A noite engolia Virellium com sua neblina espessa e o som abafado de passos distantes. A cidade, como sempre, parecia viva mesmo em sua paralisia. Lâmpadas a gás tremeluziam nas ruas tortuosas como olhos cansados prestes a se apagar. Cael avançava por uma viela mal iluminada, suas botas molhando-se em poças negras e imundas. A cada passo, o odor de sangue seco ainda impregnava o medalhão que carregava, embora ele já o tivesse guardado.

    Havia algo gravado na parte de trás do artefato, algo que não tinha percebido no primeiro toque. Quando voltou ao seu quarto, à sombra de sua lamparina trêmula, viu enfim com mais clareza: um símbolo sutilmente talhado no metal escurecido. Um círculo incompleto, cruzado por linhas curvas — como garras em espiral, retorcidas, quase vivas.

    Cael não sabia o que aquilo significava, mas sentia… como uma comichão na nuca, como um suspiro atrás da parede. Era familiar, mas ao mesmo tempo proibido. A sensação aumentava quando se olhava para aquilo por tempo demais.

    E agora, ali estava ele — na parte mais alta de Virellium, sobre o telhado da antiga fábrica de tecidos onde o medalhão havia sido deixado. O lugar estava abandonado há anos, mas Cael notara movimentações estranhas nas noites anteriores. Luzes apagando-se quando ele se aproximava. Sussurros.

    E naquela noite, ele a viu.

    A figura encapuzada.

    Ela estava do outro lado do telhado, imóvel, os contornos do capuz se misturando às sombras. O medalhão em sua mão parecia vibrar, como se reconhecesse a presença de seu antigo dono. Cael não se moveu por um instante. Havia algo nos olhos da figura — ou talvez em sua ausência. Algo vazio demais. Como se ali dentro houvesse apenas… um chamado.

    — Quem é você? — sua voz soou rouca, baixa, mas firme.

    A figura inclinou a cabeça ligeiramente.

    Então, com um movimento fluido, jogou um pequeno objeto no ar. Cael avançou por impulso, mas foi tarde demais.

    O medalhão explodiu em chamas negras, como se queimasse por dentro. Cael cobriu o rosto e rolou para o lado, sentindo o impacto surdo e abafado. Quando ergueu o olhar, ela havia sumido.

    Cael correu até a beirada do telhado, mas só encontrou o eco de seus próprios passos. Apenas o vento noturno lhe respondia agora, sussurrando em voz que não era sua.

    Mas algo… ficou para trás.

    No ponto exato onde a figura estava, havia uma mancha escura no chão de pedra, como sangue que jamais secou, mas não era sangue. O cheiro era de ferro… e sal.

    Cael abaixou-se lentamente, tocando a marca. Um frio percorreu sua espinha. Sua visão embaçou por um segundo. Uma imagem invadiu sua mente.

    — Três portas. Um relógio sem ponteiros. Uma cadeira vazia virada para uma janela quebrada. E o mesmo símbolo, aquele das garras em espiral, no teto — girando lentamente.

    Ele afastou-se com um suspiro pesado, como quem emerge de um pesadelo sem saber se já acordou.


    Horas depois, na taberna dos Fundos, Leor segurava seu copo com força demais. O álcool não ardia mais como antes. Estava ali, mas era inútil. Sua cabeça pendia levemente para o lado, os olhos presos no vazio. À frente, Cael permanecia em silêncio, observando-o, aguardando.

    — Então o medalhão que eu deixei no túmulo da minha irmã… estava com eles? — A voz de Leor tremeu mais do que o copo em sua mão.

    Cael assentiu.

    Leor baixou a cabeça. Por um momento, o mundo ficou mudo. E então — uma lembrança o tocou. Um cheiro. Lavanda.

    — Não esquece, idiota. Isso vai te proteger quando eu não estiver. — A voz dela. Suave. Sempre rindo. Mesmo morrendo.

    Ele se lembrou de como ela apertava o medalhão contra o peito dele, com as mãos trêmulas. Da forma como sorria, mesmo quando tossia sangue. E do cheiro que ficou no ar… lavanda e ferrugem.

    Leor fechou os olhos. As lágrimas vieram sem pedir licença, mas ele não as enxugou.

    — Você ainda vai atrás disso? — ele perguntou, com a voz falha, mas o olhar mais sóbrio do que em semanas.

    Cael não respondeu imediatamente. Seus olhos estavam fixos na fumaça do cigarro que subia da mesa ao lado, dançando como um presságio. Finalmente, ele falou:

    — Esse símbolo… essa organização… eles não querem poder. Querem algo que não entendo. Mas se mexeram com os mortos. Com as memórias.

    — Então por que me quer junto? — Leor ergueu os olhos, desconfiado.

    Cael inclinou-se levemente para frente.

    — Porque, mesmo bêbado, mesmo quebrado, você percebeu o símbolo antes que eu dissesse qualquer coisa. Porque ninguém mais ligaria o cheiro de lavanda a algo que morreu. E porque… você não correu.

    Leor soltou uma risada seca.

    — Ou talvez eu não tenha mais nada pra perder.

    Cael respondeu com um olhar profundo — que carregava séculos em silêncio.

    — E talvez por isso mesmo você seja útil.

    Leor encarou aquele homem pela primeira vez sem medo. Havia algo nele… algo frio e antigo, como as pedras de Virellium. Mas também algo honesto. Dolorosamente honesto. Ele levantou o copo uma última vez.

    — Às memórias, então.

    Cael ergueu a cabeça.

    — Às cicatrizes.


    Mais tarde, enquanto caminhavam pelas ruas silenciosas da cidade, Cael parou diante de uma parede coberta por musgo e cartazes velhos. Ele afastou parte da umidade e expôs ali, em cinzas escuras, o mesmo símbolo das garras espirais.

    — Já esteve aqui antes. — murmurou.

    — O que isso significa? — Leor perguntou.

    Cael o olhou de lado.

    — Significa que estão se movendo.

    — Quem?

    — Os que não deveriam mais existir.

    Silêncio.

    E então, o som leve de algo se arrastando pelas pedras.

    Ambos se viraram rapidamente, mas não havia ninguém. Apenas o vento.

    Cael fechou os olhos por um segundo.

    — Algo está vindo. Algo que começou muito antes de mim.

    Ele levou a mão até a espada enferrujada presa à cintura. Ainda parecia comum. Ainda parecia inútil. Mas, por dentro… algo estava desperto.

    oque sera que desperto?

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