Parado diante de uma elevação montanhosa no Deserto de Sonata, Jasper questionava a necessidade de subir por aquele terreno íngreme. Talvez fosse melhor apenas dar a volta, mesmo que isso custasse mais tempo e esforço.

    Ao olhar para cima, observando o quão alto poderia chegar no topo daquele lugar, sentia-se cada vez mais tentado a escalá-lo. A ideia de estar perto do céu lhe trazia uma sensação de liberdade que jamais experimentara naquele lugar assombrado por aberrações.

    Então, assim o fez, agarrando com força cada mínima lacuna ou fresta para se apoiar e continuar subindo cada vez mais alto. As luvas de sua armadura o ajudavam no processo, graças à estranha aderência que tinham ao seu corpo.

    Em pouco tempo, conseguiu se acostumar aos movimentos necessários para manter a sustentação, passando a executar pequenos saltos para acelerar a subida, algo que seria impossível sem seu equilíbrio natural impecável.

    Firmando-se sobre um pedaço de rocha, Jasper percebeu de imediato as estranhas vibrações que percorriam a superfície, só poderiam significar uma coisa.

    De repente, um dos abutres que avistara mais cedo surgiu, perfurando a pedra com o bico giratório exatamente no ponto onde ele se apoiava.

    Jasper saltou para o lado às pressas, mal evitando o avanço da criatura. Ainda assim, uma das longas asas afiadas golpeou seu elmo com força, fazendo-o vacilar e escorregar pela beira da rocha.

    Despencando do penhasco, tentou agarrar qualquer saliência que o impedisse de se espatifar contra o solo, que parecia se aproximar a cada segundo. Num ato desesperado, cravou as mãos na parede rochosa, e suas luvas faiscaram ao atritar contra a pedra áspera.

    Seu estômago se revirou e, por um instante, acreditou que tudo terminaria ali, reduzido a um cadáver seco, esmagado contra o deserto.

    Fora de seu conhecimento, as pontas dos dedos de sua armadura orgânica se alongaram em garras, cravando-se na rocha e freando a queda pouco a pouco, até que finalmente conseguiu parar por completo.

    O que é isso!? Espera… é melhor continuar subindo antes que mais desses abutres malditos surjam para me atrapalhar.

    Ainda com o coração acelerado, retomou a escalada, agora muito mais veloz graças às garras recém-reveladas. Sentia como se fossem parte de seu corpo, embora, no fundo, soubesse, ou talvez apenas desejasse, que não fossem.

    O silêncio no topo era quase delirante. Jasper se deixou cair no chão, exausto e ofegante, não apenas pelo esforço físico, mas pela proximidade sufocante da morte.

    Não era a primeira vez que enfrentava tal situação, e ainda assim, a sensação continuava insuportável.

    Tremendo, olhou para as próprias mãos e se deparou com a ‘mutação’ que surgira para salvá-lo no último momento.

    — Será que estou virando um monstro também? — murmurou, com a voz embargada, como se o pensamento lhe corroesse por dentro. — Não, não… por favor, não.

    O medo voltava a se manifestar, pesado no coração do garoto. Por mais que tentasse afogar aquele sentimento, o desespero sempre retornava.

    Sabia que, se removesse a armadura, não conseguiria sobreviver naquele mundo hostil, mas continuar a usá-la também significava perder, pouco a pouco, aquilo que ainda o ancorava.

    Um estalo latejante explodiu dentro de sua cabeça, tão súbito que Jasper levou a mão ao elmo, tentando conter a dor que se espalhava como navalhas por trás dos olhos.

    Uma voz grave sussurrava em sua mente, baixa e arrastada, reverberando como se emergisse das profundezas de um abismo sem fim.

    Mais fundo… venha mais fundo…

    Jasper arfou, apertando a lateral do elmo como se pudesse esmagar o som dentro do crânio. Mas a voz não cessava, repetindo as mesmas palavras de forma incessante.

    Mesmo tentando compreender o que aquela criatura, entidade ou alucinação dizia, tudo era confuso demais. Ele precisava de respostas concretas naquele instante.

    — O que eu devo fazer? — murmurou, desamparado. — Tudo é tão confuso… só me responda…

    O elmo piscou em tons azulados, pulsando como um coração instável. Por um instante, aquele brilho frio pareceu ganhar força, uma promessa de algo além.

