O Deserto de Sonata, antes um local mórbido e silencioso, onde os únicos sons vinham das centopeias gigantes devorando tudo que se movia e dos abutres escuros caçando resquícios de cristais, agora só ressoava o crepitar do fogo e o eco da montanha obliterada pela Dama da Ruína.

    O comandante Zath encarava a nuvem espessa de poeira e fumaça com seus múltiplos olhos. Era difícil decifrar o que se passava em sua mente, mas, pela expressão imóvel e concentrada, parecia mergulhado em pensamentos, e sua companheira logo percebeu isso.

    — Ah, vamos… a situação não é tão ruim quanto parece. Só acabamos de eliminar anos de trabalho do “mestre” Skarneth. — comentou com uma leveza quase irracional. — A gente podia simplesmente seguir em frente para a próxima Zona Selvagem… talvez ele se esqueça da gente com o tempo.

    Os tentáculos de Zath se retraíam lentamente, voltando a formar apenas a capa arroxeada, enquanto ele se afastava da esfera holográfica, pronto para deixar a sala de comando.

    — Não… eu me descontrolei outra vez e comprometi a missão. Talvez… talvez eu não seja bom o suficiente para o cargo de comandante — declarou, enquanto o brilho dos olhos espalhados pelo corpo começava a enfraquecer. — É só que… eu odeio ver a Dama da Ruína nesse estado. Ela não foi feita para ser uma máquina de guerra…

    A palhaça se conteve pela primeira vez. A verdade é que nenhum deles estava ali por vontade própria, apenas haviam sido considerados a melhor opção para aquela caçada absurda ordenada por Skarneth.

    Questionar o motivo ou recusar o chamado era impossível. Na Igreja Amaldiçoada, a palavra de um Amaldiçoado não era apenas uma ordem… era uma sentença. Irrevogável. E toda a tripulação teria que cumpri-la, quisesse ou não.

    — Sabe, comandante… — disse, com a voz mais suave do que o habitual — eu não gosto de ver você assim. A Dama da Ruína também não.Zath não respondeu. Continuou andando.

    Ela se apressou, girando como uma bailarina desequilibrada, e parou à frente dele com os braços abertos e um sorriso por trás da máscara dourada.

    — Por isso, senhor mal-humorado, prepare-se para ser… encantado! — anunciou, tirando algo que lembrava um baralho amassado e cintilante.

    Zath arqueou uma sobrancelha, ou o que quer que substituísse aquilo em seu rosto disforme.

    — Mirage… eu não estou no humor para—

    — Puf! Silêncio mortal, por favor. — cortou ela, jogando as cartas no ar.

    As cartas flutuaram por alguns segundos… e começaram a brilhar de forma suspeita. Uma delas explodiu com uma faísca azul, depois outra, até que todo o baralho virou um turbilhão de chamas mágicas descontroladas.

    — Ops… era o baralho explosivo de emergência… — murmurou, antes de ser arremessada contra a parede com uma pequena detonação.

    Zath foi envolto por uma cortina de fumaça roxa. Um de seus olhos no peito girou lentamente para encará-la.

    — Você… acabou de tentar me animar com explosivos mágicos? — tossiu, afastando a fumaça com as mãos.

    — Depende… funcionou?

    Por um instante, um dos olhos de Zath brilhou fracamente, como se estivesse entre o desprezo e a vontade de rir.

    — Você é insuportável.

    — Admito que sou incrível, isso sim. — respondeu, escorregando pela parede até cair sentada.

    Um novo ponto surgiu na tela do radar da nave, algo estranho, considerando que era impossível os alvos terem sobrevivido ao disparo do canhão principal. Isso só podia significar uma coisa: outra presença acabara de surgir.

    Talvez aquela Zona Selvagem desértica não fosse tão desprotegida quanto aparentava. E, no fim, toda aquela destruição não sairia impune.

    Um grupo de centopeias emergiu do subterrâneo, escavando a areia de forma coordenada. Seus movimentos estavam sincronizados como se obedecessem a um comando invisível, tudo para que um único ponto de luz esverdeada escapasse do centro da formação.

    O crepitar das chamas foi interrompido por uma espiral giratória que sobrevoava o local atingido pelo canhão principal. Em alta velocidade, ela disparou em direção à Dama da Ruína, perfurando sua lateral e fazendo a nave soltar um grito agudo de dor.

    Por um breve instante, a figura oculta de um Desperto pôde ser vista: olhos profundos, de um âmbar fosco e opaco, uma mistura de tristeza e sabedoria acumulada; pele pálida, com tons acinzentados, exibindo veias escuras que se acendiam em verde ao canalizar a fraca energia do seu Núcleo Mutante.

    Usando sua foice de batalha gigante — desproporcional ao seu corpo esguio e fragilizado — cravada na parede da embarcação, ele rasgava as placas metálicas com brutalidade feroz.

    — Mas o quê? Isso é impossível! Aqueles malditos não podem estar vivos… o que está nos atacando? — perguntou, incrédulo, sentindo a raiva latente subir novamente, acendendo seus vários olhos com ódio.

    Por um instante, todos os sensores falharam. As câmeras internas se apagaram. A Dama da Ruína estremeceu — não por falha técnica, mas por medo.

