Capítulo 16: Vigia etéreo
Um dos Coletores se adiantou, o riso metálico ecoando como o roçar de pregos sobre chapa de ferro. Sua mandíbula se abria e fechava rápido demais, produzindo um som rítmico — krk-krk-krk-krk.
Com o martelo erguido acima da cabeça, saltou sobre Jasper, o brilho alaranjado dos olhos refletindo na lâmina ainda embainhada do garoto.
— HHRRKKR-HA! — gargalhou, descendo o golpe.
O impacto fez o chão estremecer, derrubando pedaços inteiros de rochas no rio de ferro derretido. Por um instante, o Coletor acreditou ter esmagado o inimigo. Mas não havia sangue. Nem carne. Nem grito.
Ergueu o rosto, confuso. Os olhos giraram freneticamente em busca do alvo desaparecido. Foi então que o som chegou, passos leves, firmes, ecoando atrás dele.
Virou-se rápido demais, e o mundo pareceu atrasar por um instante. O corpo ainda reagia, mas já era tarde.
O corte foi tão limpo que o riso continuou por um breve instante, mesmo quando a metade superior da criatura começou a deslizar, separando-se da inferior, junto do Núcleo perfeitamente dividido.
Jasper estava atrás dele, a espada ainda baixa, sem uma gota de sangue manchando o fio.
— Não há graça nenhuma nisso — murmurou, enquanto os restos caíam em duas partes e o riso se apagava.
Sem querer perder tempo, Jasper lançou um Corte da Ventania. O ar se rasgou em um único movimento, emitindo um assobio agudo e crescente, o grito de um pássaro faminto.
Os pequenos risonhos se abaixaram às pressas, desajeitados, enquanto o golpe cruzava a câmara em linha reta, fatiando bigornas e abrindo uma fratura na parede rochosa.
Aproveitando o momento, Jasper deslizou como uma sombra até a alavanca. Um puxão firme desativou o mecanismo que mantinha os machados girando sobre a passarela, e o som metálico cessou.
Do outro lado, o Caçador atravessou o caminho com tranquilidade, carregando Kaern sobre os ombros, enquanto o filhote de centopeia permanecia preso ao seu antebraço.
A criatura parecia adormecida, como se toda a hostilidade de antes tivesse simplesmente desaparecido.
— Bela manobra, Vulto Negro. Esses carinhas são bem mais espertos do que eu pensava. Talvez eu devesse melhorar meu Coletorês da próxima vez — zombou com um sorriso torto, alheio a toda a destruição ao redor.
De repente, os Coletores correram em massa pelas passarelas, alguns até escalando as paredes da câmara com agilidade instintiva, deixando para trás suas forjas. Jasper e o Caçador, por sua vez, não se surpreenderam com a atitude.
Novas armadilhas foram ativadas. Eles pareciam entretidos com a situação; afinal, de que adianta construir tantas engenhocas se não podem vê-las em funcionamento?
Infelizmente, Jasper não compartilhava da mesma empolgação. Já estava farto de lutar apenas para continuar vivo, e aqueles Bestiais pareciam tentar eliminá-lo unicamente por diversão.
— Eu podia ter morrido naquela passarela, e agora eles estão rindo? De novo? — As mãos se cerraram com força em torno do cabo da lâmina.
— Seria engraçado — disse o Caçador, gargalhando só de imaginar. — Você, todo sério, sendo fatiado em pedacinhos por aqueles machados depois de bancar o fodão.
Jasper virou o rosto devagar, o olhar escurecendo, prestes a explodir.
Os Coletores que haviam escalado as paredes da caverna montaram em bestas inteiramente feitas de metal, equipadas com suportes que garantiam movimentação ágil e mira precisa.
Com flechas já engatilhadas, o primeiro alvo era o Vulto Negro, a maior ameaça no momento.
Péssima escolha. Jasper estava irritado, mas não a ponto de perder a concentração no seu Sentido do Vento. Mesmo de costas, percebeu a flecha se aproximando, mirava com precisão direta ao seu crânio.
Moveu-se um passo para o lado, deixando a flecha seguir sem empecilhos, agora rumando direto para o Desperto. O Caçador apenas ergueu o braço esquerdo, onde o filhote de centopeia se agarrava como uma pulseira viva.
O projétil se chocou contra a carapaça do pequeno Bestial e ricocheteou, desviando em ângulo, como se tivesse atingido uma parede. A criatura se contorceu brevemente, soltando um chiado baixo, mas manteve-se firme, presa ao braço do Caçador.
