado. No centro, colocou a espada enferrujada. Sentou-se de pernas cruzadas, fechou os olhos e murmurou:
— Mostre-me o que sou.
O chão tremeu levemente. Por um instante, a luz pareceu ser sugada pelas paredes. Um sussurro antigo atravessou o ar, indistinguível, como uma língua que já havia sido esquecida pelo tempo.
A mente de Cael foi invadida por flashes: um templo de colunas negras, uma mulher de olhos vazios oferecendo um pergaminho em chamas, e um campo de batalha coberto de relâmpagos invertidos. Sua própria voz ecoou entre as visões, dizendo palavras que ele não lembrava de conhecer.
Quando abriu os olhos, o sangue escorria de seu nariz.
A espada no centro do círculo agora parecia menos enferrujada. Como se uma camada tivesse sido removida.
No andar de cima, Leor acordou sobressaltado. Alguém tocava a porta.
E, sob a cidade, no santuário oculto da Sé dos Olhos Velados, a figura encapuzada ergueu as mãos ao céu subterrâneo.
— Ele começa a lembrar. O portador desperta.
E, ao redor dela, dezenas de sombras se ajoelhavam.
O espelho de mercúrio já não exibia apenas Cael, mas um segundo rosto emergia da superfície rachada. Um rosto esquecido, mas familiar.
E os sussurros recomeçaram.
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