Capítulo 15: Forja dos Coletores
O túnel escolhido pelo Caçador de Ossos era quente como o interior de uma fornalha. A cada passo, o ar parecia se tornar mais denso, pesando sobre os pulmões e abafando a respiração de Jasper sob o elmo curvado.
— Tem certeza de que foi uma boa ideia vir por esse caminho? — indagou, a voz abafada pelo elmo. — Sinto que vou cozinhar vivo dentro dessa armadura.
O ciclope ósseo seguiu adiante sem demonstrar incômodo, os passos firmes enquanto vasculhava as paredes em busca de rastros térmicos.
No início, a maioria das marcas pertencia às centopeias gigantes. Mas, conforme avançavam, novos traços surgiam, rastros finos, quase simétricos, indícios claros da passagem dos Coletores.
— Não, mas estou curioso para descobrir o que mais esse subterrâneo está escondendo. Talvez algum Bestial interessante… — As placas ósseas trepidaram em resposta à empolgação.
Uma centelha de curiosidade surgiu na mente do garoto; por algum motivo, ele se sentia mais intrigado com a forma de pensar do Caçador.
— Você… gosta de matar? — perguntou, sem realmente planejar as palavras.
— Pra cacete. É uma das únicas coisas na vida que realmente me empolgam, além de devorar uma boa presa e dormir. — respondeu sem hesitar, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
A expressão naturalmente inexpressiva de Jasper tornou-se ainda mais apática.
É claro que eu não entenderia esse monstro.
Sinceramente, ele se considerou estúpido por ter imaginado algo mais complexo, talvez porque não visse o ato de ceifar uma vida como algo prazeroso, mas apenas como uma obrigação para sobreviver.
Um clima silencioso tomou conta da caminhada. Era diferente do silêncio habitual, imposto pela personalidade fechada de Jasper. Aquilo foi suficiente para que o Caçador decidisse quebrar a tensão, mesmo contra sua vontade.
— O que foi? Você realmente pensou que eu falaria algo bonitinho? — provocou, do jeito que sabia que irritaria o jovem, terminando com um suspiro antes de se explicar de fato. — Eu gosto de matar, mas não sou um psicopata que sai descontando meu vazio existencial em qualquer um.
Jasper continuou andando sem diminuir o passo, mas o Caçador sabia que já tinha capturado sua atenção novamente.
— Como eu já disse antes, esse é meu hobby: caçar bestiais divertidos de se enfrentar. Gosto da sensação de superá-los com inteligência; é bastante satisfatório.
Fez uma pausa, observando o túnel à frente.
— Mas não diria que a morte de uma presa seja a melhor parte. A jornada até encontrá-la e o estudo do seu comportamento ajudam a manter minha mente no lugar. Infelizmente, quando você se torna um Desperto, surge a necessidade de um propósito além da sobrevivência.
— Huh… — murmurou Jasper. — Confesso que, no final das contas… você realmente disse algo relativamente profundo.
Antes que pudessem se aprofundar mais no assunto, o calor aumentou, atingindo seu ápice quando ambos chegaram ao final do túnel. Lá, vapor denso se erguia e sons de batidas incessantes contra o metal ecoavam pelo ar.
Jasper ajustou o elmo na cabeça, num gesto de preparação habitual, enquanto o Caçador reposicionava Kaern para aliviar a pressão sobre o ombro.
No fim, adentraram o novo ambiente sem hesitação, sentindo a onda escaldante se espalhar por seus corpos.
— Kk… kk… kh… heh… hhrrrk… — um Coletor ria, martelando uma placa de metal sobre uma bigorna.
Outros Coletores se reuniam ao redor, observando o processo com atenção. Pareciam conversar entre si, piscando várias vezes de forma coordenada com seus grandes olhos alaranjados e soltando risadinhas baixas. As diferenças mínimas no tom transmitiam uma mensagem clara.
A câmara em que estavam era colossal.
Vastas passarelas de pedra conectavam diferentes níveis da caverna, e entre elas rios incandescentes cortavam o chão, borbulhando e cuspindo faíscas a cada instante.
