Capitulo 5: Asa negra
O Vulto Negro corria pelo Deserto de Sonata, seus passos levantando redemoinhos de areia que se dispersavam no ar como uma névoa vermelha e sufocante. A cada avanço, a paisagem tremia e, atraídas por seu rastro, centopeias gigantescas rompiam a superfície do solo, emergindo com mandíbulas abertas e olhos famintos, sedentas pela carne fresca de Jasper.
Mas tudo o que receberam foram os cortes impiedosos da lâmina óssea recém-adquirida por ele. Antes, enfrentar essas criaturas de frente teria sido suicídio. No entanto, agora, com as forças renovadas, Jasper não conteve o impulso.
A vontade de testar sua nova arma queimava em suas veias, e cada golpe era uma liberação brutal dessa fúria contida.
Em poucos segundos, dezenas de corpos jaziam espalhados pela areia vermelha, tingindo-a com o contraste vívido de seu sangue esverdeado. Jasper, por sua vez, finalizava o massacre com precisão letal, fatiando a última criatura viva em três partes, sua lâmina rasgando o revestimento orgânico e a carne com fluidez implacável, como se aquele fosse o único desfecho possível.
Logo após o golpe final, algo mudou, sutil, quase imperceptível. Um som quebrou o silêncio: o ruído leve de pedrinhas rolando e caindo.
Ele se virou rapidamente e avistou uma rocha danificada. Mas aquilo não parecia natural… tampouco causado pelas centopeias.
Três cortes precisos marcavam sua superfície, idênticos aos que ele acabara de executar.
O que é isso? Será que… essa espada tem algum poder especial?
Intrigado, Jasper repetiu os movimentos de corte, variando força, velocidade e ângulo, tentando desesperadamente entender o que havia acontecido. Mas, por mais que tentasse, a rocha permanecia intacta.
— É, parece que não… o que deve estar faltando? — disse, desapontado, mas ainda intrigado.
Ao analisar as marcas, concentrou-se na sensação que tivera ao realizar o ataque anterior. Percebeu que a diferença estava na forma como havia se entregado ao momento, algo instintivo, inconsciente.
Uma onda de clareza percorreu sua mente. O segredo não estava nos movimentos em si, mas no foco absoluto que sentira, como se seu corpo, a arma e o instante tivessem se fundido por completo.
Alinhando-se com a rocha a cerca de quinze metros, o limite de sua percepção especial, onde podia sentir até mínimas alterações no ar, Jasper desferiu um corte vertical. A lâmina não tocou a pedra, mas ainda assim ela se partiu ao meio sem resistência.
O responsável era o vento — uma lâmina invisível gerada a partir de seu movimento preciso.
— Entendi… — murmurou, estreitando os olhos. — Pensando bem, lembro de ter feito algo parecido contra o Caçador de Ossos…
Imagens vieram à mente: a barreira giratória de vento que surgira instintivamente em um momento de puro desespero. Na época, achou que fosse sorte… mas agora começava a perceber que havia mais por trás daquilo, algo que finalmente começava a despertar.
Sentindo uma empolgação crescente, começou a desferir cortes de vento à vontade, como uma criança que recebe seu primeiro presente. Momentos assim eram tão raros para Jasper, que ele tinha certeza de que nunca se esqueceria dessa experiência.
Infelizmente, aquilo não poderia durar para sempre. Ao terminar de partir algumas outras rochas com suas lâminas de vento, sentiu uma tontura imediata.
Diferente do estado energético de antes, Jasper agora se sentia repentinamente desgastado, como se tivesse voltado a alguns dias atrás, quando sobrevivia sempre entre a vida e a morte.
Deduzindo o motivo daquela mudança, Jasper decidiu usar aquela nova habilidade apenas quando fosse realmente necessário. Afinal, se perdesse as forças durante uma luta, o resultado poderia ser igual ao de seu confronto contra o Caçador de Ossos e, se tivesse azar, o inimigo talvez não demonstrasse tanta piedade quanto ele.
Olhando ao redor para os inúmeros cadáveres das criaturas mortas, o Vulto Negro sabia que teria de retomar seu velho hábito de devorar Bestiais para se recuperar. Sem desperdiçar mais nenhum minuto precioso, Jasper avançou faminto na direção das carcaças.
Tendo experimentado aquelas frutas exóticas no dia anterior, Jasper agora sentia ainda mais dificuldade em digerir a carne dura das centopeias, que, mesmo recém-abatidas, pareciam ter os corpos naturalmente podres, conferindo uma textura repulsiva aos seus tecidos espessos.
