Capítulo 9 – A Palavra que Não Pode Ser Lida
O quarto de Cael cheirava a tinta fresca.
Ele acordou com um gosto amargo na boca, como se houvesse engolido um livro em chamas. As cortinas estavam fechadas, mas a luz que tentava atravessá-las parecia… hesitante, como se temesse encontrar algo lá dentro que não devia ver.
Na parede diante de sua cama, palavras haviam sido escritas durante a noite — não por sua mão. Letras finas, curvas impossíveis, uma caligrafia que parecia se mover quando olhada de relance. Ele tentou focar.
Mas seus olhos… doeram.
Não era dor física. Era uma dor de compreensão — como se cada letra tivesse sido moldada para ser ilegível, não por forma, mas por destino. Ler aquilo era tentar lembrar um sonho que não era seu. E que não queria ser lembrado.
A pena negra jazia sobre a escrivaninha. Imóvel. Mas o ar ao redor dela tremia. Havia calor demais naquele ponto, como se a própria realidade recuasse em torno do objeto.
Ele passou os dedos sobre a parede. A tinta não era tinta. Era sangue. Mas não escorria — secava ao mesmo tempo que se expandia, como uma ferida que aprendia a crescer.
Leor apareceu à porta, ainda com o rosto inchado de sono.
— Você… disse meu nome. Dormindo.
— Disse…?
— Não com sua voz. Com outra. Uma mais… funda.
Silêncio.
Cael encarou a pena.
— Ela escreveu algo.
— O quê?
Cael apenas murmurou:
— A próxima palavra será a última.
Na cozinha, Leor preparava chá com as mãos trêmulas. A chaleira assobiava antes da água ferver — como se quisesse avisar algo. Ele serviu duas xícaras, mas só uma foi tocada.
— Eu sonhei com você — disse. — Mas era… como se estivesse feito de papel. E rasgando. Aos poucos. Enquanto ria.
— Não era sonho — respondeu Cael, sem ironia. — Era uma transmissão.
— De quê?
— De quem escreve por trás da história.
Pouco depois, sob a soleira da porta, encontraram um envelope — lacre quebrado, tinta ainda fresca. Um bilhete sem remetente, mas com cheiro de livro molhado e incenso antigo.
“O Escriba da Ruína aguarda.
Ao norte, no Salão Esquecido da Voz Sem Boca,
os livros gritam sozinhos.
Entre antes da última estrofe.
Não vá armado.
Ou serás lido.”
Cael dobrou o bilhete com cuidado. Leor apenas encarava o vazio com expressão tensa.
— Acha que é uma armadilha?
— É um convite.
— O que é pior.
Atravessaram o distrito de Vhen-Kardra, onde as ruas pareciam costuradas com névoa e os prédios se inclinavam como se sussurrassem segredos entre si. Crianças os seguiam com olhos de cera. Mendigos recitavam frases fragmentadas de livros que nunca existiram.
— Veja aquilo — disse Leor, apontando.
Uma parede havia sido pintada com símbolos familiares: espirais, olhos, penas… mas havia algo novo. Um nome. E esse nome estava… errado. Não por estar mal escrito, mas porque não deveria existir.
“Cael Thornwald” escrito com tinta espelhada. De trás para frente.
— Eles estão testando — disse Cael.
— Testando o quê?
— A capacidade do mundo de sustentar minha existência.
O Salão da Voz Sem Boca ficava escondido atrás de uma gráfica abandonada, marcada por um símbolo de aviso: o emblema da Última Página. Mas distorcido, rachado. Como se alguém houvesse tentado quebrar a própria autoria.
Cael não carregava a espada. Leor levava apenas o caderno — e, mesmo assim, ele tremia.
Ao entrar, foram engolidos por silêncio. Não o tipo de silêncio que surge pela ausência de som — mas o silêncio ativo, que devora qualquer ruído antes que ele exista. O salão era circular, rodeado por prateleiras onde livros flutuavam sem apoio, sussurrando frases sem boca.
No centro, um púlpito de pedra viva. E atrás dele, o Escriba.
Não havia rosto, nem forma. Apenas uma túnica feita de páginas rasgadas, costuradas com linhas de cobre. A figura movia-se como fumaça contida em forma humana. E quando “falava”, não havia som — apenas símbolos que surgiam no ar, letras vivas que se desfaziam em cinzas ao serem compreendidas.
Cael se aproximou, sentindo o chão afundar levemente sob seus pés — como se as palavras sob o solo estivessem tentando segurá-lo.
Um livro surgiu diante dele, voando até parar no ar.
“A Palavra foi selada.
A Palavra não deve ser lida.
A Palavra escreve sozinha.
E Cael Thornwald é o último a pronunciá-la.”
Leor recuou.
— Isso… isso é um ritual. Um de fixação. Se ele ler, não poderá mais não ter lido.
Cael encostou o dedo na margem do livro. As páginas brilharam. E então… uma frase apareceu:
“Ela já escreveu o que virá.”
Ele viu um rosto. Cabelos curtos. Olhos âmbar. Um sorriso gentil demais para ser verdadeiro. E o nome que ecoou em sua mente foi:
Centelha.
O salão tremeu.
Livros começaram a voar em círculos, formando espirais de páginas sussurradas. E o Escriba ergueu-se, braços feitos de caligrafia viva. Apontou para Cael — e em sua testa, uma nova palavra foi marcada a fogo: Inominável.
Mas antes que pudesse pronunciar o nome proibido que surgia em sua mente, uma explosão de tinta negra engoliu o salão.
Acordaram do lado de fora, deitados sobre pedras molhadas. Estava escuro. O céu parecia invertido. Estrelas gotejavam como lágrimas de vidro.
Cael tossiu sangue seco. Leor chorava sem perceber.
— Você viu… ela? — perguntou Leor, quase em sussurro.
Cael assentiu.
— Ela já escreveu o final.
Horas depois, em uma biblioteca selada sob a Sé dos Olhos Velados, A Centelha fechava um livro com uma capa viva — coberta por pele e símbolos que se mexiam.
— Ele pronunciou quase tudo — disse, sozinha. — Está pronto para o próximo ato.
Ela olhou para o espelho atrás de si. O reflexo de Cael estava lá. Mas… com olhos espiralados. Não os dela.
— Mandem o Segundo Fragmento.
Um servo encapuzado emergiu da parede.
— O Teatro deve começar. E o público… já está aplaudindo.
Cael acordou com uma nova cicatriz em forma de frase na lateral do pescoço. Não era visível ao espelho — mas ele a sentia. Cada letra vibrava sob a pele.
“O autor não se lembra de tê-lo criado.”
E, pela primeira vez, Cael duvidou que sua história fosse… sua.
O capítulo termina com Leor arrancando páginas do próprio caderno, tentando apagar um nome que apareceu durante a noite. Mas cada vez que rasgava, o nome surgia em outro lugar.
O nome era:
Leor Thornwald.
E isso, ele nunca tivera.
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