A princípio, o Caçador pensou se tratar de lava, mas, ao reparar melhor no brilho prateado e viscoso, chegou a outra conclusão.
— Tá legal, agora essas anões se superaram! Essa merda nem é magma, é ferro derretido. — Riu de forma exagerada ao ver aquilo. — Onde diabos vocês arrumaram isso, seus pestinhas? Hahaha…
Jasper chamou a atenção do Desperto, tocando em seu ombro e mantendo os olhos fixos em uma direção.
— Ali. Acho que aquela é a saída — disse, apontando para o topo das passarelas, onde, ao final, havia uma passagem iluminada. — O problema é chegar até lá. Há muitos desses Bestiais por aqui; vai ser difícil enfrentar tantos de uma vez.
No centro da sala, os Coletores haviam parado, todos ao mesmo tempo. Nenhum movimento. Nenhum som. Seus olhos alaranjados pulsavam em perfeita sincronia, uma centena de pupilas arregaladas fixas na direção deles.
— Tá bom… vamos tentar diplomacia. — tossiu o Caçador, a voz rouca ecoando entre as passarelas enquanto dava um passo à frente.
Jasper arregalou os olhos por trás da viseira.
— Você? Diplomático?
— Confia. Eu sou carismático. — afirmou, abrindo os braços como se fosse fazer uma reverência.
Os Coletores não reagiram. Apenas continuaram a encará-lo.
Com lentidão, o Desperto fechou e abriu a pálpebra reforçada de seu olho vermelho. Uma vez. Depois outra. Depois três vezes em rápida sucessão.
— Kk… — Um dos Coletores soltou uma risada abafada, piscando de volta, em outro ritmo
— Certo. Errado. Vamos tentar de novo. — murmurou para si mesmo, iniciando uma nova sequência de piscadas, curto, curto, longo… pausa… longo, curto, curto.
Mais risadas ecoaram.
Dessa vez, vários Coletores responderam ao mesmo tempo, piscando em padrões desordenados. Pareciam confusos, como se entendessem fragmentos do que ele tentava dizer, mas ainda faltasse algo.
O ciclope ósseo fechou o olho dolorido; não estava acostumado a piscar com frequência, muito menos de forma calculada.
— Puta merda… isso é mais difícil do que eu pensei. — resmungou, massageando a pálpebra. — Tenho quase certeza de que fiz tudo certo.
Jasper franziu a testa, confuso.
— Você aguenta ser partido ao meio, mas reclama porque cansou o olho? Qual a lógica disso?
A resposta demorou um pouco mais, até que o Caçador abrisse o olho novamente.
— Pra sua informação, essa belezinha aqui é feita pra caçadas longas, daquelas em que fico encarando a presa por horas até achar o momento perfeito pra agir. Eu devo piscar, sei lá… umas duas vezes por dia.
Que cara bizarro… pensou Jasper, suspirando, aborrecido.
Só de olhar para aqueles olhos esbugalhados, lembrava-se do que havia acontecido antes, e a raiva voltava a arder, silenciosa, dentro de seu peito.
— Eles riem antes, durante… e depois de piscar. Talvez isso faça parte da linguagem — comentou Jasper, após analisar a conversa em silêncio.
— Então… preciso rir?
O Caçador de Ossos inspirou fundo. A garganta raspava, a mandíbula ainda fraturada, e metade do rosto mal se movia. Mesmo assim, tentou. Forçou uma gargalhada:
— Kk… hhrrk… khrrkk… Kahh…
As marteladas cessaram.
Os olhos alaranjados, antes pulsando em padrões ritmados e vivos, apagaram-se por uma fração de segundo, e então reacenderam com brilho mais intenso, como se algo os tivesse ofendido até o núcleo
Um som estranho começou a se espalhar pela câmara: o estalar ritmado de mandíbula contra mandíbula, como dentes triturando pedra em uníssono. Logo vieram as piscadas, rápidas, curtas, violentas.
A cadência da comunicação anterior havia sumido.O padrão agora era irregular. Frenético. Furioso.
— E lá se foi a diplomacia… — murmurou Jasper, sacando a espada num movimento rápido e preciso.
