Capitulo 23: Plano de Ataque
As luzes vermelhas de emergência ainda piscavam dentro do hangar inferior da Dama da Ruína, lançando sombras intermitentes sobre os corredores metálicos danificados pelo último confronto. Fios expostos pendiam do teto como raízes vivas, e o som constante das máquinas zumbindo e rangendo criava uma sinfonia mecânica incômoda.
No centro da sala de comando, uma grande projeção exibia um mapa tridimensional do Deserto de Sonata, agora marcado com rachaduras no solo e sinais de atividade energética vindos das profundezas.
Mirage girava no ar como uma criança impaciente, assumindo formas grotescas e deformadas a cada volta, enquanto fazia caretas para o mapa.
— Aff… por quanto tempo vamos ter que esperar? Os fumacentos estão todos ocupados consertando a nave e não tem ninguém para admirar meus truques — murmurou, flutuando entediada até o comandante.
Zath não esboçou reação. Seus múltiplos olhos giravam lentamente nos tentáculos que deslizavam pelo console da nave, ajustando parâmetros com precisão matemática.
— A nave ainda está com 63% da capacidade ofensiva. Três geradores danificados, dois dos propulsores comprometidos. — Sua voz soava seca, sem qualquer entusiasmo.
O engenheiro da tripulação, KillSwitch, terminava de reparar uma das paredes da sala de comando, seus braços mecânicos trabalhando em velocidades absurdas enquanto soldava, implantava peças e resmungava consigo mesmo.
— Metade dos reparos concluídos! Mais 5 minutos e essa garota canta como antes! — berrou, a voz distorcida por interferência — …ou explode, ainda não calculei direito.
Uma mancha azulada em movimento constante, assobiando em uma melodia dissonante flutuava em torno de Zath, seus braços gelatinosos assumindo formas de máscaras, flores e caretas grotescas numa sequência interminável de provocações.
— Tão sério… sempre tão sério! Você devia sorrir mais, comandante. Talvez colocar uns sinos nos tentáculos te ajude? — riu, rolando como uma bola de gelatina pelo chão
Um dos tentáculos desviou, afastando-se do toque curioso da criatura gelatinosa.
— Volte ao seu posto, Mirage. Preciso que regule os propulsores antes de iniciarmos a decolagem. Não vou te dar atenção até que nossa missão esteja concluída — ordenou, apertando um dos botões do painel de controle. Um pequeno compartimento se abriu, revelando uma esfera totalmente branca que emitia um brilho fraco.
Assumindo novamente sua forma humanoide, a máscara dourada de Mirage exibia uma expressão de falsa tristeza para Zath, expressão que se desfez assim que a Undead gelatinosa tocou a esfera opaca, que aos poucos mudou de tonalidade para um azul claro e fraco.
Mesmo que agisse de forma excêntrica na maior parte do tempo, até Mirage compreendia a necessidade de foco extremo para concluir o processo de estabilização dos propulsores. Ela teria que transferir a energia do seu Núcleo Mutante para o da nave, algo simples com Undeads menores, mas desafiador diante do tamanho colossal da Dama da Ruína.
A tripulação só conseguia realizar aquela transferência de energia graças ao Núcleo Emissor desenvolvido por KillSwitch, um dispositivo complexo construído a partir de inúmeros Fragmentos de Essência. Seu propósito era criar canais simplificados, permitindo que a radiação de um Undead fluísse com mais facilidade pelo corpo da embarcação até seu Núcleo.
As luzes vermelhas, que transmitiam a sensação de emergência, se apagaram, dando lugar às lanternas azuladas que indicavam a estabilização do sistema. Com um ruído mecânico seguido de um zumbido agudo, a nave ergueu-se das areias do deserto, subindo lentamente aos céus com a ajuda dos propulsores reativados.
A forma de Mirage oscilou quando ela retirou a mão da esfera, agora completamente azul. O líquido que compunha seu corpo começou a escorrer pelas frestas da armadura avermelhada, mas ela não se importou; manteve-se imóvel, segurando apenas a máscara dourada fixada ao rosto.
KillSwitch se aproximou do painel de comando, arremessando um Fragmento de Essência com o polegar para a aviadora se recuperar mais rápido.
— Tudo pronto, meus manos. E então… qual é o plano? — perguntou, reabastecendo os cilindros de água nos braços, sua crista dorsal mecanizada liberando vapor frio em curtos jatos.
Uma nova projeção tomou o lugar da anterior, revelando uma gravação perturbadora. As imagens mostravam uma cidade em ruínas, com inúmeros Undeads despedaçados. Diversas tonalidades de sangue se misturavam em uma pasta viscosa e nauseante, enquanto circuitos arrancados pendiam de galhos de árvores mortas.
— Essa é uma das únicas gravações do que o Vulto Negro fez. Ele destruiu completamente uma das bases do “mestre” Skarneth, sem deixar nenhum sobrevivente — Os múltiplos olhos de Zath observavam a cena com apatia. Massacres não eram incomuns, mas este havia acontecido em território de um Amaldiçoado, sem a devida autorização.
A tripulação se entreolhou em silêncio, a tensão evidente em cada olhar. A dúvida sobre suas chances de vitória era sufocante. Se morressem ali, a Dama da Ruína ficaria abandonada no Deserto de Sonata, tornando-se um alvo para qualquer lunático que desejasse usá-la para seus próprios interesses. E todos sabiam: ela odiaria isso.
