Capítulo 10: O Ceifador Silencioso
O Deserto de Sonata, antes um local mórbido e silencioso, onde os únicos sons vinham das centopeias gigantes devorando tudo que se movia e dos abutres escuros caçando resquícios de cristais, agora só ressoava com o crepitar do fogo e o eco da montanha obliterada.
Dentro da Dama da Ruína, Zath fitava a nuvem espessa de poeira e fumaça com seus múltiplos olhos.
Era difícil decifrar o que se passava em sua mente, mas, pela expressão imóvel e concentrada, parecia mergulhado em pensamentos, e sua companheira logo percebeu isso.
— Ah, vamos… a situação não é tão ruim quanto parece. Só destruímos anos de trabalho do “mestre” Skarneth — comentou com uma leveza quase irracional. — Podíamos simplesmente seguir em frente para a próxima Zona… quem sabe ele até se esqueça da gente com o tempo.
Os tentáculos de Zath se retraíam lentamente, voltando a formar apenas a capa arroxeada, enquanto ele se afastava da esfera holográfica, pronto para deixar a sala de comando.
— Não… eu me descontrolei outra vez e comprometi a missão. Talvez… talvez eu não seja bom o suficiente para o cargo de comandante — declarou, enquanto o brilho dos olhos espalhados pelo corpo começava a enfraquecer. — É só que… eu odeio ver a Dama da Ruína nesse estado.
A palhaça se conteve pela primeira vez. A verdade é que nenhum deles estava ali por vontade própria; apenas haviam sido escolhidos como a melhor opção para aquela caçada absurda ordenada por Skarneth.
Questionar o motivo ou recusar o chamado era impossível. Na Igreja Amaldiçoada, a palavra de um Amaldiçoado não era apenas uma ordem: era uma sentença irrevogável.
— Sabe, comandante… — disse, com a voz mais suave do que o habitual — eu não gosto de ver você assim.
Zath não respondeu. Continuou andando.
Ela se apressou, girando como uma bailarina desequilibrada, e parou à frente dele, com os braços abertos e um sorriso por trás da máscara dourada.
— Por isso, senhor mal-humorado, prepare-se para ser… encantado! — anunciou, tirando algo que lembrava um baralho amassado e cintilante.
Zath arqueou uma sobrancelha, ou o que quer que substituísse aquilo em seu rosto disforme.
— Mirage… eu não estou no humor para—
— Puf! Silêncio mortal, por favor. — cortou ela, jogando as cartas no ar.
As cartas flutuaram por alguns segundos e logo começaram a brilhar de forma suspeita.
Uma delas explodiu em uma faísca azul, depois outra, até que todo o baralho se transformou em um turbilhão de chamas descontroladas.
— Ops… era o baralho explosivo de emergência… — murmurou, antes de ser arremessada contra a parede com uma pequena detonação.
Zath foi envolto por uma cortina de fumaça roxa. Um de seus olhos no peito girou lentamente para encará-la.
— Você… acabou de tentar me animar com explosivos? — tossiu, afastando a fumaça com as mãos.
— Depende… funcionou?
Por um instante, um dos olhos de Zath brilhou fracamente, como se estivesse entre o desprezo e a vontade de rir.
— Você é insuportável.
— Admito que sou incrível, isso sim — respondeu, escorregando pela parede até cair sentada.
Enquanto os dois se distraíam, um novo ponto surgiu na tela do radar da nave, algo estranho, considerando que era impossível os alvos terem sobrevivido ao disparo do canhão principal.
Isso só podia significar uma coisa: outra presença acabara de surgir.
Talvez aquela Zona Selvagem desértica não fosse tão desprotegida quanto aparentava. E, no fim, toda aquela destruição não sairia impune.
Emergindo do subterrâneo, centopeias bestiais escavavam a areia de forma ordenada.
Seus movimentos estavam sincronizados, como se obedecessem a um comando invisível, tudo para que um único ponto de luz esverdeada escapasse do centro da formação.
O crepitar das chamas foi interrompido por uma espiral giratória que sobrevoava o local atingido pelo canhão principal.
Em alta velocidade, ela disparou em direção à Dama da Ruína, perfurando sua lateral com brutalidade e fazendo a nave soltar um grito agudo de dor.
Por um breve instante, a figura oculta de um Desperto pôde ser vista: olhos profundos, de um âmbar fosco e opaco, uma mistura de tristeza e sabedoria acumulada; pele pálida, com tons acinzentados, exibindo veias escuras que se acenderam em verde.
Empunhava uma foice de batalha gigante — desproporcional ao seu corpo esguio e fragilizado — de tonalidade escura, com exceção do fio, que se assemelhava a crosta lunar e irradiava um brilho sereno.
— Mas o quê? Isso é impossível! Aqueles malditos não podem estar vivos… o que está nos atacando? — perguntou, incrédulo, sentindo a raiva latente subir novamente, acendendo seus múltiplos olhos com ódio.
Por um instante, todos os sensores falharam. As câmeras internas se apagaram. A Dama da Ruína estremeceu, não por falha técnica, mas por medo.
Um corte violento atravessou todo o casco inferior, subindo pelas entranhas da nave como um rasgo em um cadáver ainda quente. A estrutura rangeu em protesto, soltando vapores de óleo quente e sangue negro misturado a fragmentos metálicos.
— O que foi isso?! — rugiu, erguendo seus tentáculos defensivamente.