    Um corte violento atravessou todo o casco inferior, subindo pelas entranhas da nave como um rasgo num cadáver ainda quente. A estrutura rangeu em protesto, soltando vapores de óleo quente e sangue negro misturado com fragmentos metálicos.

    — O que foi isso?! — rugiu, erguendo seus tentáculos defensivamente.

    Mirage, ainda recostada após a explosão do baralho mágico, mal teve tempo de reagir. Um clarão esverdeado cortou o ar em linha reta, vindo de uma abertura grotesca no chão metálico.

    A lâmina atravessou seu ombro até a cintura, deixando um rastro de faíscas e liquido azulado.

    A mulher rodopiou no ar, jogada contra uma das colunas da sala de comando. Os sinos em sua máscara tilintaram de forma irregular, quase melancólica.

    O Desperto nem hesitou. Correu pela parede com uma leveza antinatural, como se a gravidade fosse apenas uma sugestão. Sua foice girava nas mãos como uma extensão do próprio corpo, cortando tubos, sensores e suportes com precisão milimétrica.

    Em um único salto, rompeu o teto da nave com a lâmina, abrindo um buraco circular de quase dois metros de diâmetro. Lá em cima, o céu laranja do entardecer recebia a silhueta do invasor, que já se preparava para sumir nas dunas e colunas de fumaça.

    — VOCÊ NÃO VAI ESCAPAR! — gritou Zath, lançando-se para o alto com o auxílio de vários tentáculos que se esticaram como molas monstruosas.

    O Desperto deslizava pelas estruturas externas da nave, correndo nas paredes curvas da fuselagem, enquanto Zath o seguia aos saltos, usando garras afiadas para se prender às bordas da embarcação.

    Tentáculos lançavam feixes de energia roxa pelos olhos, mas o invasor desviava de todos com agilidade sobrenatural. Ele se movia como uma sombra líquida, os pés mal tocando o metal, como se cada passo fosse um convite para o próximo ataque.

    Até que saltou, com sua aura espectral parecendo carregá-lo pelo ar. Girando o corpo em sincronia com a foice, lançou diversos cortes energéticos na direção do comandante.

    Tomado pela raiva, Zath ignorou as lâminas esverdeadas e concentrou todos os feixes de laser nos olhos para contra-atacar. Ambos foram atingidos ao mesmo tempo. O comandante foi lançado para trás, com o olho central em seu peito partido ao meio.

    Por sorte, aquela era justamente a localização do seu Núcleo Mutante — a parte mais vital de um Undead, mas também a mais resistente. Se não fosse por isso, teria sido cortado em dois.

    O raio roxo atravessou o flanco do Desperto com violência, fazendo sua aura espectral estremecer e se dissipar por um instante. A foice escapou de seus dedos, girando no ar como uma hélice antes de cravar-se em uma das dunas escaldantes.

    O corpo esguio caiu em queda livre como uma marionete sem cordas, rachando o solo num estrondo abafado.

    Mas, então, o chão abaixo dele começou a se mover.

    Uma… duas… dezenas de centopeias emergiram em sincronia, formando um círculo ao redor do Desperto caído. Seus corpos se entrelaçavam em espirais, encaixando-se como mecanismos naturais. No centro da formação, a areia girava num redemoinho profundo.

    O corpo ferido foi engolido sem resistência, desaparecendo por entre as mandíbulas das criaturas que, agora, pareciam mais guardiãs do que predadoras. Só restava o som distante da foice vibrando levemente, cravada na superfície… até que ela também sumiu, arrastada pela última centopeia que se enterrou na terra.

    Zath caiu de joelhos sobre o teto da nave, o peito ardendo onde o olho central fora cortado. O sangue escuro escorria lentamente pelas placas, manchando o metal com um tom sombrio. Seus múltiplos olhos piscavam com dificuldade, a dor ameaçando paralisá-lo.

    — Droga… — cuspiu sangue escuro pela fenda da boca, forçando-se a manter a coluna ereta. — Desgraçado rápido… quase me partiu ao meio…

    Passos suaves ecoaram por trás dele. Algo leve, quase dançante.

    — Aqui estou eu, viva, ilesa e fabulosa, como sempre! — respondeu com a voz cantada e um estalar de dedos.

    Mirage deslizou para perto com a graça de uma dança, a máscara dourada ocultando seu sorriso tranquilo. Ao contrário de Zath, seu corpo não apresentava um único arranhão.

    No lugar de carne dilacerada, apenas uma ondulação líquida percorria a área, seu torso parecia feito de uma substância gelatinosa azulada, com tons translúcidos que pulsavam suavemente.

    — O truque é ter um corpo menos… fixo — disse, dando um tapa leve no próprio abdômen, que balançou como gel.

    Ela se agachou ao lado do comandante, observando seu estado com um raro toque de preocupação real.

    — Já você… — disse suavemente, tocando a beirada do corte em seu peito. — Está um caco só.

    — Me deixe. Eu ainda tenho que…

    — Shhh… — sussurrou, levando o dedo aos lábios da máscara. — Agora é minha vez de cuidar de você, comandante rabugento.

    A brisa fria do deserto soprou pela primeira vez desde a destruição, espalhando as cinzas da montanha obliterada.No topo da Dama da Ruína, duas figuras quebradas, mas não derrotadas, observavam a linha do horizonte… sabendo que a verdadeira caçada ainda estava por vir.

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