Ainda perdidos numa caverna escura, Jasper e o Caçador de Ossos se preparavam para buscar uma saída. Seus corpos destruídos se recuperavam aos poucos, mas já era possível perceber uma clara melhora.

    Primeiro vieram os nervos finos, tremulando no ar como fios vivos, conectando-se em uma rede irregular. Depois, as placas ósseas emergiram do vazio, encaixando-se com estalos, uma a uma, como peças de uma armadura polida e opaca.

    Entre as fendas, o músculo pulsava, inchando e retraindo, até que o braço perdido se refez completamente, não com perfeição, mas com força.

    Um vapor escuro escapava das cicatrizes, e o cheiro ácido do Miasma preenchia o ar.

    — Merda… chega de comer Núcleos avulsos — comentou o Caçador, observando o próprio braço, inteiro, mas um pouco deformado.

    Entre os Bestiais, era comum devorar qualquer Núcleo que encontrassem. Mas, entre os Despertos, isso já não era mais tão seguro.

    O Miasma em Undeads diferentes possui composições próprias, e, se misturado de forma abrupta, pode causar sérios problemas genéticos e de código.

    Do outro lado da caverna, o garoto esperava em silêncio enquanto o mesmo processo acontecia dentro de si — sem mutações, pois havia devorado apenas a carne do Coletor — embora de forma mais lenta e contida.

    Os hematomas que marcavam seu abdômen e braços começaram a se retrair, como se algo os sugasse de dentro.

    Em seguida, o osso voltou ao lugar, forçando o sangue coagulado a escorrer pelos encaixes das placas. Logo depois, os ligamentos se reataram, vibrando como cordas tensionadas.

    A dor era absurda, uma mistura de calor e pressão que o fez ver pontos brancos dançando no escuro. Mas, pouco a pouco, o membro voltou a responder, e o peso do corpo já não parecia um fardo tão grande.

    Sem dizer nada, começou a recolher os pedaços quebrados de sua armadura, juntando-os com algumas partes retiradas dos Coletores e pressionando-os contra a pele.

    Sua concentração era impressionante, como um artesão trabalhando na peça mais delicada de sua vida. Um brilho fugaz azulado foi emitido quando o processo de restauração foi concluído.

    Aquele parecia ser o tom original do elmo curvado da armadura, que se espalhou para as outras partes, até que todas as placas retornaram à cor escurecida, como se algo ainda estivesse faltando.

    — Hum… onde você conseguiu esse elmo? Ele me parece familiar de algum lugar — indagou, tentando se lembrar de onde reconhecia aquele objeto.

    — Eu não lembro. Minha última lembrança é de estar perdido no deserto, e ele sempre esteve comigo desde o início — disse, com a voz mais embargada do que pretendia.

    Sabia que aquilo também carregava algum valor emocional oculto. Mesmo tentando destrinchar a própria mente em busca de explicações, nada parecia concreto o suficiente.

    — Tá, chega de drama existencial. Se ficarmos aqui por muito mais tempo, aqueles Coletores miseráveis vão voltar com reforços — cortou, virando-se para o corpo desacordado de Kaern.

    Ele se aproximou do lobo metálico e, com um estalo grotesco de suas juntas ósseas, agachou-se, apoiando o braço sob o dorso danificado da criatura e colocando-a sobre o ombro.

    — Você… não vai deixar ele para trás? Pensei que não ligasse pra ninguém — perguntou Jasper, com certa surpresa.

    O Caçador virou o rosto com um sorriso torto, agora meio inchado e coberto por veias pulsantes de energia radioativa.

    — Não me entenda mal. Se esse trambolho acordar e me morder, eu arranco os dentes dele com os dedos — bufou, dando uma pausa. — Mas eu costumo manter o que é útil por perto.

    Começou a caminhar em direção à passagem pela qual os Coletores haviam vindo. Passando ao lado do garoto, sem dizer nada, Jasper entendeu a mensagem.

    Ajustou o elmo no rosto, que agora brilhava com um tom levemente azulado sob a luz fraca da caverna, e seguiu.

    O corredor que seguiram era um antigo túnel, escavado com brutalidade cirúrgica. As paredes tinham marcas semicirculares, perfeitamente espaçadas, como se garras monstruosas tivessem raspado a rocha em ritmos compassados.

    À frente, o Caçador de Ossos marchava em silêncio, carregando Kaern no ombro como se ele fosse apenas uma sacola de sucata mal dobrada. Seu olho vermelho iluminava o caminho com um brilho fraco, mas contínuo.

    — Essas marcas… — murmurou Jasper, tocando um dos sulcos profundos na parede com a ponta dos dedos. — Eu sempre me perguntei de onde essas criaturas vinham. Nunca pensei que seria um lugar assim.

    — Não é tão incomum que esse tipo de Bestial viva em abrigos como este. O que me impressiona é que duas espécies distintas estejam tão próximas sem lutarem até a morte.

    Não fazia muito tempo desde que haviam caído no subsolo para que o Caçador já tivesse uma análise tão precisa do ambiente.

    — Como você sabe que os Coletores não lutam contra as Centopeias? — questionou Jasper.

    — Basta olhar pra eles: corpos pequenos, olhos grandes e esses rostos cobertos por máscaras de solda — riu com desdém, balançando a cabeça. — Nenhum traço de carapaça reforçada, nenhuma garra, nada que indique defesa ou predação.

    Mesmo que aquilo fosse engraçado sob a ótica do Desperto, em condições normais a falta de adaptação seria uma sentença de morte para qualquer Undead. Essa era a lei em qualquer Zona Selvagem.

