Poucas horas antes da chegada de Jasper naquela montanha, o Caçador de Ossos vagava pelo deserto montado em seu parceiro Kaern. O calor abrasador e a fuligem dançante no horizonte não o incomodavam, mas seus pensamentos sim.

    Ainda se perguntava se aquele garoto teria mesmo alguma chance de sobreviver sozinho por muito mais tempo. Parte dele acreditava que não… mas outra parte, silenciosa, começava a duvidar disso.

    O Caçador conhecia bem as Zonas Selvagens: territórios onde Undeads únicos habitavam, cada zona com seu ecossistema e líderes. O Deserto de Sonata era uma terra morta, lar apenas de Bestiais e alguns poucos Despertos ousados.

    O fato de Jasper ter sobrevivido ali tanto tempo o deixava inquieto.Mas o Caçador de Ossos não era o tipo que buscava oponentes só por orgulho. Seu prazer estava na caçada… e em ser caçado. Ainda assim, algo naquele garoto causava um incômodo persistente.

    Os pensamentos do Desperto cessaram de imediato quando seu foco mudou bruscamente. Kaern cravou as patas na areia vermelha, deslizando até parar por completo. Hesitou em dar mais um passo. Seus sentidos apurados detectaram o perigo eminente prestes a surgir.

    O único olho vermelho do Caçador de Ossos piscou algumas vezes como se ele estivesse ajustando sua visão para enxergar com clareza o que emergia no horizonte.

    Uma tempestade de areia se formava. No Deserto de Sonata, fenômenos assim eram raríssimos… o que só podia significar uma coisa.

    — Igreja Amaldiçoada… — murmurou, o tom mais sério que nunca. — o que esses babacas estão procurando nesse fim de mundo?

    Uma das enormes lanternas do navio flutuante se acendeu de repente, lançando uma luz vermelha intensa que cortou o céu em uma linha reta, escaneando o terreno abaixo. O feixe percorreu as dunas até parar exatamente sobre os dois Despertos, pairando acima deles como um olhar impiedoso vindo do alto.

    Quem quer que estivesse controlando aquela máquina infernal… já os havia notado. E o Caçador de Ossos sabia disso melhor do que ninguém. Com um meio sorriso torto, não resistiu à provocação — levantou o braço e apontou o dedo do meio direto para a nave.

    — Vamos, Kaern — ordenou estranhamente animado com a situação. — Hora de correr!

    Sem esperar resposta, o lobo metálico disparou, enquanto a luz vermelha os perseguia como um predador faminto.

    O ciclope ósseo sabia que sua reputação entre aquele grupo de Undeads era péssima, mas não a ponto de justificarem o uso de tantos recursos para caçá-lo no meio daquele deserto. Algo estava errado.

    Não demorou para que ele começasse a conectar os pontos… e percebesse que o verdadeiro alvo daquela operação não era ele. Sua caçada anterior pelo Vulto Negro havia sido motivada por boatos de que a Igreja Amaldiçoada estava atrás do garoto, e isso, por algum motivo, despertara sua curiosidade.

    — Não sei o que você fez, garoto… mas se eles estão atrás de você, é melhor continuar fugindo — disse com um riso áspero, quase divertido. — Porque eu tô trazendo esse problema direto pra você lidar.

    O Caçador de Ossos sorriu de canto, já tramando o plano perfeito para se livrar da encrenca… e, de quebra, ver como o Vulto Negro lidaria com a situação.

    Entre corredores estreitos, com paredes cheias de irregularidades, como se o metal tivesse sido colocado por cima de algo já existente na estrutura interior da embarcação, uma figura feminina caminhava de forma saltitante e despreocupada.

    — Finalmente, algo divertido está para acontecer… Já estava cansada desse deserto escaldante — disse, imaginando que, enfim, haviam encontrado o que lhes fora ordenado a achar.

    Os passos da criatura eram leves e rítmicos, como se ela estivesse dançando o tempo todo. Pequenos sinos pendiam das pontas do que parecia ser um elmo estilizado de bobo da corte, mas que se unia à sua cabeça de forma tão natural que mais parecia uma extensão do próprio corpo, e talvez fosse.

    O torso era revestido por uma armadura fina assimétrica de metal vermelho, com recortes pontiagudos e sobreposições de placas adornadas por pequenos detalhes dourados.

    Esse visual contrastava com o revestimento azul-escuro justo ao corpo, exibindo um padrão de losangos dourados que lembrava uma malha colada à pele.

    Após mais algum tempo de caminhada animada, ela parou em frente à porta da cabine do piloto e, em vez de simplesmente abri-la, preferiu irritar um pouco seu colega.

