Capítulo 17: Engenheiro da Ruína
Acima do subsolo do Deserto de Sonata, após o ataque do Ceifador, a Dama da Ruína foi forçada a realizar um pouso de emergência, tombando de lado na areia com um estrondo horrendo de metal e carne se partindo.
No interior da embarcação, o comandante Zath caminhava pelos corredores destruídos, apoiando-se em Mirage para se manter de pé. O corte em seu peito ainda queimava, exalando uma névoa espectral esverdeada.
— Aquele cara… atravessou minha pele com apenas um corte de energia. Mesmo que eu não seja do tipo combatente, é impressionante… — o olho central de Zath lacrimejava de dor por causa do ferimento.
— Pois é, ele amassou nós dois sem pena, igual purê! E olha que eu sou flexível!
Mirage pressionava o ponto exato da ferida de Zath, canalizando sua energia diretamente para o Núcleo Mutante do companheiro, acelerando o processo de cura.
Para evitar que a composição energética de seu Miasma entrasse em conflito interno com a do comandante, ela fragmentou as partículas de radiação em porções menores, removendo os traços que compunham sua biologia e deixando apenas energia pura para ser utilizada.
O processo realizado por Mirage era incomum, não apenas pelo risco envolvido, mas também por seu significado.
Entre os Undeads, cujas existências eram moldadas pela guerra, sobrevivência e adaptação, esse tipo de vínculo era raríssimo.
O toque de uma energia estrangeira podia causar rupturas internas, perda de identidade ou até a desintegração do Núcleo, e, por isso, poucos ousavam tentar.
Em uma sociedade regida pela violência e pela desconfiança, partilhar energia significava abrir mão das próprias defesas, um gesto de confiança que quase ninguém estava disposto a oferecer.
Zath não pôde evitar sentir-se um pouco constrangido com a forma tão despreocupada de Mirage ao fazer aquilo. Sua capa arroxeada — a forma de repouso de seus inúmeros tentáculos — se agitava em um ritmo descompassado.
Enfim, chegaram ao destino, parando na entrada da ala de descanso.
Não era um local muito visitado pelos tripulantes, que se resumiam a artrópodes bestiais, à aviadora Mirage, ao comandante Zath e ao último integrante do grupo da Dama da Ruína, que ainda permanecia adormecido.
Destravando a porta com a senha de segurança, os dois adentraram a sala. O ambiente estava coberto por sombras, iluminado apenas pela luz azulada das cápsulas de descanso.
Em uma delas, um corpo humanóide e biônico boiava dentro da água.
— Hora de acordar, seu preguiçoso. — Um dos tentáculos de Zath se estendeu até o painel e pressionou o botão que desativava a cápsula, fazendo o líquido ser drenado com um chiado lento
O novo Desperto emergiu de seu local de repouso com um longo bocejo, ou, melhor dizendo, a imitação acústica do som que aquilo deveria produzir, já que ele não possuía cordas vocais.
Sua cabeça era alongada e ligeiramente achatada, com uma crista dorsal que se estendia continuamente até a metade das costas.
Usando seus “olhos”, sensores azulados multifocais, capazes de rastrear vibrações em 360° por meio de leitura acústica, ele encarou o comandante Zath por um longo tempo, analisando em silêncio.
— Ah, fala sério… deixa eu adivinhar: vocês perderam o Vulto Negro de vista e ainda conseguiram ferrar a nave inteira? — supôs, observando o estado deplorável em que seu chefe se encontrava.
Mirage se aproximou com um giro teatral ao redor do Undead-tubarão.
— Olha só quem acordou cuspindo verdades, KillSwitch… mas sim, parabéns: você acertou no bingo da desgraça! Quer um prêmio, ou prefere voltar pra cápsula e fingir que tudo isso foi só um pesadelo coletivo?
Reagindo à zombaria, KillSwitch disparou um jato d’água no rosto de Mirage com um pequeno canhão embutido no pulso.
Seus braços longos eram revestidos por escamas azul-marinho, com grandes cilindros translúcidos acoplados aos antebraços e a outras partes do corpo, depósitos de líquido que serviam para resfriar os sistemas internos do Desperto.
— Ahhh! Minha máscara agora está cheia de água! E você sabe muito bem que meu corpo se expande quando entra em contato com líquidos, seu boboca! — Mirage correu para um canto da sala, escondendo o rosto enquanto tirava a máscara.
— Haha! Palhaça de circo cem por cento neutralizada.
Os tentáculos de Zath se espalharam pela sala, recolhendo pequenas esferas metálicas semelhantes a granadas.
— Chega de brincadeiras! Preciso que conserte a Dama da Ruína o mais rápido possível — esbravejou, entregando os objetos a KillSwitch. — Nossa caçada ao Vulto Negro ainda não terminou… prepare-se.
O brilho azulado dos sensores de KillSwitch diminuiu enquanto ele abaixava a cabeça, desanimado.
— É sempre assim… o patrão faz a cagada e sobra pro coitado do estagiário resolver. E olha que eu nem recebo salário — balbuciou, sem muita animação.
— Exatamente! Devíamos começar uma reforma trabalhista neste lugar. — Mirage retornou com um salto giratório para o centro da sala. — Que tal uma escala de um por seis? Seis dias de férias remuneradas e um de folga, hehe.
Os dois continuaram inventando benefícios cada vez mais surreais para suas respectivas funções, até que inúmeros pontos luminosos surgiram sobre eles. Eles olharam para frente, sabendo o que veriam: todos os olhos de Zath os encaravam com pura irritação.
