Acima do subsolo do Deserto de Sonata, após o ataque do Ceifador, a Dama da Ruína foi forçada a realizar um pouso de emergência, tombando de lado na areia com um estrondo horrendo de metal e carne se partindo.

    No interior da embarcação, o comandante Zath caminhava pelos corredores destruídos com a ajuda de Mirage para se manter de pé. O corte em seu peito ainda queimava, exalando uma névoa espectral esverdeada.

    — Aquele cara… atravessou minha pele com apenas um corte de energia. Mesmo que eu não seja do tipo combatente, é impressionante… — o olho central de Zath lacrimejava de forma bizarra com a dor do ferimento.

    — Poisé, ele amassou nos dois sem pena, igual purê… e olha que eu sou flexível!

    Ambos pararam na entrada da ala de descanso. Não era um local muito visitado pelos tripulantes, que se resumiam a artrópodes Bestiais, à aviadora Mirage, ao comandante Zath e ao último integrante do grupo da Dama da Ruína, que ainda permanecia adormecido.

    Destravando a porta com a senha de segurança, os dois adentraram a sala. O ambiente estava coberto por sombras, iluminado apenas pela luz azulada das cápsulas de descanso. Em uma delas, um corpo humanóide biônico boiava dentro da água.

    — Hora de acordar… seu engenheiro preguiçoso. — Um dos tentáculos arroxeados de Zath se estendeu até o painel, pressionando o botão que desativava a cápsula, fazendo o líquido ser drenado com um chiado lento.

    O novo Desperto se revelou com um longo bocejo ao emergir de seu local de repouso. Sua cabeça era alongada e ligeiramente achatada, com uma crista dorsal que se estendia continuamente até o meio das costas. Usando seus “olhos” — sensores azulados multifocais capazes de rastrear vibrações em 360° por meio de leitura acústica — ele encarou o comandante Zath por um longo tempo, como se o analisasse em silêncio.

    — Ah, fala sério… Deixa eu adivinhar: vocês perderam o Vulto Negro de vista e ainda conseguiram ferrar a nave toda? — supôs, observando o estado deplorável em que seu chefe se encontrava.

    — Olha só quem acordou cuspindo verdades, KillSwitch… Mas sim, parabéns, você acertou no bingo da desgraça! Quer um prêmio, ou prefere voltar pra cápsula e fingir que isso tudo foi só um pesadelo coletivo? — zombou Mirage, aproximando-se com um giro teatral ao redor do Desperto.

    KillSwitch atirou um jato d’água no rosto de Mirage. Seus braços longos eram revestidos por escamas azul-marinho, com grandes cilindros translúcidos acoplados nos antebraços e em outras partes do corpo, depósitos de líquido que serviam tanto para manter o Desperto hidratado quanto para atacar.

    — Ahhh, minha máscara agora está cheia de água! E você sabe muito bem que meu corpo expande quando entra em contato com líquidos, seu tubarão idiota! — Mirage correu para um canto da sala, escondendo o rosto enquanto tirava a máscara.

    — Haha… palhaça de circo cem por cento neutralizada.

    Os tentáculos de Zath se espalharam pela sala, recolhendo pequenas esferas metálicas semelhantes a granadas.

    — Chega de brincadeiras! Preciso que conserte a Dama da Ruína o mais rápido possível — esbravejou, entregando os objetos para KillSwitch. — Nossa caçada ao Vulto Negro ainda não terminou… prepare-se.

    O Desperto puxou o pino das granadas e as lançou ao centro da sala. Uma fumaça escura se espalhou lentamente pelo ambiente, densa e pulsante, até que figuras começaram a se formar em meio à névoa.

    Aos poucos, diversos artrópodes Bestiais se solidificaram, diferentes dos brutamontes usados contra o Caçador de Ossos. Estes não possuíam couraças pesadas, mas sim corpos esguios, leves e extremamente flexíveis, com patas pontiagudas adaptadas para o manuseio de sistemas complexos.

    — Belezinha, meus manos! Hoje eu tô empolgado pra trabalhar — anunciou KillSwitch, estalando os dedos com um som metálico e agitando as engrenagens dos braços. — Então bora dar um jeito nessa bagunça antes que o chefão comece a espumar pelos tentáculos.

    Sem esperar resposta, o Undead biônico saiu da sala com passos largos, seguido de perto pelos artrópodes técnicos, que se organizavam em fileiras irregulares, emitindo sons agudos e cliques sincronizados, prontos para restaurar a Dama da Ruína.

    Mirage terminou o processo de expulsar a água do corpo gelatinoso, cobrindo o rosto novamente com sua máscara antes de retornar para o lado de Zath.

    — Caramba, fazer isso toda vez é um saco. Mas então, chefinho, você realmente acredita que o Vulto Negro está vivo? É difícil acreditar, depois daquele tirambaço que você deu nele… e naquela pobre montanha.

    Zath observou por um momento o rastro de fumaça que ainda escapava pelas bordas da porta recém-aberta. Seus olhos se fecharam por um segundo, e um dos tentáculos limpou o sangue seco ao redor do ferimento no peito.

    — Esperança é uma palavra forte… Mas sim, algo me diz que o Vulto Negro ainda respira por aí. — disse com um tom grave, seu olho central se contraindo levemente.

    Ele se virou lentamente para Mirage.

    — Ainda assim, tem outra peça nesse tabuleiro que está me intrigando mais… O Ceifador. Aquele que vive no subsolo do Deserto de Sonata. A energia que senti lá embaixo, o rastro que ele deixou… não foi normal. Nós não temos registros de ninguém assim nas zonas selvagens mapeadas pela Igreja Amaldiçoada.

    Zath caminhou em direção à saída, a sombra de seus tentáculos deslizando pelas paredes.

    — Se o Vulto Negro sobreviveu, ele vai nos levar direto até esse Ceifador. E, com sorte, talvez consigamos matar dois problemas de uma vez.

    Mirage acompanhou o passo pesado de Zath com um giro desengonçado, ajustando a máscara com um estalo exagerado.

    — Aaaah, então é isso… — disse com um sorriso audível na voz. — Nosso querido capitão de mil olhos tá só arranjando desculpa pra sair explorando buracos no deserto e fingir que é por “missão oficial”. Admite, Zath… você só quer brincar de explorador.

    Zath não respondeu, mas um de seus tentáculos fez um gesto cortante no ar, como se dissesse “cale a boca”.

    Mirage riu baixinho, saltitando atrás.

    — Tudo bem, tudo bem… só me avisa quando achar um novo deus subterrâneo sedento por almas. Eu quero estar na primeira fila pra ver você tentando negociar com ele.

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