No véu entre realidade e sonhos, Jasper estava preso a uma cadeira de metal, conectado a tubos que injetavam um líquido vermelho-escarlate. Do outro lado do vidro, um homem de jaleco branco o observava com frieza.

    Ele não entendia as motivações daquela pessoa. Na época, sentia-se vazio por dentro. Ainda assim, havia uma missão gravada em seu corpo que o mantinha de pé, mesmo com a alma oca.

    Com o puxar de uma alavanca, eletricidade percorreu os tubos, enviando descargas que rasgavam seus nervos em dor. Mas, Jasper não se mexia. O líquido queimava em sua corrente sanguínea, trazendo um sofrimento tão profundo que ele preferia esquecer.

    A voltagem aumentava. Era como uma execução por cadeira elétrica, com a única diferença de que ele não podia morrer. A dor o fez se debater até que alguns tubos se soltaram.

    Sua sombra se alongou pelas paredes da sala, distorcendo-se até ganhar presas e garras, como se refletisse o ódio reprimido que, com o passar do tempo, começava a se tornar uma manifestação quase viva daqueles sentimentos.

    Tomado por uma força descomunal para alguém da sua idade, Jasper rompeu as algemas metálicas que o prendiam à cadeira, fazendo o metal ceder sob a pressão de seus pulsos. Sem perder tempo, arrancou os tubos conectados ao seu corpo, fazendo o líquido vermelho jorrar e escorrer por toda a sala de testes, tingindo o chão e as paredes com um tom grotesco de violência e libertação.

    Seu objetivo era claro: destruir tudo ao seu redor, inclusive o homem que o observava atrás do vidro. Agora, com sua aparência finalmente exposta, ficava evidente que ele não era tão humano quanto Jasper imaginara.

    Sua silhueta era alta e antinaturalmente esguia. A pele tinha um tom verde profundo e opaco, com uma textura que lembrava madeira velha e queimada.

    Das sombras, projetavam-se duas longas antenas de gafanhoto e, logo abaixo, olhos azuis brilhantes cintilavam com uma intensidade quase hipnótica. Mais abaixo, uma mandíbula de inseto, repleta de dentes afiados, formava um estranho e demoníaco sorriso.

    A criatura parecia satisfeita com a reação do garoto, que para ele não passava de uma ferramenta viva, moldada para servir a seus próprios objetivos obscuros. Mas tudo mudou ao perceber uma súbita alteração no foco do experimento.

    Um brilho prateado piscou na cruz pendurada no pescoço de Jasper. Aquele objeto era tão parte dele quanto a própria sombra que o perseguia. E, naquele instante, o lado bestial do garoto começou a recuar, como se a simples presença da cruz fosse capaz de acalmar o caos interior, libertando-o, pouco a pouco, daquelas memórias dolorosas.

    Sua mente emergiu do torpor, trazendo vagas lembranças à superfície.

    Quando abriu os olhos, Jasper percebeu que estava deitado ao lado do Undead lupino que quase o matara no dia anterior. Agora, a criatura se aconchegava a ele como se buscasse proteção.

    Com cautela, ele se arrastou para trás, em completo silêncio. Depois de tanto tempo vivendo no Deserto de Sonata, mover-se sem produzir o menor ruído havia se tornado um hábito natural para Jasper.

    Observando melhor a criatura — um quadrúpede coberto por placas orgânicas negras, de onde um brilho azulado escapava por pequenas frestas — Jasper compreendeu uma verdade incômoda: se ela realmente quisesse, ele já não estaria vivo para fazer aquelas perguntas.

    Os olhos e o focinho tinham uma película retrátil, funcionando como um visor de proteção. Curioso, Jasper estendeu a mão para tocá-lo, algo raro, vindo de alguém que só conhecia a solidão.

    Antes que pudesse encostar, foi erguido com facilidade, segurado pelo braço. O homem o fitava com seu único olho vermelho, intenso e ameaçador.

    — Então você finalmente acordou, Vulto Negro — disse, irritado. — Por que não me contou que era um Desperto antes de lutarmos?

    Suspenso no ar, Jasper não se sentia intimidado. Ao relembrar o que aquele ciclope ósseo havia feito poucas horas antes, sentiu o ódio reprimido voltar à tona, queimando em seu peito como uma brasa reacendida.

    Ajustando seus movimentos à posição desvantajosa, ele impulsionou o corpo para cima e desferiu um chute direto no olho vermelho do caçador.

    Mas, diferente do que imaginara, o golpe não teve efeito algum. Mesmo sendo o único ponto desprotegido pelas inúmeras placas ósseas, o olho do caçador não era tão vulnerável quanto parecia.

    O globo ocular irradiava um calor intenso, tão forte que chamuscou parte da armadura rústica de Jasper antes que ele recuasse às pressas, sentindo o cheiro de metal e couro queimado no ar.

    Cansado daquela situação, o caçador largou o braço do Vulto Negro, deixando-o cair sobre o solo arenoso do deserto. Já não via mais aquele garoto como uma presa… apenas como o que ele realmente era: uma criança perdida.