    Mas logo se apagou, devorado pela tonalidade escura habitual, como se a escuridão não permitisse que a luz permanecesse.

    Da mesma forma, a mensagem que invadia a mente do garoto se dissolveu, sumindo como se jamais tivesse existido.

    Jasper permaneceu imóvel por alguns instantes, deitado sobre a pedra quente. Sua consciência parecia esvaziada, como se o medo e o desespero tivessem sido drenados, restando apenas um corpo oco.

    A respiração se acalmava, mas por dentro já não havia forças para sentir nada.

    Acima, o abutre que o havia lançado à beira da morte cortava o céu. O Vulto Negro fixou os olhos na criatura, e por um momento, uma raiva silenciosa o invadiu.

    Queria saltar contra ela, arrancar suas asas, esmagar seu bico giratório.

    Mas, em vez disso, deixou-se hipnotizar pela imagem: a ave dominava os ventos com facilidade, cada batida de suas asas a elevando mais alto, como se nada pudesse detê-la.

    Devagar, Jasper se ergueu, acompanhando o voo com os olhos azuis que brilhavam com uma centelha renovada. Sem perceber, as garras em suas mãos se retraíram, derretendo de volta à forma natural das luvas.

    A criatura desapareceu na distância, até mergulhar em um rasante no oceano de areia, engolida pelo próprio deserto.

    Admirando aquela vista única, sua mente foi se aquietando pouco a pouco, até que um novo detalhe surgiu no horizonte, despertando nele uma inesperada onda de expectativa.

    A vastidão desértica não era infinita. No horizonte, a realidade se quebrava em um ponto instável, um “bug” que ondulava como uma cortina de luzes multicoloridas.

    Era a Linha Fractal: a passagem para uma nova Zona Selvagem.

    Se avançasse apenas mais alguns quilômetros, estaria livre daquele inferno de areia. Não fazia ideia do que o aguardava além da barreira, mas, ainda assim, qualquer destino lhe parecia melhor do que continuar preso no Deserto de Sonata.

    Além disso, estaria um pouco mais próximo de seu destino final, guiado pelo Cruzeiro do Sul.

    Porém, antes que pudesse dar o primeiro passo em direção ao futuro que tanto desejava, a montanha inteira estremeceu em múltiplos pontos ao mesmo tempo.

    Das fendas nas rochas, uma revoada de abutres bestiais irrompeu, escapando desesperados na mesma direção tomada pelo primeiro.

    Sem compreender o motivo, o mundo pareceu ruir de repente quando inúmeros estrondos ecoaram atrás dele.

    Ao se virar, deparou-se com uma visão que sua mente inocente só conseguiu traduzir como uma baleia de ferro voadora, confundindo o casco metálico da nave com a pele de um ser vivo.

    A carcaça de metal flutuante avançava em velocidade anormal, cuspindo feixes de energia em todas as direções, como se tivesse nascido apenas para varrer do mapa qualquer coisa que ousasse atravessar seu caminho.

    Mas é claro… justo agora que a saída apareceu, aparece também um maldito Leviatã de ferro.

    Preparando-se para descer da montanha e correr na maior velocidade que pudesse, Jasper congelou por um instante ao reconhecer duas figuras familiares avançando junto da embarcação: o Caçador de Ossos e Kaern.

    O lobo metálico corria em ritmo estranho, como se a couraça negra estremecesse a cada passo; os segmentos rubros de seu corpo pulsavam numa cadência irregular, revelando hesitação.

    Talvez não quisesse arrastar o garoto para aquele caos, mas não havia escolha.

    E foi nesse instante que uma lembrança atravessou sua mente, o que Kaern havia feito antes de os três se separarem.

    E se ele memorizou meu cheiro para que pudesse pedir ajuda?

    Deu alguns passos trêmulos para trás, mas logo parou, incapaz de prosseguir.

    Droga, eu deveria correr. Era só isso que eu fazia. Mas por que diabos me sinto preso aqui em cima?

    Entre a promessa de liberdade, longe das areias sufocantes do Deserto de Sonata, e o vínculo frágil, mas real, com as únicas criaturas com quem tivera algum contato, e por quem, contra toda lógica, cultivara um lampejo de amizade, o Vulto Negro vacilava, incapaz de escolher.

    Cada segundo de hesitação era um grão de areia a mais caindo na ampulheta de seu destino, trazendo o fim cada vez mais perto.

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