Diante do temido Ceifador, mestre dos Bestiais do subsolo, Jasper não sabia como reagir ao ser tratado como um velho conhecido. Osíris mantinha-se parado como uma estátua, a mão estendida, oferecendo um simples aperto de mão amigável.

    Hesitante, Jasper retribuiu o gesto. Além de odiar aquele silêncio constrangedor, a aura suave e tranquilizante de Osíris dissipava qualquer sensação de perigo.

    — Peço desculpas por não tê-lo trazido diretamente até aqui desde o início. Devido ao movimento constante, foi difícil encontrar uma brecha para as centopeias agirem.

    — Eu ainda não entendo… você estava me esperando? — perguntou Jasper, confuso com o nome pelo qual fora chamado: Condor.

    Osíris recuou alguns passos, soltando a mão de Jasper, e encarou o grupo à sua frente.

    — De certa forma, sim. Fiz uma promessa de guardar este templo até o retorno de Condor, e ele está aqui. — Seus olhos se fixaram no elmo do Vulto Negro.

    O Caçador de Ossos, que se mantivera calado, interveio com desconfiança.

    — Isso não faz sentido. Condor foi morto há décadas, eu vi com meus próprios olhos. Quer dizer… quem não viu? Foi uma execução pública da Igreja Amaldiçoada. Mesmo que esperasse uma reencarnação, já teriam corrompido todos os circuitos dele.

    Kaern rosnou, percebendo a tensão, com os segmentos de sua couraça brilhando em vermelho intenso.

    — Então foi isso que aconteceu com você, líder… — lamentou o Ceifador, em tom melancólico.

    Jasper sentia-se cada vez mais perdido, e Osíris parecia compartilhar da mesma confusão.

    — Esse tal de Condor era seu amigo, certo? Como você não sabia que ele estava morto? E, se ele se foi há décadas… por quanto tempo você está esperando neste subsolo? — perguntou Jasper.

    Após um longo silêncio, Osíris levou a mão ao peito e arrancou com força uma das placas de bronze oxidado. Sangue negro jorrou ao revelar um enorme buraco onde seu Núcleo Mutante, partido em pedaços, mal se sustentava.

    O brilho fraco do cristal âmbar, pulsando lentamente, causou repulsa até no Caçador de Ossos, que sentiu o estômago embrulhar. Núcleos Mutantes podiam se regenerar parcialmente, mas aquele estado ia além de qualquer distorção natural.

    — Sofri um golpe quase letal de um Amaldiçoado durante uma missão. Perdi minha força e as memórias contidas nos meus Códigos de Essência — explicou Osíris, sem demonstrar tristeza ou ódio, apenas aceitação.

    Recolocando a placa de bronze, continuou:

    — Normalmente, a radiação concentrada no Núcleo se dissiparia, e os Códigos de Essência retornariam ao Núcleo Catalisador original. — Um turbilhão de fórmulas e dados surgiu diante dele. — Mas, com meu domínio sobre o assunto, consegui reunir manualmente meus códigos restantes. Por isso me chamam de Mestre dos Códigos.

    Jasper podia não compreender totalmente como os Undeads funcionavam, mas a explicação parecia lógica. Ainda assim, uma dúvida persistia.

    — Você está debilitado, eu entendi… mas por que me chamou pelo nome do seu amigo?

    — Porque vejo claramente os Códigos de Essência de Condor dentro de você, entrelaçados ao seu próprio núcleo. É como se parte dele tivesse renascido em você. Ele me deixou uma mensagem: para que eu esperasse pelo seu retorno, não importando como.

    O coração de Jasper disparou, um pânico silencioso o tomou. A ideia de carregar parte de alguém que não conhecia era sufocante, como uma mão invisível apertando sua garganta.

    Suas mãos, sujas de poeira e arranhões, tremiam sem que ele percebesse. O aperto involuntário em sua cruz de prata quase rompeu a corrente. Um frio percorreu sua espinha, e seu Sentido do Vento, mesmo enfraquecido, captou apenas um zumbido oco ao redor, como se o mundo tivesse desaparecido por um instante.

    —I-isso… não pode ser… — murmurou, a voz trêmula.

    — Qual é o seu nome, amigo? — questionou Osíris, ao notar seu desespero.

    — Meu nome é Jasper… só Jasper.

    — Isso prova que você é único, não por carregar memórias alheias, mas por ser quem escolhe ser, mesmo quando o destino tenta escrever sua história por você.

    As risadas brincalhonas dos Coletores ecoaram das escadarias. Eles chegaram saltitantes, cada um carregando uma parte da armadura do Vulto Negro e exibindo-a com orgulho.

    Osíris sorriu, satisfeito com os preparativos quase concluídos.

    — Para usar as habilidades latentes de Condor, adormecidas em você, e desenvolver ao máximo seus poderes, é preciso sincronizar seu Núcleo de Mana com esta armadura, criando o que os humanos chamam de Hazard: uma união diabólica de homem e besta.

    — Então toda aquela fortuna foi para isso? Que desperdício… — comentou o Caçador de Ossos, frustrado.

    Jasper encarou cada parte da armadura restaurada, agora sem os traços irregulares das criaturas que havia matado. Era um novo estágio que precisaria alcançar.