    — Ei, garoto… qual é o seu nome? — perguntou, com um olhar curioso, a voz grave carregada de um tom inesperadamente casual. — Você é… estranho. Por isso decidi não te abrir ao meio… ainda.

    Jasper hesitou por um instante, encarando a criatura com desconfiança diante daquela mudança repentina de atitude. Depois de tanto tempo lutando sozinho pela própria sobrevivência, qualquer aproximação inesperada era suficiente para acionar seus instintos de alerta imediato.

    No entanto, ao perceber o cenário ao redor da cavidade natural onde estavam, sendo iluminada apenas por uma fogueira simples, Jasper finalmente entendeu a situação.

    Espalhados pelo chão, jaziam dezenas de corpos abatidos de centopeias gigantes, provavelmente atraídas pelo som da luta entre eles.

    Foi então que caiu a ficha: aqueles dois haviam eliminado todas as criaturas… sozinhos… enquanto ele permanecia inconsciente.

    — Meu nome é Jasper… só Jasper — respondeu, forçando-se a relaxar um pouco depois de tanta luta, mas sem desviar o olhar, mantendo os olhos fixos no Caçador de Ossos, como quem não confiava completamente na trégua.

    — Eu sou o Caçador de Ossos. E esse cão medroso se chama Kaern. — A resposta veio seca, encerrando o assunto.

    Jasper apenas assentiu, estranhando o nome do ciclope ósseo. Soava mais como um título do que um nome.

    — Por quanto tempo você andou por esse deserto? — perguntou o Caçador, afiando uma adaga de ossos. — Eu me enfiei nesse fim de mundo atrás de uma boa caça… e só encontrei um moleque perdido.

    — Cinco meses… Sete milhões de passos… caminhando cerca de oito horas por dia… sem contar os ataques das centopeias.

    O Undead deixou a adaga cair. Aquilo não era um chute. O garoto estava falando sério.

    — Pra um moleque, sua memória é bem… detalhada. — O tom era de descrença. — Eu não sou nenhum cientista pra abrir sua cabeça… Mas seus ossos, tendões e órgãos… isso talvez tivesse mercado.

    O Caçador de Ossos riu, uma gargalhada baixa e gutural.

    Jasper se encolheu de forma inconsciente ao ouvir a palavra cientista, um calafrio percorrendo sua espinha como uma corrente gélida.

    As lembranças eram vagas, distorcidas como fragmentos de um pesadelo… mas mesmo assim, já eram o suficiente para trazer um mal-estar profundo, quase físico, como se o passado ainda tivesse garras cravadas dentro dele.

    Enquanto isso, Kaern se aproximava novamente de Jasper, aconchegando-se ao lado do menino. No início, ele não teve qualquer reação ao contato… mas, depois de tanto tempo sozinho, acabou aceitando a aproximação. Um sorriso leve, quase imperceptível, surgiu por baixo do elmo.

    — Por que… me deixaram viver? E o que significa ser um Desperto… do que você estava falando? — perguntou, ainda desorientado, com a voz baixa e carregada de confusão.

    — Nasceu ontem, foi? — zombou, mas depois explicou: — Undeads racionais, como eu e aquele ali — apontou para o lobo metálico — somos chamados de Despertos.

    Depois, indicou os cadáveres das centopeias gigantes.

    — Aqueles são Bestiais: irracionais, só agem por instinto. Não costumam ser tão fortes. Eu os caço por hobby.

    Jasper observou os corpos. A fome apertava. Quase caminhou até eles, sedento por carne, mesmo odiando o gosto.

    — Se continuar comendo essas coisas cruas, vai passar a vida desmaiando por aí — disse o caçador, cruzando os braços com desdém. — Devia procurar um lugar melhor pra viver do que esse deserto de merda.

    Sem dizer mais nada, o Undead lhe entregou uma bolsa feita da pele de Bestiais. Usar partes dos semelhantes — ou se alimentar deles — não era incomum.

    Kaern, o lobo, pegou a bolsa com a boca e a levou até Jasper. Embora não falasse, ele parecia diferente dos outros Undeads.

    Dentro, havia três frutas estranhas, parecidas com maçãs, mas com uma casca áspera como escamas de lagarto. Jasper mordeu com força. O gosto ácido queimava sua boca, mas a polpa era doce e cremosa, um verdadeiro banquete depois de meses de fome.

    Enquanto comia, o ciclope ósseo o observava em silêncio, atento a cada movimento. Fazia anos que não via um humano… e aquele, em especial, estava longe de ser comum. Se não o tivesse visto abrir o elmo para se alimentar, talvez jamais tivesse notado sua verdadeira natureza.

    Além disso, algo o impressionava: depois de apenas uma noite de descanso e algumas daquelas frutas, todas as feridas de Jasper haviam cicatrizado por completo. Aquilo não era normal.

    Uma existência intrigante, era a única definição que lhe ocorria.

    E então… o que eu deveria fazer com alguém como você, Jasper? Matar, vender, empalhar…? Não… acho que prefiro ver até onde você vai desse jeito.

    O Caçador de Ossos não sabia… mas, ao lado daquele garoto, uma vida tranquila seria a última coisa que iriam encontrar…

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