O caos da batalha iminente estava prestes a explodir no subsolo. Os passos apressados e o som rítmico de metal sendo martelado pelos Coletores, acompanhados de suas risadinhas brincalhonas, carregadas de um significado perturbador, criavam um estranho cântico de guerra.

    No entanto, havia um contraste claro entre o comportamento dos Bestiais e o de seu líder, que permanecia sentado nas escadarias que levavam ao Templo de Narhma. Osíris não movia um músculo sequer, parecendo apenas mais uma das muitas estátuas esculpidas ao seu redor.

    Sua mente, fragmentada assim como seu Núcleo Mutante, continuava a perturbá-lo. O conhecimento se perdia, e as poucas memórias que não lhe foram roubadas se misturavam em cenários caóticos nos quais ele duvidava poder confiar. Havia se tornado apenas uma sombra do que fora um dia.

    Um estalo ósseo vindo do topo da escada arrancou o Ceifador de seu transe.

    — Não vai ajudar seus bichinhos, grande Maverick? — zombou o Caçador de Ossos, a voz carregada de uma arrogância ainda maior do que o habitual. — Eles podem até quebrar algumas pedras com as mãos, mas, para Despertos, isso não é nada.

    O Ceifador não se abalou. Lidar com pessoas irritantes era algo que nem mesmo a destruição de seu Núcleo o havia feito esquecer.

    — Não espero que eles derrotem o inimigo — disse, sem prolongar o assunto. — Apenas preciso de mais tempo para reunir a energia necessária para vencer.

    — Que idiota… mesmo nesse estado deplorável, você continua se achando o maioral. Deixe eu te explicar uma coisa, senhor Maverick: a moda das rebeliões baratas já passou. Todo o seu grupinho fugiu com o rabo entre as pernas assim que Condor foi morto. — provocou, testando os limites de Osíris, assim como havia feito com Jasper.

    O silêncio tomou conta do lugar. As marteladas cessaram de imediato, e até as centopeias gigantes, que se moviam pelo teto rochoso, pararam como se o mundo tivesse congelado. Todas as atenções estavam voltadas para Osíris.

    — Talvez você esteja certo… — disse, a voz baixa, porém carregada de autoridade. — Não me lembro direito de como tudo terminou. Mas, se realmente acredita que não tenho capacidade de eliminar alguns subordinados da Igreja, está se enganando profundamente.

    Sem sequer virar a cabeça para o Caçador, continuou com o mesmo tom calmo, quase didático, que esmagava qualquer traço de desafio.

    — Ou talvez o tempo que passou como escravo dos interesses deles tenha deixado marcas tão profundas… que você ainda os idolatre, mesmo sem perceber.

    O Caçador de Ossos cerrou os dentes, o som de fricção ecoando baixo entre as placas ósseas de seu rosto. Sua mandíbula se contraiu, a fúria pulsando nas veias de energia que percorriam seu corpo mutante.

    Mas então, ele parou. Um sorriso torto surgiu lentamente em seu rosto ossudo, quase um reflexo involuntário.

    — Heh… agora eu entendo. Você não é só mais um fracassado… — murmurou, inclinando levemente a cabeça, como se analisasse cada detalhe do Ceifador. — …você ainda tem aquele veneno dos velhos tempos.

    Virando-se para encarar o Vulto Negro, ainda paralisado dentro de sua armadura e irradiando uma intensa energia azulada, com Kaern circulando ao seu redor em estado de alerta para qualquer ameaça, o Caçador passou por eles e se recostou no portão da pirâmide tecnológica, de braços cruzados.

    Tudo bem… eu vou me segurar por enquanto. Se tudo seguir como imagino, talvez eu finalmente veja o verdadeiro desafio que me espera atrás desse portão. Hehe…

    A névoa do subsolo rastejava junto aos Bestiais, deslizando como uma criatura viva na direção de onde os inimigos haviam rompido a terra. Era como se uma ventania espectral a arrastasse.

    Do outro lado da cratera recém-aberta, a tripulação da Dama da Ruína se via cercada por uma multidão de Coletores. Olhos alaranjados os fitavam de todos os ângulos, enquanto a névoa os envolvia como uma maré sufocante.

    — Bom… é assim que eu morro? — Mirage transformou parte de seu corpo em um “manto” improvisado, cobrindo a própria cabeça como se fosse um fantasma barato. — Alguém coloca uma música triste pra mim?

    KillSwitch, encostado em um bloco de pedra, apenas bocejou.— Podiam pelo menos esperar eu terminar de calibrar esses propulsores depois de uma queda dessas.

    No centro dos dois, Zath permanecia imóvel, a postura rígida de comandante intacta, mas seus olhos múltiplos giravam em diferentes direções, analisando cada detalhe dos Bestiais. A expressão séria não revelava nada, mas em seu íntimo, uma antiga chama estava acesa; cada movimento, cada mutação corporal daqueles seres era uma descoberta esperando para ser registrada.

    — Não ataquem sem meu comando — A voz firme não escondia a excitação científica que apenas quem o conhecia de verdade conseguiria perceber.

    Os Coletores avançaram todos de uma vez, um enxame de corpos pequenos, ágeis e armados com lâminas rudimentares feitas de metal negro. Seus gritos ecoavam pelo subsolo como um coro tribal enlouquecido, acompanhados do bater de pés e do tilintar das armas.

