Capítulo 20: Chegada ao Templo
O frio cortante do subsolo envolvia Jasper, o Caçador de Ossos e Kaern enquanto eles davam os primeiros passos rumo à imponente pirâmide tecnológica que se erguia ao longe.
A névoa espessa ainda dançava ao redor, iluminada pelos inúmeros olhos alaranjados dos Coletores que guiavam o trajeto sinuoso.
— Deixa eu ver se entendi… Você olha para o céu, vê alguns pontos luminosos e imediatamente presume que é para lá que deve ir? — perguntou o Caçador, arqueando uma sobrancelha após ouvir a breve explicação sobre o objetivo de Jasper.
— Significam bem mais do que pontos luminosos para mim…
A risada do Desperto ecoou, servindo de estopim para que todos os Coletores começassem a soltar risadinhas sincronizadas, quase mecânicas.
Jasper sentiu-se um pouco irritado, mas reprimiu o sentimento, como sempre preferia fazer ao lidar com esse tipo de situação.
— Hahaha… Tudo bem. Mesmo achando todo esse papinho bem ridículo, o caminho que você está seguindo não é tão ruim — comentou, recuperando o fôlego aos poucos. — Acredite, as zonas que vêm depois dessa são bem mais tranquilas do que aquele inferno religioso.
Aquilo chamou a atenção de Jasper, como se o assunto lhe fosse familiar.
— Como assim, “inferno religioso”?
— Você realmente vai me obrigar a transformar todas as minhas falas em monólogos explicativos? — resmungou, ajustando a posição do escudo formado pela centopeia.
Jasper manteve o olhar fixo no ciclope ósseo, seus olhos azuis e profundos parecendo julgar até a alma.
— Tá bom, lá vai: as Zonas Selvagens antes deste deserto são dominadas por uma seita de fanáticos chamada Igreja Amaldiçoada. Eles adoram uns pedaços de ferro gigantes como se fossem deuses. Aquela nave maldita que nos atacou também deve ser de algum dos “fiéis” deles.
A névoa ainda pairava densa, abafando o som dos passos e tornando o ambiente quase onírico.
— E por qual motivo eles estão nos perseguindo? — indagou em tom frio e calculado, como se já pressentisse o perigo por trás da resposta.
O Caçador ignorou a tensão crescente e respondeu da forma mais direta possível:
— “Nós” é o caralho! Eles estão atrás de você. Claro, eu fiz algumas merdas que irritaram os caras, mas a culpa de estarmos nessa situação ainda é sua.
— Você preferia que eu me sentisse culpado por tudo isso? Bom… se eu não tivesse escolhido voltar para te salvar, eu já estaria bem longe daqui.
Um sorriso torto abriu-se no rosto do ciclope ósseo.
— Tô ligado, seu merdinha inconsequente. Pode ter certeza de que, quando sairmos deste fim de mundo, vou reservar um tempinho para quebrar todos os seus ossos, e talvez fazer uma arma nova com eles.
Kaern, que até então caminhava em silêncio ao lado dos dois, parou de repente, e um rosnado baixo reverberou pelo ar.
Jasper notou os segmentos de seu corpo oscilando entre o laranja e o vermelho, enquanto seus olhos se fixavam na centopeia enrolada no braço do ciclope.
— Hã? O que foi agora, hein? Não vai me dizer que pifou de novo, lobo idiota — zombou o Caçador, alheio ao estado emocional do Undead lupino.
Sem qualquer aviso, o lobo metálico avançou e cravou as presas no antebraço dele, tentando arrancar a criatura dali.
— MAS QUE PORRA, KAERN?! — gritou, balançando o braço freneticamente enquanto tentava manter o equilíbrio.
A pequena Bestial soltou um chiado baixo, porém ameaçador, o que só aumentou a tensão no ar. Kaern respondeu com um rosnado ainda mais alto, como se dissesse: “Esse é o meu trabalho.”
Era claro o motivo de tanta irritação: o lobo não confiava naquela criatura.
Diferente de Jasper, que quando o conheceu não demonstrava ser uma ameaça por estar muito fraco, aquela centopeia, mesmo sendo um filhote, podia facilmente matar qualquer um deles.
— Era só o que me faltava… Você tem sorte de eu estar poupando energia por agora. Da próxima, eu te arrebento, sua lata velha desobediente. — Com um movimento brusco, arrancou a centopeia do próprio braço.
As presas da pequena criatura tentaram se firmar em sua pele óssea, mas ele a segurou com firmeza e a lançou na direção de Kaern.
O lobo metálico reagiu instintivamente, abocanhando o filhote no ar.
Por um instante, parecia que iria triturá-lo com as presas afiadas, então, um estalo seco ecoou. Depois outro. E mais outro. Mas nada.
Os dentes de Kaern simplesmente não conseguiam atravessar aquela carapaça. O brilho avermelhado que percorria o corpo do Undead começou a pulsar de forma diferente, tornando-se um verde vibrante.
Jasper observou em silêncio enquanto o lobo, antes tomado pela fúria, agora balançava a cabeça de um lado para o outro com a centopeia presa entre as mandíbulas, como um animal brincando com seu novo brinquedo.
Por outro lado, o Caçador estalava o pescoço, lançando um olhar de advertência para Kaern, que respondeu apenas com um abanar de cauda desafiador.
Todos voltaram a seguir em frente, já que os Coletores não diminuíam o ritmo da caminhada, apressados, como se a própria pirâmide os chamasse.
O caminho estreito terminou em uma clareira iluminada por cristais azulados cravados no topo de postes metálicos, onde abutres Bestiais pousavam, liberando um óleo inflamável de suas asas que acendia o mecanismo.
Pequenas casas circulares de pedra e barro se espalhavam como um formigueiro organizado, conectadas por pontes estreitas de corda e plataformas suspensas.
