No subsolo oculto do deserto, o Ceifador se arrastava por uma estrada de blocos de pedra maciços, ladeada por estátuas quebradas que ele próprio esculpira em homenagem a antigos companheiros.

    Agora, restavam apenas fragmentos mudos, testemunhas de um passado soterrado.

    Parou diante da entrada de um templo antigo: uma pirâmide metálica, outrora dourada e reluzente, agora cinzenta e enferrujada.

    Usando as últimas forças para se erguer, o Desperto adentrou o local, deixando atrás de si um rastro de sangue negro.

    Engrenagens antigas rangeram quando os portões ornamentados foram forçados a se abrir. A estranha luminosidade do subterrâneo invadiu a estrutura, revelando o que repousava em seu interior.

    Ali, entre sombras e fulgor metálico, movia-se uma criatura colossal. Rastejava lentamente, suas inúmeras patas grossas reluziam como lâminas de obsidiana, ressoando contra o solo a cada movimento.

    Seu corpo, tão extenso que ultrapassava a própria pirâmide, lembrava uma muralha viva, coberta por placas rígidas e escuras, polidas a ponto de refletirem a luz em fragmentos distorcidos.

    O som de sua respiração subterrânea era como o vento sibilante que precede uma tempestade.

    O Ceifador avançou um passo, fixando o olhar na direção da centopeia gigantesca.

    — Narhma… eu preciso descansar um pouco agora — murmurou, limpando o sangue que insistia em escorrer pelo flanco. — Tente não se mover demais… eles podem detectar você lá em cima. Perdão. Eu tive que agir naquele momento.

    Seus olhos se estreitaram, carregados de exaustão e alívio.

    — O que esperei por anos, enfim… chegou.

    A anciã não respondeu com palavras. Apenas moveu lentamente parte de seu corpo colosal, e as placas escuras se abriram como um véu, revelando sete sarcófagos metálicos.

    Cada um deles estava inteiramente coberto por fórmulas matemáticas minuciosas, gravadas até o último centímetro de sua superfície, selos criados não apenas para aprisionar, mas para proteger dados preciosos, ocultos desde eras esquecidas.

    Ele caminhou até um dos artefatos, aquele que trazia seu nome: Osiris, gravado sob o símbolo dos Malwares, um olho aberto cercado por três luas invertidas.

    Ao vê-lo mancar, Narhma emitiu um rosnado baixo e prolongado, carregado de dor contida. Quase humano em sua tristeza.

    No interior do sarcófago, o corpo do Undead era banhado por um tipo de Miasma extremamente condensado. Era o único jeito de manter seu Núcleo Mutante danificado em funcionamento e, consequentemente, regenerar seus machucados.

    O portão se fechou atrás dele e, com isso, o silêncio sepulcral voltou a reinar em todo o subsolo. Esse silêncio, porém, seria quebrado em outro ponto, quando — Jasper — despertou em meio à escuridão de uma caverna.

    Caído sobre lama e areia, abriu os olhos azuis, ainda turvos, acostumando-se gradualmente à penumbra. Até que um brilho vermelho intenso o fez virar a cabeça.

    — Olha só… você está vivo — disse uma voz desdenhosa. Era o Caçador de Ossos, sua fala ecoando pelas paredes de pedra. — Pensei que já tivesse batido as botas depois de dormir tanto.

    — O que… aconteceu?

    O garoto virou-se por completo e se deparou com a cena grotesca: metade do corpo do ciclope ósseo estava esmagada por uma pedra enorme, sangue e estilhaços de ossos escorrendo pelo chão.

    — Como… como você ainda está vivo?

    — É simples. Se essa belezinha aqui ficar intacta, eu não morro — respondeu, tocando seu único olho vermelho brilhante que permanecia inteiro. — Meu Núcleo Mutante vai curar meu corpo, cedo ou tarde, mas ajudaria se você cortasse essa metade morta.

    Quanto mais conheço esse cara, mais ele me assusta pensou, sentindo o enjoo subir com a visão asquerosa. Era melhor acabar com aquilo rápido, antes que soltasse até o que não tinha no estômago.

    Procurando por sua lâmina, a encontrou presa entre duas rochas. Reunindo o pouco de força que lhe restava, tentou se levantar: primeiro apoiando as mãos no chão, depois os pés.

    CRACK!

    Desabou. Uma dor lancinante percorreu-lhe a perna esquerda, enquanto o estalo seco anunciava a sensação horripilante da carne sendo rasgada pelo osso, que parecia prestes a saltar para fora, não fosse a barreira da armadura.

    — Agh… — abafou o grito, forçando-se a suportar a dor com os olhos marejados. Já era um hábito adquirido após tanto tempo no Deserto de Sonata.

    — Tsk… pelo visto vamos ficar presos aqui por um bom tempo. Eu ainda preciso me regenerar, e Kaern não vai acordar tão cedo — resmungou o Caçador, mantendo os olhos fixos na carcaça do lobo metálico caída do outro lado da sala.

    Jasper se deixou escorregar até a parede, exausto. Já havia sobrevivido a ferimentos terríveis antes, mas nenhum se comparava àquilo.

    Sua perna estava em frangalhos; os ligamentos dilacerados latejavam de maneira irregular, cada pulsar como um prego sendo martelado em seus músculos.

    Por um lado, agradecia não ver o estrago sob as placas escuras da armadura, apenas o sangue, que começava a se infiltrar e escorrer entre as frestas, denunciava a gravidade da ferida.

    A fragilidade que já o perseguia agora se tornava insuportável, pesando em cada respiração.