— Hah, boa garotinha. — O Caçador deu um leve tapinha no filhote, que respondeu com um clique abafado das mandíbulas.
— Você usou ela como escudo.
— Um escudo resistente e… voluntário. — respondeu, cutucando o pequeno corpo preso com um dedo. — Mais útil do que muito adulto que já arrastei por aí.
A tempestade de flechas continuava caindo sobre os dois. Jasper, guiado por seu Sentido do Vento, se esquivava com precisão quase preguiçosa, desviando de cada disparo como se já soubesse onde cairiam.
Já o Caçador abusava dos próprios instintos e do improviso para aparar os projéteis, fosse com a centopeia ou usando o corpo de Kaern como barreira.
Sentindo-se cada vez mais encurralado, o garoto efetuou um giro rápido com a lâmina, lançando outro Corte da Ventania preciso contra um dos inimigos.
O golpe rasgou o peitoral da criatura, que caiu da máquina que controlava direto no rio de ferro derretido, desaparecendo com um riso fraco.
Aproveitando que a cadência do ataque diminuía, o Caçador depositou Kaern cuidadosamente no chão, encostando-o em uma das colunas de pedra corroídas pelo tempo.
Ergueu o braço direito, e o estalido das placas ósseas se intensificou. Como se respondessem a uma ordem, os fragmentos que envolviam seu antebraço começaram a se mover, rasgando a pele por baixo.
As placas se soltaram em camadas, deslizando e girando umas sobre as outras até assumirem uma nova configuração: um bumerangue curvado, repleto de pontas irregulares e serrilhadas nas extremidades.
Lançou o objeto com força brutal na direção dos Bestiais. Seus pés raspavam o chão, levantando um redemoinho de poeira durante o movimento.
Um por um, os Coletores foram derrubados das bestas, encontrando o mesmo destino do primeiro: submergiram no rio de ferro derretido.
Enquanto isso, os que permaneciam nas passarelas elevadas riam da cena, como se tudo fosse apenas um jogo.
O rugido das engrenagens começou baixo, um rangido abafado que ecoava pelas paredes. O túnel por onde haviam vindo fora selado por um portão maciço de ferro.
— Acho que já está na hora de dar o fora desse jogo idiota. — As correntes de ar ao redor se agitaram, moldadas por Jasper para mais uma arrancada veloz. — Vou abrir o caminho para vocês mais uma vez.
— Tem razão, mas foi um belo passeio, não acha? — comentou o Caçador, expelindo grande parte das armas de ossos cravadas em seu corpo para reduzir o peso.
— Cala a boca e começa a correr.
As criaturas nas passarelas superiores giravam alavancas presas a grandes válvulas circulares. Um dos Coletores ergueu o braço em um gesto cerimonial, rindo alto antes de acionar o mecanismo final com um estalo triunfante.
As primeiras comportas se abriram, cuspindo rios de ferro derretido pelas rachaduras nas paredes da câmara inferior.
As primeiras comportas se abriram, cuspindo rios de ferro derretido pelas rachaduras nas paredes da câmara inferior. A substância escaldante avançava com velocidade monstruosa, iluminando tudo com um brilho avermelhado, como se o inferno tivesse sido despejado de um balde.
As primeiras comportas se abriram, cuspindo rios de ferro derretido pelas rachaduras nas paredes da câmara inferior.
A substância escaldante avançava com velocidade monstruosa, iluminando tudo com um brilho avermelhado, como se o próprio inferno tivesse sido despejado de um balde.
O calor era insuportável, fazendo o ar literalmente evaporar ao redor.
As estruturas balançavam e estalavam sobre si mesmas, derretendo aos poucos. O ferro incandescente subia como uma maré envenenada, engolindo escadas e pilares num único gole.
Um clarão esbranquiçado atravessava os caminhos de pedra feito um redemoinho fantasma: era Jasper, finalizando cada oponente em segundos.
Logo atrás, o Caçador corria. Não era o melhor exemplo de agilidade, por conta do excesso de armas e da própria couraça de ossos, mas, ao se livrar desses empecilhos, superava em muito Undeads comuns.
Em contrapartida, os Coletores não demonstravam nenhum desespero para fugir daquele poço fumegante.
Na verdade, pareciam se divertir, nadando pelo ferro derretido como se fosse água morna. Após tanto tempo trabalhando nas forjas, o número absurdo de mortes causadas pelo calor extremo levou o Núcleo Catalisador a adaptá-los.