— No fim… não importa o gosto — sussurrou para si mesmo. — Eu ainda tenho que continuar vivo.
Foram necessários apenas alguns minutos para que Jasper terminasse de se alimentar de todas as criaturas. Sentindo-se menos exausto, estava pronto para continuar sua caminhada, deixando para trás os cristais escuros que não tinham utilidade para ele. No entanto, havia quem visse valor naqueles objetos desprezados pelo Vulto Negro.
Do interior de uma grande formação rochosa, um bando de abutres surgiu, perfurando a pedra com seus bicos pontiagudos, que funcionavam como brocas devido ao movimento giratório que faziam ao voar. Jasper sentiu seus instintos se aguçarem ao presenciar aqueles pássaros, com quase três metros de envergadura, avançando todos em sua direção.
Pronto para mais uma luta sanguinária contra Undeads, Jasper empunhou sua espada de ossos e aguardou com atenção a aproximação dos abutres. Assim que o primeiro alvo entrou em sua zona de percepção especial, ele usou sua nova habilidade para cortar uma das asas do inimigo com uma lâmina de vento.
A ave despencou contra o solo avermelhado, soltando um assobio triste, um apelo para que seus companheiros a ajudassem. Mas, ao contrário, todos os outros do bando ignoraram tanto o aliado ferido quanto o Vulto Negro, passando direto por eles, com os olhos vidrados nos cristais escuros das centopeias gigantes.
Cada abutre abocanhou um único cristal e iniciou a fuga veloz gravada em seus instintos, usando os bicos para afundar na areia do deserto sem deixar rastros ou deformidades após adentrarem o subsolo.
Enquanto isso, o companheiro caído permanecia para trás, debatendo-se sem equilíbrio por causa da perda da asa. Jasper encarava toda aquela cena com um olhar vazio.
A visão do pássaro sofrendo após a perda de um membro despertou certa empatia no menino; porém, ele também sabia que, se o deixasse escapar, perderia um alimento escasso.
Está tudo bem… Não há nada de errado no que estou fazendo. Eu sou o caçador, e ele, a presa. Em outra ocasião, poderia ser eu no lugar desse Bestial.
Aproximando-se do abutre ferido, que naquele momento tentava alcançar a metade que restara de um cristal escuro danificado, Jasper ergueu a lâmina opaca. Seria melhor matá-lo de uma vez, em vez de prolongar o sofrimento da criatura.
Nos últimos instantes antes de a lâmina óssea cortar a cabeça da ave, Jasper notou o olhar desistente que ela lançava em sua direção, como se seu destino já estivesse selado. O leve brilho prateado da cruz que carregava no pescoço o fez hesitar, um lembrete sutil de que, por debaixo daquela armadura, ainda existia um garoto.
O animal fechou os olhos, esperando a dor e o desconforto, mas eles nunca chegaram. Apenas o som de um baque seco e da areia sendo levada pelo vento, seguido de passos se distanciando… e, pouco tempo depois, retornando.
Ao reabrir os olhos, a criatura viu o garoto com o cristal nas mãos, colocando-o ao seu lado com cautela. Sua primeira reação foi devorar o objeto às pressas, absorvendo a energia residual contida nele.
Jasper assistiu surpreso ao corpo do abutre reagir à radiação do cristal, regenerando os músculos e tecidos cortados e gerando uma asa completamente nova e funcional em uma velocidade anormal.
O bestial estendeu o par de asas, recuperando o brilho vivido nos olhos e, preparando-se para alçar voo, olhou novamente para o Vulto Negro, emitindo um grunhido sibilante antes de arrastar sua antiga asa até ele como retribuição pela ajuda.
— Bem… obrigado, eu acho — agradeceu, segurando o pedaço da asa quebrada e refletindo sobre suas ações anteriores. Jasper observou o ponto onde o abutre desaparecera, sentindo, por um instante breve, que talvez existisse algo além da selvageria naquele deserto maldito.
Ele se perguntava o que haveria no subsolo para que tantos Bestiais se abrigassem ali. Essa era a estratégia de sobrevivência da maioria das criaturas que, Jasper encontrava no Deserto de Sonata.
No momento, ele não estava com vontade de descobrir na prática o motivo, preferindo focar em seu objetivo final que, de certa forma, também não tinha explicação, além da intuição. Era como se fosse guiado apenas pelas estrelas.
Adicionando a asa de abutre às costas de sua armadura orgânica, voltou a correr na direção do que seria a saída do Deserto de Sonata, sem saber que o destino planejava mantê-lo ali por muito mais tempo do que esperava.
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