    Zath nem se moveu. Os olhos nas pontas de seus tentáculos se abriram como pétalas orgânicas, fitando os Bestiais mais próximos. Aqueles que cruzavam seu olhar congelavam no lugar; seus movimentos tornavam-se lentos e confusos, como se as próprias ordens cerebrais estivessem sendo reescritas. Um a um, caíam de joelhos, incapazes de reagir.

    Mirage, por outro lado, abriu os braços e deixou que as lâminas atravessassem seu corpo sem qualquer resistência. O metal penetrou na massa gelatinosa azulada apenas para começar a borbulhar e se dissolver, enquanto as expressões dos atacantes mudavam para pura perplexidade.

    — Ei, não me olhem assim, eu sou sensível, sabiam? — ironizou, com um falso tom ofendido, antes de girar o próprio corpo como um chicote líquido, arremessando os Coletores contra a parede com força suficiente para desorientá-los.

    KillSwitch suspirou, como se lidar com uma emboscada fosse apenas mais uma tarefa entediante. Estendeu uma das mãos, reunindo a umidade do ambiente em um vórtice aquoso giratório. Com um puxão súbito, arrastou um grupo inteiro de Coletores para perto, os corpos colidindo uns com os outros, antes de inverter a rotação.

    O vórtice explodiu para fora, arremessando os atacantes pela cratera como bonecos de pano.

    Apesar da bravura inicial, a investida dos Coletores foi completamente neutralizada. A névoa carregada pelo ambiente só ecoava um silêncio pesado, enquanto os três tripulantes permaneciam ilesos.

    — Meus manos… só eu que tô me sentindo mal por eles? — perguntou KillSwitch, olhando os pequenos Bestiais desmaiados e espalhados pelo chão.

    Zath se abaixou, um de seus tentáculos deslizando sob um Coletor inconsciente. Girou a pequena criatura, analisando cada detalhe de sua estrutura.

    — Corpos pequenos, leves… mas músculos densos, a força deles é maior do que deveria ser, considerando o peso corporal — murmurou, os olhos extras girando em múltiplos ângulos para capturar cada centímetro da anatomia. — Olhos grandes… provavelmente adaptados para visão em baixa luminosidade. E essa carapaça… resistente a calor extremo. Interessante.

    Ele tocou a carapaça que cobria parte do rosto do pequeno Bestial. O material era grosso, quase metálico, lembrando uma máscara de soldagem natural.

    — Tudo isso, e ainda assim… não usaram nada disso com eficiência em combate… estranho…

    Um som pesado interrompeu sua análise. Passos ritmados, metálicos, ecoando de dentro da névoa. Vários pares, movendo-se em perfeita sincronia.

    Zath ergueu o olhar, os tentáculos se contraindo instintivamente. Da cortina opaca, formas emergiram: vários robôs de design primitivo, mas funcional, cada um com membros reforçados e placas improvisadas de metal negro, claramente criados pelos próprios Coletores.

    — Ah… então é isso… eles não se adaptaram para lutar corpo a corpo… eles constroem quem luta por eles. — O tom de Zath misturava fascínio científico e a tensão de um novo desafio.

    Com uma rápida varredura com seus sensores, KillSwitch identificou a fonte de energia dos robôs. As leituras eram claras: ondas energéticas instáveis, impossíveis de existir sem a presença de Fragmentos de Essência.

    Cada fragmento carregava resquícios de dados dos Undeads e da própria realidade, um traço único que os Coletores haviam aproveitado. Fazia sentido o design animalesco daqueles robôs: os fragmentos forneciam não apenas energia, mas também padrões de adaptação, replicando características orgânicas e selvagens.

    — Olha só… eles são iguais a você, KillSwitch! — comentou Mirage, apontando para os robôs humanoides com traços bestiais, a voz carregada de um sarcasmo quase infantil.

    — Me comparar com esse monte de ferro sem alma é ridículo. — resmungou KillSwitch, revirando os sensores com um movimento brusco. — O meu Núcleo Mutante é muito mais complexo do que um único Fragmento de Essência mal usado.

    Os olhos artificiais dos robôs brilharam em um tom âmbar intenso, e, como se obedecessem a um único comando, todos avançaram ao mesmo tempo. As patas metálicas bateram contra o chão com um som ensurdecedor, a névoa se dispersando com a pressão de seus movimentos.

    KillSwitch suspirou fundo, ajustando a pressão de seus reservatórios de água.

    — Beleza, vocês que pediram… — murmurou.

    Um jato de água ultra pressurizada disparou de seu braço, cortando o ar como uma lâmina. O impacto foi devastador: vários robôs foram atravessados de uma só vez, seus corpos se retorcendo e se desfazendo em faíscas antes de cair ao chão, completamente inoperantes.

    Enquanto isso, Mirage se aproximou de Zath com um salto líquido, quase dançante, a máscara dourada com uma expressão de entusiasmo exagerado.

    — Viu isso? Agora que ele tá irritado, vai acabar com todos sozinho. A gente só precisa avançar com estilo!

    Zath não respondeu de imediato. Seus olhos-tentáculo percorreram a destruição deixada por KillSwitch, analisando cada movimento do engenheiro com precisão quase científica.

    Espero você lá na frente quando precisarmos de um ataque surpresa, KillSwitch.

    — Vamos, sinto a presença do Ceifador cada vez mais próxima — alertou.

    Os dois avançaram juntos, deixando KillSwitch lidar com a linha de frente, enquanto a dupla partia diretamente para abrir caminho rumo ao objetivo principal.

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