Uma névoa espectral invadiu a câmara pela única saída disponível, interrompendo bruscamente o momento de diversão.
Os Undeads piscaram em perfeita sincronia. Era um chamado. Mas não apenas isso: aquilo carregava uma mensagem. Um comando silencioso, transmitido à distância.
O chão atrás dos dois fugitivos cedia, incapaz de suportar as torrentes de metal líquido que se espalhavam como um dilúvio.
À frente, a passagem para fora da caverna brilhava como um ponto de luz viva. Jasper sentiu a esperança acender; seria fácil alcançar a saída. Porém, no instante em que essa visão surgiu em sua mente, suas pernas fraquejaram.
Mas o quê!? pensou, desabando no solo instável.
Aquela sensação de fraqueza e tontura era a mesma que sentia quando exagerava no uso de sua manipulação de vento, o que praticamente resumia tudo o que tinha feito até então.
Sem olhar para trás, o Caçador continuou avançando como uma muralha, passando ao lado de Jasper e ignorando-o completamente, cada passo espalhando pequenas faíscas do metal derretido.
Totalmente esgotado, o menino deixou o corpo ceder. Apoiou a cabeça no chão, a viseira raspando contra a pedra quente, e fechou os olhos.
O mundo girava à sua volta, e tudo parecia irrelevante.
Eu realmente quero descansar… só um pouco.
Tudo o que queria era desistir. O pensamento percorreu sua mente como uma onda gelada, mas, antes que pudesse se entregar totalmente, algo instintivo o impulsionou.
Esticou um braço. Depois o outro. As pernas, pesadas como chumbo, seguiram, arrastando-se.
Era um movimento lento, desajeitado, sustentado apenas por uma determinação silenciosa, moldada por muitas experiências como aquela.
Rachaduras se alastraram pela plataforma em todas as direções, e Jasper mal teve tempo de erguer o olhar antes que o chão cedesse por completo.
A pedra se desfez em blocos e poeira, tragada pela maré de ferro derretido lá embaixo. Ele despencou junto, o corpo girando no ar, em direção à morte certa.
Mas algo o puxou de volta.
Um impacto brutal o arrancou da queda, o ombro quase deslocando quando uma mão firme o agarrou pelo braço. O Caçador de Ossos o segurava.
Os músculos estavam tensionados ao extremo, os dentes cerrados, enquanto a outra mão se prendia a uma haste de metal torta, cravada na parede.
— Você é ótimo em arrumar formas novas de quase morrer. Sorte a sua que eu sou ótimo em encontrar maneiras de escapar da morte. — O rangido alto do ferro se dobrando lentamente sob o peso dos dois interrompeu o Caçador. — Esqueça, estamos fodidos. Pelo menos deixei Kaern lá fora, talvez eu ache ele de novo na próxima vida. Hahaha
Ambos estavam suspensos, com o abismo flamejante crescendo sob eles. Do vapor denso, olhos alaranjados começaram a brilhar, dezenas deles, como brasas flutuando na penumbra.
Coletores surgiram em silêncio, deslizando pelas paredes e pelas plataformas destruídas, seus corpos deformes pingando gotas de ferro incandescente.
Três se penduraram como aranhas, avançando em direção a Jasper. Outros quatro desceram pelas colunas retorcidas para alcançar o Caçador.
Garras afiadas rasgaram o metal e abriram apoios improvisados. Um deles se enfiou entre os dois, formando uma espécie de ponte viva.
Jasper foi puxado por braços finos e duros, envolto num abraço de ferro. O Caçador, relutante, foi erguido aos trancos, soltando blasfêmias em meio à surpresa.
Quando finalmente alcançaram o topo, os Coletores os arrastaram para fora da caverna e selaram a entrada atrás deles. Logo, os mecanismos de drenagem começaram a esvaziar a câmara, o rugido do metal derretido sendo substituído pelo som ritmado das válvulas.
No fim, todos riram, um coro dissonante de vozes, satisfeitos com a diversão que haviam arrancado dos intrusos.
Que loucura… pensou Jasper, antes de deixar as pálpebras pesarem e o mundo desaparecer num descanso profundo.
Enquanto isso, algo tomava forma na névoa: um vulto solitário, de contornos turvos, erguia-se a certa distância. Mesmo sem corpo definido, seus olhos âmbar brilhavam na penumbra, fixos no garoto adormecido.
Por um breve instante, o subsolo parou, e então uma brisa invisível varreu a névoa, levando a figura etérea na direção de uma imensa pirâmide tecnológica que se erguia ao longe.

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