Levantando-se ofegante, com a perna esquerda ainda latejando, Jasper encarou os Coletores, tomado pela confusão. Imaginara que, assim que atravessasse a passarela, todos partiriam para atacá-lo, por isso estava contando com o Caçador de Ossos. No entanto, toda a preocupação pareceu ter sido em vão.

    Por outro lado, o Caçador caminhava tranquilamente, carregando Kaern nos ombros, enquanto o filhote de centopeia permanecia preso ao seu antebraço. A criatura parecia estar dormindo, como se tivesse perdido toda a hostilidade de antes.

    — Bela manobra, Vulto Negro. Esses carinhas são bem mais difíceis de lidar do que eu pensava… talvez eu devesse melhorar meu Coletorês. — zombou, sorrindo torto, mesmo com as placas ósseas do rosto recém-regeneradas.

    De repente, os Coletores correram em massa pelas passarelas, alguns até escalando as paredes da câmara com agilidade instintiva, deixando para trás suas forjas, e também Jasper e o Caçador de Ossos, que se viam intrigados com tal comportamento.

    Novas armadilhas foram ativadas. Eles pareciam entretidos com a situação, afinal, de que adianta construir tantas engenhocas se não podem vê-las em funcionamento?

    Jasper sentiu os nervos à flor da pele, a raiva subindo à cabeça sem contenção. Já estava farto de lutar apenas para continuar vivo, e aqueles Bestiais estavam tentando eliminá-lo unicamente por diversão.

    — Eles acham que isso é engraçado… — murmurou com ódio. — Eu podia ter morrido naquela passarela, e agora eles tão rindo? De novo?

    — Ah, qual é… você precisa aprender a apreciar o momento, garoto.

    Jasper virou o rosto devagar, prestes a explodir.

    — Apreciar?—

    Claro — continuou o Caçador, aquecendo as juntas que estalavam de forma grotesca. — Quantas vezes na vida você vai ter o privilégio de ser a estrela de um espetáculo subterrâneo com armadilhas letais, coletores lunáticos e um público que realmente valoriza o entretenimento?

    Os Coletores que escalaram as paredes da caverna montaram em bestas feitas inteiramente de metal, equipadas com suportes que permitiam boa movimentação e mira precisa. Com flechas prontas para serem disparadas, o primeiro alvo seria o Vulto Negro.

    Jasper estava irritado, mas não o suficiente para perder a concentração no seu Sentido do Vento. Mesmo de costas, notou quase de imediato a aproximação da flecha, precisamente mirada para atingir seu crânio. Ele poderia tê-la agarrado ou destruído, mas preferiu apenas se mover um pouco para o lado, deixando que ela seguisse direto na direção do Caçador de Ossos.

    O Desperto apenas levantou o braço esquerdo, o mesmo onde o filhote de centopeia ainda estava cravado como uma pulseira viva.

    O projétil se chocou diretamente contra a carapaça do filhote com um som abafado. A flecha se partiu em duas, ricocheteando para o lado como se tivesse batido numa parede. O filhote se contorceu ligeiramente, mas não soltou o braço do Caçador.

    — Hah… boa garotinha — murmurou, erguendo a criatura ligeiramente para observá-la mais de perto.

    — Você usou um filhote como escudo.

    — Um escudo resistente e… voluntário. — cutucou o pequeno corpo preso com um dedo. — Olha aí, ainda firme. Mais útil do que muito adulto que já arrastei por aí.

    A tempestade de flechas continuava caindo sobre os dois. Jasper, usando sua percepção especial, se esquivava com dificuldade mínima, enquanto o Caçador abusava dos próprios instintos e do improviso para aparar os projéteis, fosse com a centopeia filhote ou usando o corpo de Kaern como barreira.

    Sentindo-se cada vez mais encurralado, o Vulto Negro efetuou um giro rápido com sua lâmina de ossos, disparando um corte de vento preciso na direção de um dos Coletores. O golpe rasgou o peitoral da criatura, que caiu da máquina que controlava direto no rio de ferro derretido, sumindo com um riso fraco.

    O Caçador de Ossos lançou um olhar breve para Karen desacordado em seu ombro e, com um suspiro seco, o depositou cuidadosamente no chão, encostando-o numa das colunas de pedra corroídas pelo tempo.

    Ergueu o braço direito, e o estalido das placas ósseas se intensificou. Como se atendessem a uma ordem, os fragmentos que envolviam seu antebraço começaram a se mover, rasgando a pele regenerada por baixo.

    As placas se soltavam em camadas, deslizando e girando umas sobre as outras até assumirem uma nova configuração: um bumerangue curvado, repleto de pontas irregulares e serrilhadas nas extremidades.

    Com um impulso, lançou o bumerangue com força brutal na direção dos mecânicos bestiais. Seus pés rasparam contra o chão em meio a um redemoinho de poeira e fragmentos de pedra.

    Um por um, os Coletores foram derrubados das bestas, tendo o mesmo destino do primeiro: submergiram no rio de ferro derretido. Enquanto isso, os que permaneciam nas passarelas elevadas riam da cena, como se tudo fizesse parte de um jogo.

    O rugido das engrenagens começou baixo, um rangido abafado que ecoava pelas paredes. O túnel por onde Jasper e o Caçador haviam vindo foi selado por um portão maciço de ferro, integrado pelos próprios Coletores.

    — Acho que já está na hora de dar o fora desse jogo idiota. — As correntes de ar ao redor começaram a se agitar, moldadas por Jasper para mais uma arrancada veloz.

