Capitulo 15: Forja dos Coletores
O túnel escolhido pelo Caçador de Ossos era quente como o interior de uma fornalha. A cada passo que davam, o ar parecia se tornar mais espesso, abafando a respiração de Jasper sob o elmo curvado.
— Tem certeza de que foi uma boa ideia vir por esse caminho? — indagou Jasper, começando a sentir dificuldade para respirar.
O ciclope ósseo continuou caminhando despreocupado, analisando os rastros de calor deixados nas paredes com seu olho. A princípio, a maioria parecia ser das centopeias gigantes, mas, com o tempo, marcas deixadas pelos coletores tornavam-se cada vez mais frequentes.
— Não, mas estou curioso para descobrir o que mais esse subterrâneo está escondendo. Talvez algum Bestial interessante… — as placas ósseas trepidaram em resposta à empolgação do Caçador.
Jasper ignorou o comentário, a mentalidade distorcida daquele Desperto não o impressionava mais. O que o incomodava era sua perna quebrada. Mesmo que ingerir um Núcleo Mutante não tivesse causado a cura esperada, aos poucos sentia a dor diminuir e tinha menos dificuldade ao andar.
O calor aumentava gradualmente ao longo do caminho, atingindo seu ápice quando ambos chegaram ao final do túnel, onde vapor denso era liberado e sons de batidas incessantes contra metal ecoavam no ar.
Jasper e o Caçador de Ossos se entreolharam por um instante, cada um esperando para ver se o outro recuaria. No fim, os dois estavam decididos e adentraram o novo ambiente sem hesitação, sentindo a onda de calor escaldante se espalhar por seus corpos.
— Kk… kk… kh… heh… hhrrrk… — um coletor ria enquanto moldava uma placa de metal com um martelo sobre uma bigorna.
Outros coletores se reuniam ao redor, observando o processo com atenção. Pareciam conversar entre si, piscando várias vezes de forma coordenada com seus grandes olhos alaranjados e soltando risadinhas baixas, com diferenças mínimas no tom, mas que transmitiam uma mensagem clara.
A câmara onde estavam era colossal.
Vastas passarelas de pedra conectavam diferentes níveis da caverna e, entre elas, rios incandescentes cortavam o chão, borbulhando e cuspindo faíscas a cada minuto. A princípio, o Caçador pensou se tratar de lava, mas, ao reparar melhor no brilho prateado e viscoso, chegou a outra conclusão.
— Isso não é magma… é ferro derretido. — murmurou, o olho vermelho girando enquanto observava.
Jasper chamou a atenção do Desperto, tocando em seu ombro com os olhos fixos em uma direção.
— Ali. Acho que aquela é a saída — disse, apontando para o topo das passarelas, onde, ao final, havia uma passagem iluminada. — O problema é chegar até lá. Há muitos desses Bestiais por aqui… vai ser difícil enfrentar tantos de uma vez.
No centro da sala, os Coletores haviam parado. Todos ao mesmo tempo. Nenhum movimento. Nenhum som. Seus olhos alaranjados pulsavam em sincronia, como lanternas orgânicas de uma máquina viva. Uma centena de pupilas arregaladas fixas na direção deles.
— Tá bom… vamos tentar diplomacia. — disse o Caçador, em tom rouco, dando um passo à frente.
Jasper arregalou os olhos por trás da viseira.
— Você? Diplomático?
— Confia. Eu sou carismático. — respondeu, abrindo os braços como se fosse fazer uma reverência zombeteira.
Os Coletores não reagiram. Apenas continuaram a encará-lo.
Com lentidão, fechou e abriu a pálpebra reforçada de seu olho vermelho. Uma vez. Depois outra. Depois três vezes em rápida sucessão.
— Kk… — Um dos Coletores soltou uma risada abafada. Seus olhos alaranjados piscaram de volta… em outro ritmo.
— Certo. Errado. Vamos tentar de novo. — falou para si mesmo, e começou uma nova sequência, agora piscando em padrões irregulares: curto, curto, longo… pausa… longo, curto, curto.
Mais risadas surgiram.
Dessa vez, vários Coletores piscaram de volta ao mesmo tempo. Pareciam confusos, como se entendessem fragmentos do que o Caçador de Ossos tentava dizer, mas ainda faltava algo.
O ciclope ósseo fechou o olho dolorido, não estava acostumado a piscar com frequência muito menos de forma calculada.
— Isso devia estar funcionando… eles responderam antes. — insistiu o Caçador, girando o ombro em frustração. — Será que perdi o ritmo?
— Eles riem antes, durante… e depois de piscar. Talvez isso faça parte da linguagem — comentou Jasper, após analisar a conversa em silêncio.
— Então… preciso rir?
