A aurora em Virellium era um teatro de mentiras. A luz que deveria emergir do leste parecia implorar para não tocar as pedras encharcadas da cidade. Havia algo no ar — não o frio comum, mas um peso, uma espessura invisível que transformava o tempo em vidro. Frágil… Cortante.

    Cael subiu as escadas do porão em silêncio. A madeira rangeu sob seus pés com um som mais seco do que deveria, como se a casa estivesse secando por dentro.

    Leor estava acordado, sentado à mesa com uma garrafa entre os dedos, o rosto marcado por sombras que não vinham da luz.

    — Você… sumiu — disse, sem emoção. — Três horas. O relógio quebrou. Até o tic-tac parou. Eu ouvi… palavras. Mas não eram suas.

    Cael não respondeu de imediato. Sentia a pena negra ainda quente dentro do sobretudo. Como se tivesse escrito algo por conta própria enquanto ele estava ausente. Como se ela sonhasse sozinha.

    — A realidade dobrou-se sobre si — murmurou. — E me mostrou a dobra por dentro.

    Leor soltou um riso abafado. — E mostrou quem você é?

    Cael olhou pela janela. O vidro estava coberto por palavras embaçadas. Como se alguém as tivesse escrito com o hálito.

    — Não quem eu sou. Mas… o que fui esquecido por ser.


    Foram guiados horas depois por um bilhete deixado por debaixo da porta — sem nome, sem remetente, apenas palavras escritas em tinta que cheirava a ferro e lavanda:

    “Os nomes esquecidos sabem sangrar.
    No Cemitério de Caligrath,
    sob a lápide sem nome,
    abre-se o verbo que não se conjuga.
    Não venham sós.”

    Leor leu em voz alta e franziu o cenho. — Sabe o que isso parece?

    — Uma ameaça? — Cael arriscou.

    — Não. Um convite.

    — O que é mais perigoso.


    Caligrath era mais que um cemitério. Era um erro deixado existir.

    Localizado nos limites esquecidos de Virellium, entre ruínas de igrejas soterradas e fragmentos de muralhas pré-imperiais, ele era um campo de túmulos cujo traçado desafiava lógica — nenhum alinhamento, nenhum padrão. Apenas caos organizado por mãos mortas.

    As lápides murmuravam com o vento. Algumas se mexiam sutilmente, como se tentassem escapar da terra que as continha.

    Encontraram a lápide sem nome ao lado de uma figueira seca que sangrava resina escura.

    — Não há marca, nem musgo. Como se estivesse esperando — disse Cael.

    Ele se agachou, estendeu a mão e tocou o ar sobre o túmulo. E o ar… cedeu.

    Como um espelho se partindo, um véu se rasgou revelando a escada oculta que descia em espiral — feita de ossos e vidro esmerilado. O ar que escapava dali cheirava a tinta esquecida.

    — Sempre a espiral — murmurou Leor.

    — Sempre o descenso.


    A escadaria descia como se cavasse o tempo. Quanto mais fundo iam, mais difícil era distinguir o que era real e o que era memória. Ecos de vozes não ditas flutuavam nas paredes, como sombras tentando recordar suas palavras.

    No fim da escada, havia uma porta feita de pele costurada com fios de ouro. Ao centro, o símbolo: o olho espiralado — agora rachado.

    — Algo falhou aqui — disse Cael. — Ou foi reescrito.

    Empurraram a porta.


    O salão era circular, feito de páginas petrificadas. As paredes vibravam levemente, como se respirassem. Escritas em sangue seco, milhares de palavras formavam padrões ilegíveis — exceto por um nome que se repetia:

    “Thornwald. Thornwald. Thornwald.”

    — Estão te escrevendo aqui… — sussurrou Leor, espantado. — Ou… te lembrando.

    No centro do salão, sentada sobre um altar de obsidiana, uma figura feminina envolta em mantos prateados. O rosto coberto por véus, mas a boca exposta, trêmula como a de um sonhador prestes a acordar.

    — Vocês têm vozes — disse. — Vocês ainda… carregam nomes.

    Ela se levantou com um movimento quase ritual.

    — Quem é você? — perguntou Cael.

    — Fui chamada de Guardiã. De Censora. De Erro. Mas hoje sou apenas uma lembrança persistente. Guardo o que foi esquecido para que um dia possa ser… perdoado.

    Ela apontou para o altar. Ali, repousava um livro fechado com um lacre de osso: o Caderno dos Não-Escritos. O símbolo na capa era o mesmo do ritual com a pena: três espirais unidas por um olho — agora rachado no centro.

    — Isso contém os nomes dos que foram apagados. E aqueles que ainda não sabem que o foram.

    Cael se aproximou. Ao tocar o livro, uma nova marca surgiu em sua mão: um fragmento da espiral em brasa. Ardia, mas não queimava carne — queimava história.

    — Você é um deles, Cael — disse a mulher. — Ou foi. Ou será. Os Treze já não sabem quem traiu quem. Mas todos esperam que você lembre.

    — Os Treze… — repetiu Leor. — Que Treze?

    Ela sorriu. Um sorriso triste. Como quem viu fogo consumir uma biblioteca onde dormia sua própria infância.

    — Os Treze Fragmentos do Verbo. Cada um representa um aspecto da escrita original. Mas um deles… apagou palavras demais. Reescreveu-se tantas vezes… que virou Centelha.

    — O traidor?

    Ela hesitou.

    — Ou talvez… a redentora.

    Cael segurou o livro. Olhou para a rachadura no símbolo. Por um momento, algo em sua memória gritou — uma sala circular, treze cadeiras, uma cadeira vazia… e ele levantando-se dela.


    Ao sair da cripta, o mundo parecia ligeiramente… torto. As ruas estavam no mesmo lugar, mas os prédios pareciam deslocados por centímetros. Pessoas sorriam em horários errados. Um velho gritava que as palavras estavam caindo do céu.

    — Estamos em outro nível da realidade — disse Cael. — Como se o livro que contava Virellium… tivesse sido reescrito durante nossa ausência.

    Leor passou os dedos pela testa. Havia suor ali. Ou talvez tinta.

    — Isso… vai piorar?

    — Isso vai se revelar.


    Naquela noite, Cael trancou-se no quarto e abriu o Caderno dos Não-Escritos.

    As páginas estavam em branco. Mas conforme ele respirava, palavras começavam a surgir. Uma em particular tremia mais que as outras:

    “Aurora.”

    E abaixo dela, outra, menor, quase apagada:

    “Centelha.”

    Mas algo estava estranho. A palavra “Centelha” desaparecia cada vez que ele piscava.


    Em algum lugar distante, sobre um telhado, uma mulher de olhos âmbar e dedos queimados segurava um caderno muito parecido com o dele. Sorria.

    — Ele começou a lembrar — sussurrou, passando os dedos pela lombada.

    Atrás dela, uma sombra se mexeu. Ela não olhou.

    — Deixe. Ele precisa acreditar que é o protagonista. Só então poderemos… corrigir o manuscrito.

    E então, desenhou um símbolo novo com o próprio sangue.

    Uma pena em chamas, atravessando um espelho rachado.


    E no quarto de Cael, a pena negra começou a se mover sozinha.

    Escreveu apenas uma frase, em idioma esquecido, na parede:

    “A próxima palavra será a última.”

    Cael não viu. Estava dormindo.

    Mas o sonho que veio… não era dele.

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