    — Tem razão… Mas foi um belo passeio, não acha? — murmurou o Caçador, aliviando a pressão sobre seus músculos vermelhos enquanto expelia grande parte das armas de osso cravadas em seu corpo, almejando reduzir o peso.

    — Cala a boca e começa a correr.As criaturas nas passarelas superiores giravam alavancas presas a grandes válvulas circulares. O som do metal se distorcendo encheu o ar com um eco gutural e úmido. Um dos Coletores ergueu o braço num gesto cerimonial, rindo alto antes de puxar o mecanismo final com um estalo triunfante.

    As primeiras comportas se abriram, cuspindo rios de ferro derretido pelas rachaduras nas paredes da câmara inferior. A substância escaldante avançava com velocidade monstruosa, iluminando tudo com um brilho avermelhado, como se o inferno tivesse sido despejado de um balde.

    O calor era insuportável, fazendo o ar tremer ao redor. As estruturas balançavam e estalavam sob os próprios pés, derretendo aos poucos. O ferro incandescente subia como maré envenenada, engolindo escadas, pilares num gole só

    Jasper disparou, atravessando as passarelas em segundos, como um vulto carregado pelo vento. Logo atrás, o Caçador corria, ele não era o melhor exemplo de agilidade, por conta do excesso de armas e da sua própria couraça de ossos, mas ao se livrar desses empecilhos superava em muito Undeads comuns.

    Em contrapartida, os Coletores não demonstravam nenhum desespero para fugir daquele poço escaldante. Na verdade, pareciam se divertir, nadando pelo ferro derretido como se fosse água morna. Após tanto tempo trabalhando nas forjas, o número absurdo de mortes causadas pelo calor extremo levou o Núcleo Catalisador a adaptá-los, agora, suportavam temperaturas absurdamente elevadas com naturalidade monstruosa.

    Uma névoa espectral invadiu a câmara pela única saída disponível, interrompendo bruscamente o momento de diversão. Os mecânicos Undeads piscaram em perfeita sincronia — um chamado. Mas não era apenas isso. Aquela névoa carregava uma mensagem. Um comando silencioso, transmitido à distância por seu líder.

    O chão atrás dos dois cedia, incapaz de suportar as torrentes de metal líquido que se espalhavam como um dilúvio escaldante. À frente, a passagem para fora da caverna brilhava como um ponto de luz viva. Jasper sentiu a esperança acender, seria fácil alcançar a saída… se sua perna não estivesse em frangalhos, destruída por múltiplas lesões.

    O Caçador parecia despreocupado. Naquele mundo, a morte não era o fim — ao menos não para os Undeads. Sua “alma” seria absorvida por algum Núcleo Catalisador, e um novo ser nasceria com base no antigo. Mesmo sem suas memórias, sua essência ainda estaria lá.

    Sem perder tempo, lançou o corpo desacordado de Kaern em direção à saída, libertando-o da morte iminente. Com a mão agora livre, puxou a centopeia filhote presa ao seu antebraço, o gesto destruiu sua própria carne, mas salvou a criatura, assim como havia feito antes.

    Jasper sentiu a plataforma embaixo de seus pés se despedaçar. O calor era sufocante, o som do ferro fervendo abaixo soava como rugidos de uma besta faminta. Saltou tarde demais. O metal derretido subia como uma maré viva.

    Num impulso desesperado, Jasper se agarrou a uma haste torta que se projetava da parede, os dedos escorregando. O Caçador não teve mais sorte, pendia do outro lado, com apenas uma lâmina fincada na estrutura para não cair.

    Ambos estavam suspensos, com o abismo flamejante crescendo entre eles.

    A fumaça cinzenta começava a envolver tudo. O calor se infiltrava por suas armaduras, queimava seus pulmões, fazia os olhos lacrimejarem. Não havia para onde ir.

    — Fomos… longe demais pra morrer aqui — rosnou Jasper, os dentes trincando.

    A fumaça à frente se retorceu… como se a própria neblina estivesse respirando.

    Do vapor denso, olhos alaranjados começaram a brilhar, dezenas deles, como brasas flutuando. Os Coletores surgiram em silêncio, deslizando pelas paredes e plataformas destruídas, seus corpos deformes pingando gotas de ferrugem viva.

    Jasper arregalou os olhos.

    — O que…?

    Eles não riram. Não piscaram em deboche. Nenhum som. Apenas obediência.

    A névoa à sua volta pulsou uma vez, um sopro espectral carregado de comando.

    Rápidos, precisos, organizados como se guiados por uma mente única. Três se penduraram como aranhas para alcançar Jasper, outros quatro desceram pelas colunas para alcançar o Caçador. Garras afiadas rasgaram metal e criaram apoios improvisados. Um deles se enfiou entre os dois como uma ponte viva.

    Jasper foi puxado por braços finos e duros, envolto num abraço de ferro e calor. O Caçador, relutante, foi erguido aos trancos, cuspindo blasfêmias em meio à surpresa.

    Após carregarem os dois para fora, os Coletores selaram a caverna, acionando mecanismos de drenagem que logo começaram a secar a câmara. No fim, todos riram da situação, satisfeitos com a diversão

    Jasper tentou se levantar, cambaleante. Foi então que viu uma figura em meio à névoa: um vulto solitário de contornos turvos, parado a certa distância. Mesmo sem forma definida, pôde notar os olhos âmbar que o encaravam em silêncio, até que uma brisa invisível levou a presença etérea na direção de uma imensa pirâmide tecnológica.

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