Capitulo 4: A cor da partida
O sol nascia entre nuvens de fuligem no Deserto de Sonata. Jasper despertava ao lado do lobo metálico. Antes, havia sentido receio de se expor, vulnerável e sonolento, perto do Caçador de Ossos… mas Kaern fizera questão de permanecer ao seu lado durante toda a noite. Esse gesto simples foi o suficiente para acalmar, ainda que por pouco, a mente selvagem do garoto.
No pouco tempo em que conviveu com o Undead lupino, Jasper percebeu um detalhe curioso: os segmentos da couraça metálica de Kaern brilhavam em cores diferentes, dependendo de seu estado emocional. Até agora, o garoto só havia visto duas: vermelho e azul.
Olhando em volta à procura do Caçador de Ossos, Jasper o encontrou se preparando para deixar a cavidade natural onde estavam abrigados. O Undead ajustava a longa coleção de armas feitas de ossos, cravadas diretamente no próprio corpo.
Entre elas, havia adagas retráteis nos ombros e joelhos, lanças dispostas em formato de X sobre os ombros, encaixadas ao longo dos trapézios, espadas guardadas em bainhas de couro presas à cintura, além de lâminas ocultas nos calcanhares e espinhos cravados na sola e na planta dos pés. Um arsenal vivo, moldado no próprio corpo para matar sob qualquer ângulo.
— É bom começar a se mexer logo… ou mais desses Bestiais irritantes vão aparecer pra te matar — disse com um tom sarcástico, lançando um olhar de canto. — E aí, garotinho… eu não vou estar aqui pra salvar a sua pele.
Parecia até se divertir provocando Jasper, como se aquilo fosse parte do jogo, ou talvez uma forma distorcida de ensinar.
O garoto manteve um olhar vazio na direção do Caçador, com apenas seus olhos azuis reluzentes visíveis por entre as sombras do elmo curvado.
Seus instintos o alertavam a todo momento sobre o perigo de estar tão próximo daquele Undead. Ainda que, de forma relutante, gostasse da presença de alguém por perto… no fundo, sabia que, por causa de sua missão, continuaria sozinho.
— Eu não teria precisado de ajuda… se você não tivesse atrapalhado — respondeu, mantendo a distância no tom e no corpo. — E se houver uma próxima vez… vou estar preparado para te eliminar.
Quebrando o silêncio após as palavras do garoto, o Caçador de Ossos sacou uma de suas espadas. Num movimento brusco e repentino, cortou na direção do Vulto Negro distraído, exalando uma aura assassina que deixava suas intenções perigosamente claras para Jasper.
Usando sua percepção especial, Jasper sentiu a tempo as sutis alterações no ar ao seu redor, detectando as ondulações provocadas em um instante. Reagiu por reflexo, desviando no último segundo do ataque repentino do Desperto. A lâmina passou a centímetros de seu rosto, cortando alguns fios soltos de cabelo.
Ele aterrissou com os músculos tensos, pronto para começar um novo confronto. No entanto, hesitou ao ver que o ciclope ósseo fazia o oposto: cravava a lâmina de ossos no chão, que refletia os fracos raios de sol filtrados pelas nuvens densas de fuligem. Em silêncio, o Desperto se virou e começou a se afastar, como se a luta nunca tivesse sido sua intenção.
— Você é rápido… mas sem uma arma decente, é como uma abelha sem ferrão, frágil e indefesa — comentou enquanto escalava as colunas rochosas com agilidade. — Vamos, Kaern. Tenho que procurar uma nova caça… e, desta vez, quero uma besta de verdade.
Kaern permaneceu parado por um momento, os segmentos de sua couraça pulsando em um vermelho forte, como se desaprovasse o gesto. Mas, no fim, só lhe restava obedecer às ordens de seu líder. Em sua mente consciente, ainda marcada por instintos lupinos, sabia que não conseguiria se proteger sozinho… não sem o Caçador ao seu lado.
Antes de seguir o ciclope ósseo, Kaern se esgueirou com cautela até o Vulto Negro, que ainda permanecia tenso, observando o Caçador de Ossos se afastar com um ódio crescente, quase cedendo novamente à selvageria.
No entanto, a presença do lobo metálico já não era vista como uma ameaça. Jasper permitiu que ele se aproximasse, como se, no meio do caos, reconhecesse ali um fragmento de confiança.
Usando seu faro aguçado, Kaern memorizou o cheiro de Jasper, mesmo em meio à confusão de odores deixados pelas inúmeras criaturas que compunham a armadura rústica do Vulto Negro. Durante o processo, os segmentos de sua carapaça emitiram um brilho roxo suave.
Mantendo o olhar fixo na criatura, Jasper compreendeu uma verdade cruel: aquela provavelmente seria a última vez que veria o mais próximo que teve de um amigo durante toda sua jornada solitária por aquele deserto hostil. Talvez… fosse a hora de fazer o que não conseguira da primeira vez.
Com hesitação contida, estendeu a mão até alcançar Kaern. Tocou-o com cuidado, tentando acariciar a couraça metálica do Undead lupino. Sentiu a aspereza do metal e o cheiro queimado que escapava pelas frestas, mas nada daquilo era desagradável — não diante da reação do lobo, que irradiava um brilho verde intenso, quase sereno.
Assim que terminou aquele gesto, Kaern correu às pressas para se juntar ao Caçador, escalando com uma destreza inigualável graças às garras que rasgavam a rocha com facilidade. Em poucos segundos, desapareceu entre as colunas rochosas, sem olhar para trás.
Jasper ficou parado, imóvel, observando o vazio deixado pela partida. Estava sozinho de novo… como sempre. Era um silêncio familiar, frio, que o acompanhava desde que se lembrava por gente.
Tudo bem… só preciso seguir em frente, sem parar. No final, deve existir um lugar melhor… eu espero.
Ao puxar a lâmina óssea do chão, Jasper se desequilibrou sobre os próprios pés. O peso e o formato eram estranhos totalmente novos aos seus olhos. Até então, só havia usado uma garra qualquer para se defender. E, agora, com uma arma de verdade em mãos, percebeu o quanto aquela improvisação anterior era ineficiente.
Mas, de forma quase instintiva, o garoto se adaptou ao manuseio da espada de ossos com surpreendente facilidade. Talvez fosse porque a arma combinava naturalmente com seu estilo de luta e movimentação, fluido, selvagem, preciso.
De qualquer forma, Jasper se preparou para seguir em frente. Ajustando o elmo curvado sobre a cabeça, o Vulto Negro sentiu suas forças renovadas, e junto delas, uma estranha sensação de leveza, quase como se pudesse alçar voo naquele exato momento.
Com um único salto, deixou para trás o abrigo improvisado e partiu rumo a um futuro incerto… mas ainda carregando, no fundo do peito, a esperança de encontrar um lugar melhor para viver.
Enquanto se afastava correndo, com sua imagem distorcida como um vulto marcado pela tonalidade escura de sua armadura, Jasper não notara que, muito longe no horizonte atrás dele, uma tempestade de areia vermelha se formava.
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