O frio cortante do subsolo envolvia Jasper, o Caçador de Ossos e Kaern enquanto eles davam os primeiros passos rumo à imponente pirâmide tecnológica que se erguia ao longe. A névoa espessa ainda dançava ao redor, iluminada pelos vários olhos alaranjados dos Coletores que guiavam o trajeto sinuoso.

    — Deixa eu ver se entendi: você olha para o céu, vê alguns pontos luminosos e imediatamente presume que é para lá que deve ir? — perguntou, depois de ouvir a breve explicação sobre o objetivo de Jasper.

    — Significam bem mais do que pontos luminosos para mim…

    O Caçador de Ossos riu de forma genuína. Esse foi o estopim para que todos os Coletores começassem a soltar risadinhas sincronizadas. Jasper sentiu-se um pouco irritado, mas reprimiu o sentimento e apenas suspirou, aborrecido.

    — Hahaha… Tudo bem, mesmo achando todo esse papinho bem ridículo, o caminho que você está seguindo não é tão ruim — comentou, recuperando o fôlego aos poucos. — Acredite, as Zonas Selvagens que vêm depois do Deserto de Sonata são bem mais tranquilas do que aquele inferno religioso.

    Jasper começou a prestar mais atenção no que estava sendo dito, como se o assunto lhe fosse familiar.

    — Como assim, “inferno religioso”?

    — Você realmente vai me obrigar a transformar todas as minhas falas em monólogos explicativos? — resmungou, ajustando a posição do escudo formado pela centopeia no braço.

    Jasper não disse nada. Apenas manteve o olhar fixo no ciclope ósseo, seus olhos azuis profundos parecendo julgar até a alma.

    — Tá bom, lá vai: as Zonas Selvagens antes desse deserto são praticamente dominadas por uma seita de fanáticos chamada Igreja Amaldiçoada. Eles adoram um pedaço de ferro gigante como se fosse um deus. Aquela nave maldita que nos atacou também deve ser de algum dos “fiéis” deles.

    A névoa ainda pairava densa, abafando o som dos passos e tornando o ambiente quase onírico.

    — E por qual motivo eles estão nos perseguindo? — a pergunta veio em um tom frio e calculado, como se o Vulto Negro já pressentisse o perigo por trás da resposta.

    O Caçador ignorou a tensão crescente e respondeu da forma mais direta possível:

    — “Nós” é o caralho! Eles estão atrás de você. Claro, eu fiz algumas merdas que irritaram os caras, mas a culpa de estarmos nessa situação ainda é sua.

    — Você preferia que eu me sentisse culpado por tudo isso? Bom… se eu não tivesse escolhido voltar pra te salvar, eu já estaria bem longe daqui. — respondeu com um raro sarcasmo, sabendo que nenhum dos dois estava realmente irritado.

    Kaern, que até então caminhava em silêncio ao lado dos dois, parou de repente. Seus olhos vermelhos se fixaram na centopeia filhote enrolada no braço do Caçador de Ossos, e um rosnado baixo reverberou.

    Sem qualquer aviso, o lobo metálico avançou e mordeu o antebraço do ciclope ósseo, tentando arrancar a criatura dali.

    — MAS QUE PORRA, KAERN?! — gritou o Caçador, balançando o braço freneticamente enquanto tentava manter o equilíbrio.

    O filhote de centopeia, alheio à confusão, se agarrava ainda mais firme ao braço como uma ventosa viva.

    — Acho que ele não gostou do seu novo companheiro. — respirou fundo, tentando segurar o riso.

    A centopeia soltou um chiado baixo, quase divertido, o que só piorou a tensão no ar. Kaern respondeu com um rosnado ainda mais alto, como se dissesse “Esse é o meu trabalho”, e só soltou o braço quando Jasper assobiou. O garoto piscou, surpreso ao perceber que o comando realmente havia funcionado.

    O Caçador levantou o braço mordido, agora cheio de marcas de dentes.

    — Era só o que me faltava… você tem sorte de eu estar poupando energia por agora, da próxima eu te arrebento, seu lobo de lata desobediente. — o Caçador estalou o pescoço, lançando um olhar de advertência para Kaern, que respondeu apenas com um abanar de cauda desafiador.

    Jasper observou os Coletores, que não diminuíam o ritmo da caminhada, apressados como se a própria pirâmide os chamasse.