— Quando o encontramos pela primeira vez, ele estava acompanhado de mais dois sujeitos, ambos fugitivos da Igreja Amaldiçoada. O Lobo Negro não será tão problemático, mas devemos tomar cuidado com o Caçador de Ossos, sua má fama lhe cabe bem. Não o deixem entrar em Frenesi — completou Zath, desligando a filmagem com um de seus tentáculos.
Os dois tripulantes assentiram, enquanto Mirage já apresentava seu corpo estabilizado após a ingestão do Fragmento de Essência.
— A presença do Ceifador era poderosa… mas instável. Se Mirage e eu nos unirmos, vejo alguma possibilidade de vitória. Agora, supondo que o Vulto Negro e os outros estejam realmente vivos, confio em você, KillSwitch, para esse trabalho — disse com seu olho central recém-regenerado fixando-se no engenheiro. — Não se contenha.
— Beleza… só vou logo avisando que, se tudo der errado, eu vou meter o pé e levar a Dama da Ruína junto. Alguém tem algo contra isso? — perguntou KillSwitch, com um sorriso metálico estampado no rosto e os braços mecânicos girando como se já estivessem prontos para a fuga.
Mirage deu uma risada abafada, a máscara dourada inclinando-se como se expressasse puro deboche. Sem dizer uma palavra, ela retirou do próprio corpo uma fina carta translúcida, que cintilava com símbolos instáveis, e a arremessou na direção de KillSwitch.
A carta explodiu com um pop suave antes de se dissolver em uma fumaça roxa densa, envolvendo o rosto metálico do engenheiro. O cheiro doce e levemente ácido fez os sensores dele piscarem com irritação.
— Sério isso? — resmungou KillSwitch, tossindo com sua voz robótica.
— Covarde demais pra morrer, mas esperto demais para discordar… gosto de você assim — zombou Mirage, a máscara agora exibindo um largo sorriso caricato.
Zath ergueu o corpo imponente, seus tentáculos deslizando pelo metal do corredor enquanto seus múltiplos olhos se ajustavam em direção à saída.
— Para fora. Agora — ordenou Zath, a voz firme ecoando pela estrutura da nave como um comando impossível de ignorar.
KillSwitch interrompeu os resmungos imediatamente e colocou a Dama da Ruína em modo autônomo, permitindo que a nave utilizasse todos os seus mecanismos sozinha, recebendo apenas comandos à distância. Sem mais delongas, seguiu os outros dois.
Mirage dissolveu parcialmente o corpo, atravessando a porta com um movimento líquido e fluido, deslizando atrás de Zath.
Do lado de fora, a Dama da Ruína reposicionou-se com um ronco metálico. Seu casco abriu-se na parte inferior, revelando o núcleo do canhão principal, uma massa pulsante de circuitos vivos e energia radiante.
— Coordenadas fixadas. Sem margem para erro — murmurou Zath, um dos tentáculos tocando o console de acesso externo.
Um feixe de energia condensou-se em uma linha vermelha incandescente antes de disparar. O impacto contra o solo do deserto sacudiu tudo ao redor, abrindo uma cratera larga que revelava a estrutura subterrânea oculta. Poeira e fragmentos de rocha explodiram pelo ar.
— Caminho aberto. Movam-se — disse Zath, saltando primeiro em direção à abertura.
Mirage o seguiu com um salto elástico e silencioso, enquanto KillSwitch ativava um pequeno propulsor de emergência nas costas, resmungando algo sobre “não ser pago o suficiente para isso”.
O ar seco do deserto deu lugar à umidade sufocante do subsolo assim que os três atravessaram a cratera aberta. A queda era longa, o vento assobiava nos ouvidos como um aviso antigo e impiedoso, mas cada um deles enfrentaria aquilo à sua maneira.
Zath ergueu um dos tentáculos, e uma pressão invisível tomou conta do ambiente. Sua descida desacelerou bruscamente, e ele ficou pairando no ar, como se a gravidade simplesmente tivesse desistido de puxá-lo. Por alguns segundos, manteve-se imóvel, antes de tocar o solo com suavidade.
Mirage caiu como um cometa líquido, sua forma gelatinosa se deformando com o impacto. O corpo explodiu em uma massa azulada que se espalhou pelo chão como uma poça viva, os respingos cintilando sob a fraca iluminação esverdeada do subsolo.
Os fragmentos escorriam uns em direção aos outros, contorcendo-se como serpentes viscosas. Em poucos instantes, a figura humanoide se reergueu, moldando braços, pernas e a máscara dourada, agora rachada em uma das bordas, mas ainda expressando uma alegria artificial.
KillSwitch veio por último, acionando os propulsores nas costas. Faiscas azuladas saíram com dificuldade, o sistema chiando sob pressão, os propulsores eram feitos para eficiência máxima debaixo d’água, não para frenagens bruscas em queda livre.
Ele girou no ar tentando compensar a perda de estabilidade, quase batendo contra uma das paredes rochosas antes de se endireitar no último instante. Ainda assim, aterrissou pesado, os joelhos flexionando-se com um estrondo metálico ao tocar o solo.
— Não fui projetado pra isso…
Um círculo formou-se no ponto exato onde os três aterrissaram. A névoa densa e esbranquiçada que permeava todo o subsolo parecia hesitar em tocá-los. Logo, inúmeros pontos alaranjados surgiram na escuridão, espalhados como brasas vivas na névoa, todos fixos nos tripulantes da Dama da Ruína. Eram olhos, prontos para defender seu lar a qualquer custo.
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