A morada dos Coletores era, de certa forma, simples, o que causava certa estranheza no Caçador de Ossos. Se viviam de maneira tão tranquila naquelas condições, por que se arriscariam lidando com ferro derretido?
Mas Jasper não se importava; continuava caminhando em direção à pirâmide, quase como se estivesse hipnotizado.
A armadura do Vulto Negro reagia à proximidade: algumas de suas placas brilhavam em um tom azul-escuro, apenas para logo se dissiparem no ar, sem deixar resquícios.
Antes que pudesse dar mais um passo em direção ao templo antigo, os Undeads ferreiros se colocaram à frente dos três, bloqueando a passagem para a longa escadaria que levava à pirâmide.
O olhar cortante de Jasper se fixou nos Bestiais que bloqueavam seu caminho. Ele sabia que poderia parti-los ao meio com um único golpe, mas não o fez.
Chega de ser impulsivo… pensou, virando-se em seguida para encarar o Caçador de Ossos.
— Você consegue se comunicar com eles, não é? Então pergunte por que não podemos continuar… e, desta vez, tenta não ofender ninguém.
Infelizmente, os dois Despertos não pareciam levar tudo tão a sério quanto o garoto.
— Solta, solta! Você já se divertiu o bastante, praga dos infernos! — insistiu o ciclope, tentando puxar a centopeia-escudo da boca de Kaern, que disputava força com seu líder.
Aquilo continuou até que ambos notaram a encarada mortal que o Vulto Negro lançava para eles mais à frente.
O lobo metálico choramingou ao largar seu “brinquedo”, enquanto o Caçador tossiu, tentando disfarçar o constrangimento.
— Então vamos de democracia de novo… se não funcionar igual da última vez, partimos para o método mais prático: a anarquia. — provocou dando um passo na direção dos Coletores.
A sequência de piscadas em padrões diversos começou. Era quase como se comunicassem por código Morse, piscar indicava as palavras e rir expressava as emoções.
Mesmo sendo um método arcaico, continuava surpreendente o quanto aqueles Bestiais eram inteligentes. Pareciam estar a um passo de se tornarem Despertos… mas algo os impedia.
— Se eu entendi direito, eles querem que você remova sua armadura. Algo sobre ela não estar pronta para um tal “processo de sincronização” — traduziu, apoiando o peso do corpo e deixando a vista cansada descansar por um instante.
— NÃO. — A voz de Jasper ecoou forte o bastante para fazer todos ao redor recuarem um passo.
Depois de tanto tempo usando-a, a armadura havia se tornado mais do que uma proteção, era parte dele. Sua força. Sua segurança. Sua rebelião contra o mundo.
Removê-la seria o mesmo que ficar nu diante do abismo… e, naquele mundo, isso significava morte certa.
Nesse aspecto, o Caçador conseguia entender o garoto.
Cada Undead possuía sua própria carapaça, sua segunda pele. Tirá-la e expor a carne frágil era algo reservado a situações raríssimas, e fazê-lo diante de outros era quase impensável.
Por isso, ele transmitiu rapidamente a resposta de Jasper aos Coletores, de forma direta e incisiva.
O grupo de Bestiais iniciou uma breve discussão, alguns riam de forma frenética, enquanto outros apenas piscavam com sutileza, trocando sinais entre si.
Depois de alguns instantes, chegaram a um consenso e comunicaram ao Caçador como deveriam prosseguir.
— Pelo visto, a sua armadura precisa ser ajustada antes dessa tal “sincronização”. Mas o elmo, não. — explicou, coçando a nuca. — E nem adianta me perguntar o porquê, nem eles sabem ao certo. Só disseram que isso está sendo preparado há décadas.
Jasper permaneceu em silêncio por alguns instantes, mergulhado em dúvida. Parte de si acreditava que seguir adiante poderia ser uma armadilha, talvez aquela entidade quisesse lhe causar algum mal.
Ainda assim, quando voltou o olhar para a pirâmide, seus instintos não sinalizavam perigo algum.
Aquele chamado… soou mais como uma súplica. Quero acreditar que esta é a escolha certa.
No fim, o Vulto Negro começou a retirar, uma a uma, as partes da armadura, os gestos lentos, quase hesitantes, revelando seu receio.
Apenas o elmo permaneceu em seu rosto. Sob as placas negras, havia apenas trapos rasgados pelo tempo. Seu corpo, pequeno e magro, lembrava o de um garoto de treze anos, os ossos à mostra denunciando a longa convivência com a fome e a dor.
Assim que a última peça caiu ao chão, sentiu o peso do mundo voltar sobre os ombros.
Seu corpo parecia mais denso, mais fraco.Foi então que percebeu: o Sentido do Vento havia enfraquecido. O alcance de quinze metros que antes dominava o ar ao redor agora mal cobria dois.
Eu realmente não sou nada sem isso…
A sensação de fraqueza era tão desagradável que o fez cerrar os punhos até os ossos estalarem.
Buscando algum vestígio de conforto, Jasper levou a mão ao peito e segurou com força a pequena cruz de prata pendurada em seu pescoço.
O silêncio se impôs quando os Coletores avançaram, recolhendo as peças da armadura do Vulto Negro, sem risos desta vez, apenas o som seco das garras arranhando o metal.
A passagem para a pirâmide estava enfim livre. Acima deles, a lua que Jasper havia visto ao deixar a caverna pairava a uma distância considerável.
Era diminuta em comparação à lua original, embora a visão permanecesse magnífica, quase hipnótica.
Os três seguiram então em direção ao local onde o Ceifador os aguardava. Havia receio nos passos, desconfiança quanto aos planos daquele ser espectral… e, acima de tudo, uma curiosidade.

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