O Caçador de Ossos inspirou fundo. A garganta raspava, a mandíbula estava fraturada, e metade de seu rosto nem mexia direito, mas ele tentou. Forçou uma gargalhada:
— Kk… hhrrk… khrrkk… Kahh…
As marteladas cessaram. Os olhos alaranjados, que antes pulsavam em padrões ritmados, vivos, apagar-se brevemente por uma fração de segundo e reacenderam com brilho mais forte, como se algo os tivesse ofendido até o núcleo.
Um som estranho começou a se espalhar pela câmara: um estalo ritmado de mandíbula com mandíbula, como dentes quebrando pedra em uníssono. Vieram acompanhados de piscadas rápidas, curtas e violentas. A cadência da comunicação anterior desaparecera. O padrão agora era irregular, frenético. Furioso.
— Acho que você disse algo muito errado. — disse, observando a mudança súbita no comportamento das criaturas.
O Caçador de Ossos estalou o pescoço com um rangido seco, como se não se importasse.
— Bom… ao menos responderam.
Subitamente, os Coletores se moveram de forma errática, largando suas forjas e correndo na direção de mecanismos que haviam criado apenas para diversão, mas que serviam bem naquela situação.
Com um puxar de alavanca, machados gigantes presos ao teto da caverna foram liberados, movendo-se na vertical pelas passarelas de pedra, prontos para cortar tudo que passasse por ali.
O Caçador de Ossos parou diante da armadilha com um suspiro longo e arrastado.
Puta merda… que armadilha clichê da porra. Mas com esse peso extra do Kaern, não dá pra passar correndo, ainda mais estando acabado desse jeito.
— Eu vou primeiro — declarou Jasper, rompendo o silêncio.
O Desperto girou levemente o olho vermelho, avaliando o garoto de cima a baixo com certo desdém.
— Com essa perna? Vai só acelerar a própria morte.
Jasper não respondeu. Apenas apertou o punho da espada com mais força. Cada batida de machado marcava o tempo, como um relógio grotesco. Ele decorou os padrões, alguns desciam com intervalo de três segundos, outros de cinco. Um erro, e seu corpo viraria carne e poeira.
Na primeira borda da passarela, ele esperou, ajustando a posição dos pés. A dor voltou, aguda, como se as fibras da perna esquerda estivessem sendo torcidas de dentro pra fora, mas ele apenas respirou fundo, encarando a alavanca que poderia desligar o mecanismo.
Eles realmente pensaram em tudo… não há espaço suficiente para uma pessoa ficar entre dois machados. Minha única opção é atravessar para o outro lado de uma só vez.
Dentro de sua mente, o mundo se distorceu. Não era apenas escuridão ou calor. Era como estar imerso numa névoa sensorial de vibrações, onde o ar se movia como um organismo pulsante. As correntes ao redor das lâminas podiam ser “lidas”, os redemoinhos que deixavam, os pulsos de vácuo entre um golpe e outro, até mesmo o deslocamento do vapor denso pelo impacto.
Em vez de controlar o ar para desacelerar, como fizera em outra ocasião, Jasper fez o oposto. Concentrou a respiração e empurrou as correntes para trás do corpo, como se criasse um turbilhão invisível de pressão nas suas costas. Era instável, perigoso, mas não falhou.
Seu corpo disparou para frente como um estilhaço, deslizando pela passarela com as lâminas descendo logo atrás. Um machado cravou-se a centímetros de sua cabeça, arrancando faíscas do chão. Ele desviou com um giro curto do corpo. Outro veio, e ele inclinou o torso, deixando que a lâmina passasse acima de seu ombro.
Seu pé direito quase deslizou. A perna esquerda, arrastada atrás, mal tocava o chão. Era como se estivesse voando baixo, impulsionado pelas correntes instáveis que controlava com os instintos e a dor.
O final da passarela estava logo à frente. O cabo da alavanca que desligaria os mecanismos já era visível.
A pressão ao seu redor colapsou de repente. O fluxo de ar que o empurrava se dissipou como vapor quebrado. O controle escorregou de suas mãos, como se seu corpo não aguentasse mais. As pernas falharam. A força o abandonou no último segundo.
Ele se lançou ao chão, caindo de lado e rolando com tudo o que tinha. A dor explodiu na perna ferida no exato momento em que o último machado descia.
A lâmina passou a milímetros de sua cabeça, cortando o chão onde ele teria estado se não tivesse rolado. Lasca de pedra e faíscas o cobriram enquanto o som metálico ecoava por toda a câmara.
Deitado, ofegante, com o elmo rachado pela lateral e o braço tremendo, Jasper estendeu os dedos, e puxou a alavanca.
CLACK.
O barulho das engrenagens cessou. Os machados travaram. O ar ficou quieto.
— Consegui… — sussurrou, cuspindo poeira e sangue.
Pela primeira vez em horas, Jasper sorriu.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.