    — Só segue o caminho… antes que ele resolva morder a sua perna também. — completou, ajeitando a espada nas costas e apertando o passo para acompanhar o grupo.

    O caminho estreito terminou numa clareira iluminada por cristais azulados cravados nas paredes, revelando o lar dos Coletores. Pequenas casas circulares de pedra e barro se espalhavam como um formigueiro organizado, conectadas por pontes estreitas de cordas e plataformas suspensas.

    Jasper desacelerou os passos, observando com estranheza como aquela comunidade, por mais grotesca que fosse, parecia viva.

    Acima do subsolo, o cenário era outro.

    A Dama da Ruína jazia tombada sobre as dunas, uma fera de metal e carne ferida, cuspindo faíscas e fumaça negra. KillSwitch caminhava de um lado para o outro, coordenando um enxame de artrópodes que desmontavam placas danificadas e substituíam sistemas de sustentação quebrados.

    — Fluxo de energia estabilizado em 43%. — anunciou num tom desanimado. — Meus manos, esse conserto vai demorar pra caramba… ah, que seja, vou tirar um cochilo. Vocês dão conta do recado, né, pessoal? — acenou para os tripulantes, que continuavam trabalhando sem descanso.

    Sentando-se numa cadeira improvisada, KillSwitch observava os artrópodes soldando algumas das placas metálicas soltas da nave. Diferente dos Bestiais comuns, aqueles eram gerados pela própria Dama da Ruína, o que facilitava muito a domesticação e permitia que exercessem as mais diversas funções, mesmo com suas falhas ocasionais.

    O olhar dele pairou sobre a embarcação caída. Sentia orgulho do sistema que havia criado junto de Zath e Mirage. A Dama da Ruína fora aprimorada para atravessar qualquer Zona Selvagem, em terra, no mar e, principalmente, no ar. Havia, no entanto, uma única característica indesejada pelos tripulantes: os armamentos.

    Aquelas armas não faziam parte do projeto inicial. Para abrir espaço para elas, boa parte dos equipamentos de pesquisa precisaram ser abandonados.

    Se tivéssemos tido a sorte de ser gerados em outra Zona… talvez não precisássemos estar neste deserto agora.

    KillSwitch soltou um longo bocejo, a cauda metálica relaxando com um som de engrenagens frouxas. Os olhos-sensores perderam o brilho por um instante enquanto ele puxava a cadeira improvisada feita de peças da própria Dama da Ruína.

    Os artrópodes auxiliares, totalmente focados na soldagem, nem perceberam quando o engenheiro começou a reclinar, cruzando os braços atrás da cabeça e deixando a mandíbula entreaberta.

    Foi quando uma sombra alongada cobriu seu rosto.— Olha só quem tá levando o conceito de “engenharia de descanso” a um novo nível. — a voz irônica de Mirage ecoou enquanto ela inclinava a cabeça para espiar o ângulo exato em que KillSwitch estava dormindo. — Deve estar testando a aerodinâmica do ronco.

    Antes que ele pudesse reagir, um tentáculo tocou seu ombro.

    — Se eu tivesse mais cem olhos, ainda assim não acreditaria no que estou vendo. — Zath aproximou-se com aquele tom entre a ameaça e a decepção. — Você está dormindo enquanto nossa nave sangra óleo?

    KillSwitch abriu um dos olhos-sensores lentamente, como se fosse um computador reiniciando.

    — É chamado de… pausa programada. — respondeu, com a voz arrastada. — Um engenheiro cansado comete erros… quer que eu exploda a nave por engano?

    Os tentáculos de Zath se retraíram com um estalo seco.

    — Você tem dois minutos, KillSwitch. Depois disso, quero você operando como se tivesse oito braços iguais aos dos seus ajudantes.

    KillSwitch suspirou, sentando-se direito.

    — Dois minutos é mais do que o necessário…

    Zath caminhou alguns passos, seus tentáculos deslizando pelo chão metálico enquanto seus olhos extras se voltavam para a cratera deixada pelo disparo do canhão principal da Dama da Ruína. A destruição ainda exalava um cheiro ozônico, como se o ar estivesse sendo queimado lentamente.

    — E quando terminar… — disse em tom firme, sem desviar o olhar da paisagem devastada. — Vamos discutir como chegar lá embaixo… no subsolo.

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