    — Certo… me diga o que eu tenho que fazer para alcançar essa sincronização. — Os olhos do Vulto Negro brilharam em azul profundo por entre as sombras do elmo, sem qualquer dúvida restante.

    Osíris concentrou todos os códigos contidos nos Fragmentos de Essência em um único ponto, criando uma espiral de dados. Isso surpreendeu o ciclope ósseo; Mestres de Códigos eram raros de se encontrar e, mesmo havendo alguns espalhados pelas diversas Zonas Selvagens, o Ceifador ainda se destacava.

    Esse cara… nem está usando as mãos para manipular tanta informação. Que poder mental absurdo!

    Com um aceno de mão, a espiral girou em alta velocidade, disparando códigos igualmente sobre cada peça da armadura negra. Eles criaram canais por onde a energia mágica de Jasper poderia fluir, afetando a realidade de acordo com as frequências que ele liberasse.

    — Pronto, preparativos concluídos. Sobre sua pergunta… eu não sei — respondeu de cabeça baixa, parecendo desconfortável.

    — O quê?

    — Para falar a verdade, dediquei a maior parte do tempo em que permaneci escondido neste lugar a estudar todos os conhecimentos que perdi. Até ensinei um pouco sobre Códigos a esses pequenos Bestiais, eles aprendem rápido. Mas, infelizmente, as informações sobre como realizar a sincronização se perderam. Tudo o que sei é que preciso eliminar as impurezas da Hazard antes de iniciar o processo.

    Jasper respirou fundo, seu olhar percorreu as peças negras que flutuavam ao seu redor, agora pulsando com os códigos recém-implantados por Osíris. A superfície metálica parecia viva, vibrando sutilmente, como se tivesse um coração próprio.

    — Eu aceito o risco. Vamos acabar com isso.

    Os Coletores se entreolharam por um breve instante, como se confirmassem que era a hora. Sem dizer uma palavra, moveram-se ao redor do garoto com precisão cerimonial, cada um carregando uma parte da armadura.

    O primeiro fragmento, colocado sobre o ombro esquerdo de Jasper, aderiu à pele como se fosse parte dela, se moldando com movimentos suaves e orgânicos. Um leve estremecer percorreu seu corpo. Não era dor, mas uma estranha sensação de fusão, como se sua carne estivesse sendo reconfigurada.

    Peça por peça, os Coletores encaixaram os componentes. O peitoral envolveu seu tronco, espremendo seus músculos como se estivesse ajustando seu batimento cardíaco ao da própria armadura. Quando as grevas cobriram suas pernas, Jasper quase caiu de joelhos, uma onda de magia passou por sua espinha como uma descarga elétrica.

    No fim, o último fragmento — uma placa negra com símbolos gravados — foi cravado no centro de seu peito. Um brilho intenso o envolveu, e por um instante, seus olhos se apagaram sob o elmo.

    Os circuitos estavam alinhados. A sincronização havia começado.

    Todo o salão mergulhou em silêncio absoluto. Nenhum dos Coletores ousou se mover. Até mesmo Osíris, acostumado a lidar com códigos complexos e processos arriscados, manteve os olhos fixos em Jasper com uma expressão indecifrável.

    O corpo do garoto permanecia ereto, completamente imóvel, os braços soltos ao lado do corpo. A armadura recém-fixada parecia pulsar em um ritmo estranho, como um organismo que ainda não havia decidido se aceitaria ou rejeitaria o hospedeiro.

    Os Coletores, antes animados, se aproximaram cautelosos, inclinando a cabeça com seus olhares curiosos. Um deles estendeu o dedo, quase tocando a placa central da armadura de Jasper, mas recuou assim que um brilho tênue percorreu os canais mágicos recém-criados.

    — Que anticlimático… Por quanto tempo ele vai ficar paradão desse jeito? — perguntou o Caçador, cruzando os braços enquanto se escorava em uma das pilastras do templo.

    — Tudo depende de ele encontrar a resposta dentro de si. Agora… acho que tenho assuntos a resolver com vocês dois, convidados indesejados. — As veias escuras de Osíris brilharam em um tom esverdeado, revelando que sua energia radioativa estava circulando.

    Um clarão vermelho irradiou do olho do ciclope ósseo, que agora mantinha o olhar fixo no Ceifador.

    — Não sou de bater em deficiente, mas se você está pedindo para apanhar, a culpa não é minha — zombou, sem se intimidar com a presença poderosa de Osíris.

    Kaern avançou um passo, rosnando, pronto para saltar, mas antes que qualquer golpe fosse desferido, um som ensurdecedor cortou a tensão, um disparo agudo, metálico, ecoando como um trovão comprimido.

    O teto do subsolo estremeceu violentamente. Poeira caiu em cascata, seguida por um raio escarlate que atravessou a rocha com brutalidade, abrindo um buraco colossal de ponta a ponta. A energia residual do disparo deixou as paredes vibrando, como se o próprio ar estivesse prestes a se rasgar.

    Osíris ergueu a cabeça lentamente, a névoa espectral em volta de seu corpo oscilando com o impacto. O Caçador cerrou o punho, apertando a mandíbula, e os dois Undeads trocaram um olhar silencioso. Não havia necessidade de palavras; ambos entendiam que aquela chegada mudava tudo.

    A batalha entre eles teria que esperar.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 100% (1 votos)

    Nota