    — Eles evoluíram assim por outro motivo… mas qual seria? — insistiu Jasper.

    O Caçador deu de ombros, despreocupado. Na verdade, ele não dava a mínima para os Undeads do Deserto de Sonata, considerando-os fracos e sem potencial de crescimento.

    — Sei lá, quer que eu entreviste uma centopeia pra descobrir? — disse, fitando o garoto com uma expressão que oscilava entre cansaço e ironia. — Agora chega de perguntas. Cada vez que você abre a boca, tenho medo de desabar de tédio.

    Os dedos de Jasper se fecharam com mais força em torno do cabo da espada. Por um instante, imaginou a lâmina cortando aquele sorriso torto do ciclope ósseo, só para ver se ele continuaria tão calmo depois disso.

    Mas o pensamento se desfez tão rápido quanto veio.

    Suspirou, aliviando parte da tensão dos ombros e desviando o olhar para o caminho adiante, percebendo que estavam se aproximando de outra parte aberta da caverna.

    Continuaram caminhando, e a passagem se abriu gradualmente, revelando uma ampla câmara iluminada por um brilho mortiço que se infiltrava pelas fendas do teto rochoso.

    O ar estava denso, carregado de calor, poeira e um leve cheiro metálico, que parecia vir de outras passagens abertas pelas centopeias gigantes.

    No centro, uma espiral estava escavada no chão, como uma piscina rasa de areia dourada girando lentamente. O movimento hipnótico refletia a luz de maneira sutil, lançando sombras ondulantes que dançavam pelo espaço vazio.

    Pequenos fragmentos de carapaças, e até pedaços de mandíbulas bestiais, estavam espalhados ao redor, como se algo tivesse acontecido ali.

    Aquilo alertou Jasper, que, com seu Sentido do Vento, inspecionava todo o local, atento a qualquer alteração nas correntes de ar. Por outro lado, o Caçador de Ossos continuava calmo, como se toda a situação fosse algo rotineiro.

    De dentro da areia, um som seco ressoou, como rochas se movendo. A espiral afundou levemente. Um dos fragmentos de mandíbula se mexeu sozinho e foi engolido pela areia que girava.

    — É melhor se afastar um pouco. Não é bom ficar por perto quando esse negócio começa a “parir” — alertou o Caçador, percebendo a agitação do Vulto Negro. — Antes que pergunte, esse deve ser o Núcleo Catalisador do Deserto de Sonata. É aqui que todos os códigos dos Undeads mortos se reúnem para renascer.

    Antes que Jasper pudesse reagir, um pulso surdo ecoou sob a espiral, como o batimento cardíaco adormecido.

    A areia começou a se erguer em redemoinhos verticais, sendo repelida para os cantos da câmara por uma força invisível e densa, que fazia o ar vibrar num zumbido profundo e crescente.

    Um segundo pulso fez com que rachaduras vermelhas riscassem o centro da espiral, como se linhas de magma estivessem sendo desenhadas por dentro da rocha. Então, a areia afundou abruptamente, como sugada por um vazio.

    Do abismo surgido, uma estrutura gigantesca começou a se erguer.

    Era um cristal vermelho profundo, do tamanho de uma árvore centenária, com arestas perfeitamente lapidadas e uma superfície translúcida que pulsava como um coração.

    Em seu interior, fluxos de energia negra corriam como veias, e ao redor dele girava uma corrente de símbolos e fragmentos de dados digitais, um anel de circuitos vivos, feitos de luz branca, dourada e esverdeada.

    Sem aviso, o Núcleo brilhou com força, liberando uma explosão silenciosa de energia vermelha que se espalhou em forma de anéis até tocar as paredes da câmara.

    Ao entrar em contato com aquela energia, Jasper cambaleou um passo para trás, levando a mão à cabeça diante de uma tontura repentina. Sua armadura reagiu com um estalo sutil, como se o metal estivesse sendo comprimido por uma força invisível.

    Essa sensação… é tão familiar e revigorante pensou, deixando-se levar por um instante pelo poder que o atingia.

    Quando a luz finalmente se dissipou, pequenos cristais escurecidos começaram a surgir ao redor da espiral, pontiagudos como sementes brotando do solo contaminado.

    As pequenas estruturas tremeram, racharam e se abriram.

    Filhotes de centopeias bestiais emergiram, uma a uma, como larvas feitas de pedra negra e obsidiana viva. Seus corpos eram densos e compactos, e suas carapaças brilhavam com uma camada escura e reluzente.

    Assim que percebeu a nova ameaça, Jasper empunhou sua lâmina, seus instintos aflorados pelo contato com aquela energia estranha. Uma das criaturas reagiu à hostilidade, rasgando o ar com a mandíbula pontiaguda. Ele contra-atacou com um golpe preciso.

    CLANG!

    O som que reverberou foi metálico. O corte que deveria atravessar a criatura mal arranhou sua carapaça. O filhote ricocheteou para o lado, caindo de pé e recuando assustado.

    — Elas… são resistentes demais — sussurrou Jasper, os dedos trêmulos no cabo da arma.

    — É claro que sim. O Núcleo Catalisador não apenas revive os Undeads, como também utiliza as informações coletadas para evoluir alguns espécimes contra aquilo que os eliminou.

    Filhotes Bestiais se organizavam como um enxame disciplinado, ocupando a câmara e girando em torno do Núcleo Catalisador, que continuava sua rotação serena, como o coração sombrio do deserto.

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