O Caçador de Ossos estalou o pescoço com um rangido, sem demonstrar o menor sinal de preocupação.
— Bom, ao menos responderam. A culpa não é minha se a forma de comunicação deles é ridiculamente estúpida.
Subitamente, os Bestiais largaram suas forjas e correram em direção aos mecanismos que haviam construído apenas por diversão, engenhocas cruéis que, naquela situação, serviriam perfeitamente.
Com o puxar de uma alavanca, enormes machados presos ao teto da caverna foram liberados. As lâminas desceram em movimentos verticais pelas passarelas de pedra, cortando o ar com um zunido ensurdecedor, prontas para despedaçar tudo o que se atrevesse a passar por ali.
— Que armadilha clichê… mas, carregando toda essa tralha, não vai dar certo, ainda mais estando quebrado desse jeito. — Moveu-se lentamente em direção ao rio de ferro, como se estivesse prestes a “descartar o peso extra”.
— Eu vou primeiro — declarou Jasper, cansado das idiotices do Caçador. Não duvidava que ele realmente fosse capaz de jogar Kaern fora.
O Desperto apenas deu de ombros, abrindo espaço para o garoto.
Jasper se aproximou um passo atrás da armadilha, observando com atenção o movimento das correntes e o ritmo dos machados antes de agir.
Não há espaço suficiente para uma pessoa ficar entre dois machados. Minha única opção é atravessar para o outro lado de uma só vez.
Alguns dias atrás, isso seria impossível para Jasper, mas agora, após incontáveis experiências entre a vida e a morte, ele havia aprendido muita coisa.
Da vez em que saltou do penhasco, completamente desgovernado, precisou manipular o ar ao seu redor para se sustentar com o auxílio de uma única asa, e, além disso, empurrar o vento abaixo de si para desacelerar a queda.
Agora, imaginava que, se aplicasse o mesmo princípio de forma um pouco diferente, em vez de perder velocidade, conseguiria acelerar de maneira explosiva, impulsionando-se para frente de uma só vez.
Cada batida de machado marcava o tempo, como um relógio. Ele decorou os padrões, alguns desciam em intervalos de três segundos, outros de cinco. Um erro, e seu corpo seria dilacerado.
Fechando os olhos, o mundo se distorceu dentro de sua mente. Não era apenas escuridão ou calor, era como estar imerso em uma névoa sensorial de vibrações, onde o ar se movia como um organismo pulsante.
As correntes ao redor das lâminas podiam ser “lidas”: os redemoinhos que deixavam, os pulsos de vácuo entre um golpe e outro, até mesmo o deslocamento do vapor denso provocado pelo impacto.
Jasper concentrou a respiração e empurrou o vento para trás do corpo, criando um turbilhão invisível de pressão em suas costas. Era instável, perigoso, mas funcionou.
Seu corpo disparou para a frente como um vulto, deslizando pela passarela enquanto os machados caíam logo atrás.
Um deles passou a centímetros de sua cabeça, arrancando faíscas do chão. Jasper girou o corpo, desviando por instinto. Outro veio logo em seguida, e ele inclinou o torso, sentindo a lâmina rasgar o ar acima do ombro.
O final da passarela já estava à vista, foi nesse momento que a pressão ao seu redor colapsou de repente. O fluxo de ar que o impulsionava se dissipou antes que pudesse reagir.
Havia se superestimado.
Manter aquele nível de controle de forma constante era muito mais complexo do que imaginava, exigia um esforço brutal de seus músculos para manter os pés firmes no chão e não ser lançado sem direção.
Jasper se atirou ao solo, rolando com tudo o que tinha, antecipando o pior. O último machado desceu a milímetros de suas pernas, soltando um rangido metálico que reverberou por toda a caverna.Inspirou fundo.
O ar, fumegante e metálico, queimava a garganta.
Soltando um gemido baixo, apoiou a mão no chão e se levantou. Poeira e fragmentos de pedra deslizaram de seus ombros enquanto se endireitava.
Daria um fim àquela brincadeira estúpida dos Coletores, mesmo que precisasse abrir caminho entre corpos dilacerados pela sua espada.

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