    Começou a dar pequenas batidas incessantes na superfície metálica, criando um barulho estridente, como se estivesse martelando uma bigorna.

    — Zath! Zath! O motor explodiu de novo! — berrou, com sua voz ecoando por toda a nave. — Hahaha… Parece que essa já não funciona mais com você. — disse, ao notar que o piloto não demonstrou qualquer reação diante da provocação.

    A porta de aço escuro cedeu sob o impacto violento do comandante, desprendendo-se das ferragens e voando pelo corredor como uma bala. Mirage, a poucos centímetros da entrada, desviou-se num movimento quase impossível, flexionando os joelhos para trás até que a cabeça quase tocasse o chão.

    A porta passou raspando seu rosto mascarado, deixando um rastro de faíscas no metal.

    — Já estou cansado de avisar você, Mirage, que não deve me chamar pelo nome! Dentro desta nave, eu sou o comandante — disse uma voz rouca e irritada, que pôde ser ouvida à distância, vinda da sala de comando. — Se continuar com essa insolência, vou fritar seu cérebro, palhaça de circo idiota!

    Mirage abriu um largo sorriso por debaixo da máscara dourada, esculpida com um rosto falso. A personalidade rabugenta e autoritária de Zath não a incomodava nem um pouco. Após tantos anos de convivência, aquilo havia se tornado quase um charme aos olhos dela.

    Ao se reerguer viu vários olhos conectados a tentáculos arroxeados surgindo da entrada destruída da sala de comando, encarando-a com um olhar matador. Na perspectiva mirabolante dela, aquilo era praticamente um convite para invadir a área de trabalho de Zath.

    Adentrando a sala de comando, a enorme esfera holográfica flutuante no centro do local chamava a atenção, cercada pelos olhos que a rodeavam, todos focados nas imagens transmitidas em tempo real.

    O comandante Zath utilizava sua visão única para analisar cada detalhe com precisão, sendo o formato esférico o mais eficiente para sua percepção.

    Ele também era um humanoide, assim como Mirage. Sua cabeça era envolta por algo entre carne e metal, em tons de vermelho arroxeado. No centro da testa, um único olho vertical observava tudo com atenção monstruosa.

    Abaixo desse olho, uma fenda rasgada simulava uma boca, com a pele branca esticada ao limite, mas ainda assim resistindo, como se fosse cola seca prestes a romper.

    — Prepare-se, Mirage… Nosso alvo apareceu no radar. Realmente foi como mestre, Skarneth nos contou… Esse Vulto Negro fez uma matança generalizada por onde passou neste deserto — declarou, com o foco total na imagem do radar verde detectando a movimentação de 3 criaturas com uma distancia curta entre elas.

    Mirage caminhou até Zath, desviando de alguns fios soltos emaranhados no chão, conectados aos sistemas da nave. Junto dela, os tentáculos com olhos que emergiam das costas do comandante a seguiram, mudando de uma composição quase orgânica para algo semelhante a tecido.

    Transformavam-se em uma capa feita de tiras uniformes e arroxeadas para Zath, e os olhos se uniam a outras partes do corpo, ombros, peitoral e os cotovelos, onde brilhavam como lanternas naturais.

    — Espera… esse não é o tal Caçador de Ossos? Caramba, ele é mais feio do que eu pensava hehe! — Mirage gargalhou, apontando na direção do ciclope ósseo.

    Zath suspirou, tentando não se descontrolar com a falta de foco de sua companheira de viagem. Às vezes, tinha vontade de obliterá-la, mas o fato de ela também ser importante para o funcionamento geral da nave continha os impulsos destrutivos do Desperto.

    — Sim… O próprio. Talvez o mestre Skarneth nos dê alguma recompensa bônus por trazê-lo junto. Ouvi dizer que ele também tem certa inimizade com a Igreja Amaldiçoada. — respondeu, querendo extrair o máximo de benefícios após dedicar tanto tempo àquela caçada.

    — Mas lembre-se: nosso alvo principal é o Vulto Negro temos que captura-lo a todo custo pela nossa liberdade! — exclamou, com seus varios olhos espalhados brilhando com tons roxos intensos.

    Usando seus tentáculos, o comandante acionou uma alavanca no painel de comando da nave, que reagiu com tremores intensos e “espasmos musculares”, como se o núcleo da embarcação estivesse se debatendo de forma dolorosa.

    Talvez aquilo que era usado como meio de locomoção não fosse tão mecânico quanto aparentava à primeira vista.

    — Uhuuuuuu! Agora a diversão vai começar de verdade. Depois de tantos meses viajando, nossa Dama da Ruína já estava começando a enferrujar. — Mirage, comemorou, sentindo saudades de sua amiga peculiar adormecida.

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