Mirage, ainda recostada após a explosão do baralho mágico, mal teve tempo de reagir. Um clarão esverdeado cortou o ar em linha reta, surgindo de uma abertura grotesca no chão.
— Ei! Isso não tá no manual de segurança, sabia?! — exclamou, instantes antes de ser atingida.
A lâmina atravessou seu ombro até a cintura, deixando um rastro de faíscas e de um líquido azulado que vazava de seu corpo.
Sem resistência, a mulher rodopiou no ar, jogada contra uma das colunas da sala de comando. Os sinos em sua máscara tilintaram de forma irregular, quase melancólica.
O Ceifador misterioso nem hesitou. Correu pela parede com uma leveza antinatural, como se a gravidade nem sequer o afetasse.
Sua foice girava nas mãos como uma extensão do próprio ser, cortando tubos, sensores e suportes com precisão milimétrica.
Em um único salto, rompeu o teto da nave com a lâmina, abrindo um buraco circular de quase dois metros de diâmetro.
Lá em cima, o céu alaranjado do entardecer recebia a silhueta do invasor, que já se preparava para desaparecer entre as dunas e colunas de fumaça.
— VOCÊ NÃO VAI ESCAPAR! — gritou, lançando-se para o alto com o auxílio de vários tentáculos que se esticavam como molas monstruosas.
Deslizando pelas estruturas externas da nave, o Desperto corria pelas paredes curvas da fuselagem, enquanto Zath o seguia aos saltos, usando suas garras afiadas para se prender às bordas da embarcação.
Dos olhos conectados aos seus tentáculos, diversos elementos eram disparados com precisão mortal: jatos de água, chamas ardentes e rajadas de vento cortante avançavam em direção ao Ceifador.
Ainda assim, ele desviava de cada ataque com uma agilidade sobrenatural, movendo-se como uma sombra líquida quase irreal, antecipando cada movimento.
Até que saltou, com sua aura espectral parecendo carregá-lo pelo ar. Girando o corpo em sincronia com a foice lunar, lançou diversos cortes energéticos esverdeados na direção do comandante.
Tomado pela raiva, Zath ignorou as lâminas que se aproximavam e concentrou todos os elementos que controlava em seu olho central para contra-atacar.
Ambos foram atingidos ao mesmo tempo, em um golpe decisivo.
O comandante foi arremessado para trás, o olho maior de seu peito rachado ao meio. Por ironia do destino, justamente ali estava seu Núcleo Mutante, a parte mais vital de um Undead, mas também a mais resistente.
Se não fosse por essa proteção, ele teria sido partido em duas metades perfeitas, sem a menor chance de regeneração.
O raio roxo atravessou o flanco do Undead silencioso, abrindo um rasgo na carne esbranquiçada. Sua aura espectral vacilou, estremecendo antes de se dissipar por um instante.
A foice escapou de seus dedos, girando no ar como uma hélice desgovernada antes de cravar-se em uma das dunas escaldantes.
O corpo esguio despencou em queda livre, como uma marionete sem cordas, rachando o solo num impacto seco e abafado.
Mas então, o chão sob ele começou a se agitar.
Uma… duas… dezenas de centopeias irromperam da areia ao mesmo tempo, atendendo ao chamado de seu líder. Cercaram o Desperto caído, formando um anel grotesco de corpos segmentados.
No centro da formação, a areia girava em um redemoinho profundo que engoliu o Ceifador, fazendo-o desaparecer por entre as mandíbulas das criaturas que agora pareciam mais guardiãs do que predadoras.
Só restava o som distante da foice vibrando levemente, cravada na superfície… até que ela também sumiu, arrastada pela última centopeia que se enterrou na terra.
Em cima do teto da nave, Zath caía de joelhos, o peito ardendo onde o olho central fora cortado. O sangue avermelhado escorria lentamente pelas suas placas roxas, manchando o metal com um tom escarlate opaco.
Seus múltiplos olhos piscavam com dificuldade, a dor ameaçando paralisá-lo.
— Droga… — cuspiu mais líquido pela fenda da boca, forçando-se a manter a coluna ereta. — Desgraçado rápido… quase me partiu ao meio…
Passos suaves ecoaram por trás dele. Algo leve, quase dançante.
— Aqui estou eu, viva, ilesa e fabulosa, como sempre! — uma voz cantada anunciou, acompanhada de um estalar de dedos.
Mirage deslizou para perto com a graça de uma dança, a máscara dourada ocultando seu sorriso tranquilo. Ao contrário de Zath, seu corpo não tinha um único arranhão.
— O truque é ter um corpo menos… fixo — disse, dando um leve tapa no próprio abdômen, que balançou como gel.
No lugar de carne dilacerada, apenas uma ondulação líquida percorria a área. Seu torso parecia feito de uma substância gelatinosa azulada, com tons translúcidos que pulsavam suavemente.
Ela se agachou ao lado do comandante, observando seu estado com um raro toque de preocupação genuína.
— Já você… — disse suavemente, tocando a beirada do corte no peito de Zath. — Está um caco.
— Me deixe. Eu ainda tenho que…
— Shhh… — sussurrou, levando o dedo aos lábios da máscara. — Agora é minha vez de cuidar de você, comandante rabugento.
A brisa fria do deserto soprou pela primeira vez desde a destruição, espalhando as cinzas da montanha obliterada.
No topo da Dama da Ruína, as duas figuras observavam a linha do horizonte, sabendo que a verdadeira caçada ainda estava por vir.

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