    Será que ainda consigo lutar? Será que ainda consigo me proteger?

    Cerrou os dentes, tentando manter a calma, mas a respiração falhava em soluços curtos. O coração disparava em um ritmo descompassado, não só pela dor, mas pelo medo que lhe apertava o peito.

    Um suor frio escorria pela testa, misturando-se à poeira e ardendo nos olhos, enquanto seu corpo inteiro tremia contra a parede, como se não fosse mais capaz de sustentá-lo.

    Mas, ao olhar para o Caçador de Ossos, o pânico cedeu espaço à dúvida. Ele permanecia imóvel, a expressão ossuda calma, como se o peso da pedra esmagando metade de seu corpo fosse irrelevante.

    — Isso… não dói? — perguntou Jasper, a voz rouca, quase incrédula.

    O grande olho do ciclope ósseo se contorceu antes de virar-se para encarar o Vulto Negro.

    — É óbvio, seu animal, isso dói como o inferno, e eu já estive lá para provar, mas eu prefiro morrer em silêncio do que me lamentando — bufou, o tom seco e carregado de desprezo. — Enfim, não é como se pudéssemos fazer muita coisa nessa situação, então se acalme e espere pelo momento certo de agir.

    Finalmente, Jasper percebeu que estava se apegando a “dores pequenas” diante de alguém que suportava, sem hesitar, uma sentença de morte.

    Inspirou fundo, controlando o tremor da respiração, e decidiu acatar o conselho, entregando-se ao silêncio que, pela primeira vez, não simbolizava sua solidão, mas sim o domínio sobre suas próprias emoções.

    Agora, com um pouco mais de calma, embora a dor ainda fosse intensa, Jasper passou a analisar a gruta em que estavam. O espaço era fechado, sem nenhuma saída aparente além do enorme buraco no teto.

    Ali, grandes marcas de escavação chamaram sua atenção; linhas profundas e irregulares que ele reconheceu de imediato. Não eram simples rachaduras: eram cicatrizes deixadas pelas presas de uma Centopeia Bestial.

    — Nós… caímos lá de cima, não foi? — murmurou. Parecia a única explicação de como tinham parado naquele lugar isolado.

    — Depois que Kaern ergueu uma barreira, torrando o resto da energia que tinha, aquelas centopeias idiotas cavaram uma passagem até aqui. — O Caçador fez uma pausa, a voz carregada de desgosto. — Infelizmente, alguém decidiu nos salvar.

    — Infelizmente? — estranhou. — Você preferia estar morto a aceitar ajuda?

    O típico sorriso torto surgiu no rosto destroçado do ciclope ósseo, enquanto fragmentos de sua carapaça se desprendiam dos músculos expostos.

    — Nesse mundo, morrer às vezes é um destino melhor do que dever um favor. — A voz do Caçador soou rouca, mas firme. — As pessoas são criativas quando o assunto é inventar tormentos, ou realizar experimentos bizarros.

    As palavras ecoaram na mente de Jasper. Ele já vira o quão cruéis os Undeads podiam ser, e o próprio Caçador era prova viva disso.

    — Era isso que você tinha em mente quando nos conhecemos pela primeira vez — comentou, sem demonstrar surpresa diante das intenções do Desperto.

    — Basicamente, sim. — O ciclope riu baixo. — Mas esqueça. Mesmo que, no fim, você só tenha me atrapalhado se jogando igual um louco daquela montanha na minha direção, vou considerar sua intenção na hora e ignorar essas baboseiras.

    Por um momento, Jasper também deixou escapar uma risada fraca ao se lembrar do que havia feito para chegar àquela situação: se jogar de um penhasco, lutar contra artrópodes deformados, receber um tiro de canhão a queima-roupa.

    Não importava o quanto pensasse, aquilo realmente tinha sido algo maluco de se fazer.

    Enfim, o silêncio voltou a reinar, quebrado apenas pelo gotejar distante da água e pelas respirações pesadas dos dois feridos.

    Enquanto os humanos dependiam de nutrientes físicos, água, comida e descanso, para acelerar o processo natural de cura, os Undeads necessitavam de algo muito mais vital: o Miasma.

    Era essa energia corrompida que mantinha seus Núcleos Mutantes ativos, permitindo que a carne se reconstruísse e que os corpos deformados continuassem funcionando.

    Sem alimento adequado para seus organismos, ambos compartilhavam o mesmo destino inevitável: a perda gradual das forças, até que a morte — lenta, paciente e implacável — viesse reclamá-los.

    — Acha que esse tal de “momento certo de agir” vai demorar muito pra aparecer? — soltou Jasper, irônico, a respiração entrecortada.

    A dor em sua perna aumentava conforme a adrenalina se dissipava, cada segundo transformando o ferimento em algo quase insuportável.

    — Só mais alguns instantes… — respondeu o Caçador de forma distante, como se tentasse reunir o pouco de energia que restava. Seu semblante, por mais mutilado que estivesse, exibia uma concentração quase perturbadora.

    Então, vieram os risos.

    Pequenos, quase infantis, lembrando zombarias escondidas nas sombras. Não ecoavam como sons comuns: eram sussurros ritmados, surgindo de todas as direções ao mesmo tempo.

    Risinhos secos, intercalados, que se arrastavam pelas pedras como serpentes invisíveis.

    — Kk… kk… kh… heh… hhrrrk…

    Jasper sentiu a espinha gelar. O Caçador, por sua vez, cerrou o punho ainda funcional.

    — Pronto… esse é o momento de agir — sussurrou, com um sorriso vazio, o olho vermelho girando lentamente em busca de movimento. — E rápido.

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