— Inacreditável… — rosnou, com a voz reverberando, trêmula de raiva. — Estamos prestes a ser condenados a um tormento eterno por Skarneth, não temos nenhum sinal de onde o Vulto foi parar, a nave está em colapso e vocês… estão discutindo sobre férias?!
KillSwitch e Mirage se entreolharam por um instante, como se finalmente tivessem encontrado o momento oportuno para testar algo.
— Calma, chefe, você precisa relaxar. Que tal esfriar a cabeça? — o Undead liberou um ar refrigerado de seus cilindros, formando uma fina camada de gelo sobre o rosto do comandante, antes de olhar para sua amiga. — E aí, dessa vez eu consegui fazer uma boa piada?
Mirage caiu de joelhos, segurando a barriga e rolando levemente pelo chão, gargalhando de maneira exagerada.
— Hahahaha! Sim! Foi uma ótima piada, KillSwitch! Do jeito que eu gosto! — gritava entre risadas, jogando os braços para o alto.
Quando o engenheiro da Dama da Ruína estava prestes a erguer os braços em comemoração, um feixe de energia roxa atravessou o local com precisão mortal, passando a centímetros dele e atingindo em cheio sua cápsula de repouso.
Com um estrondo ensurdecedor, a estrutura explodiu em uma nuvem de vapor e fragmentos de vidro, lançando faíscas e gotas de líquido por toda parte.
— Meus manos… essa era minha melhor e única cápsula de descanso. Vai demorar séculos para consertar. — comentou em estado letárgico, só de imaginar o trabalho.
Afastando-se do pequeno incêndio criado, Mirage escorreu para o lado de Zath.
— Fica assim não! A gente arruma um aquário pra você; deve ser legal dormir com os peixinhos, né? — sugeriu a Undead gelatinosa, totalmente genuína em sua proposta.
— Como diabos conseguiríamos peixes estando em um deserto, gênio? — respondeu, enquanto espirrava um jato d’água para apagar o fogo.
Mirage moldou uma expressão confusa em sua máscara.— Não existem peixes no deserto? — perguntou, com dúvida sincera.
KillSwitch apenas suspirou. Para falar a verdade, existiam sim algumas espécies de peixes que viviam no deserto, mas não naquele em específico
— Ok, vamos para a parte que importa. Preciso de um resumo rápido de tudo que aconteceu até agora, comandante — disse, recolhendo as esferas metálicas que Zath havia pego.
Após ouvir uma breve explicação de todo o desastre que os havia levado a se encontrarem naquela situação, só pôde pensar em uma coisa:
Estamos ferrados…
— Acha que consegue consertar tudo até amanhã, no máximo? — questionou Zath, com expectativas claramente surreais.
— Claro… eu estava louco para voltar a trabalhar no limite da honra outra vez, assim como em todas as outras vezes que tive que arrumar suas bagunças — ironizou, puxando o pino das granadas e lançando-as ao centro da sala. — Mas enfim, nada que um grupo de trabalhadores sem remuneração não resolva.
Aos poucos, diversos artrópodes bestiais se solidificaram, diferentes dos brutamontes usados contra o Caçador de Ossos.
Estes não possuíam couraças pesadas, mas sim corpos esguios, leves e extremamente flexíveis, com patas pontiagudas adaptadas para o manuseio de sistemas complexos.
— Beleza, meus manos! Hoje eu tô empolgado — anunciou, estalando os dedos com um som metálico e agitando as engrenagens dos braços. — Bora dar um jeito nisso tudo antes que o chefão comece a espumar pelos tentáculos.
Sem esperar resposta, o Undead biônico saiu da sala a passos largos, seguido de perto pelos artrópodes técnicos, que se organizavam em fileiras, emitindo sons agudos e cliques sincronizados, prontos para restaurar a Dama da Ruína.
— Falando assim, até parece que se esforça… — murmurou Mirage, que conhecia bem o comportamento do amigo. — Mas então, chefinho, você realmente tem esperanças de que o Vulto Negro esteja vivo? É difícil acreditar, depois daquele tirambaço que você deu nele… e naquela pobre montanha.
Zath observou por um momento o rastro de fumaça que ainda escapava pelas bordas da porta recém-aberta. Seus olhos se fecharam por um segundo, e um dos tentáculos limpou o sangue seco ao redor do ferimento no peito.
— Esperança é uma palavra forte… Mas sim, algo me diz que o Vulto Negro ainda respira por aí — afirmou com tom grave, seu olho central se contraindo levemente. — E também não temos outra escolha a não ser torcer que ele esteja vivo.
Zath caminhou em direção à saída, a sombra de seus tentáculos deslizando pelas paredes, junto da figura dançante de Mirage logo atrás.
— Ainda assim, tem outra peça nesse tabuleiro que me intriga mais: o Ceifador, aquele que vive no subsolo. A energia que senti lá embaixo, o rastro que ele deixou, não foi normal. Não temos registros de ninguém assim nas Zonas Selvagens mapeadas pela Igreja Amaldiçoada.
Mirage, surpreendentemente, refletiu sobre o que havia sido dito por um tempo.
— Pensando bem… esse não é o lugar perfeito para esconder alguma coisa? Tipo, essa Zona é instável o suficiente para impedir que qualquer Undead mais poderoso ou exército pisasse aqui sem causar um colapso de realidade total.
Zath não respondeu; seus olhos mostravam uma ponta de dúvida.
— Se o Vulto Negro sobreviveu, ele vai nos levar direto até esse Ceifador. E, com sorte, talvez consigamos descobrir o que se esconde abaixo dessas areias.
Mirage riu baixinho, saltitando atrás, sabendo que o que estava por vir seria ainda mais alucinante do que tudo o que acontecera durante essa caçada ao Vulto Negro.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.