O Caçador de Ossos seguia fugindo da embarcação flutuante junto de Kaern. Seu plano de fuga improvisado era simples: atrair o foco da Igreja Amaldiçoada para o Vulto Negro, enquanto ele próprio escapava rumo à próxima Zona Selvagem o mais rápido possível.

    Já que objetos grandes demoravam mais para atravessar as fendas dimensionais, ele só precisava tomar cuidado para não ser morto no caminho, mas essa tarefa estava se tornando cada vez mais difícil, com a Dama da Ruína sempre em sua cola.

    Virando-se por um breve instante para conferir o que se aproximava cada vez mais, o Caçador percebeu que não se tratava apenas de um navio voador de estrutura pontiaguda: aquilo estava realmente vivo.

    Isso se tornou ainda mais evidente quando a proa da embarcação começou a se rasgar, numa mistura grotesca de metal retorcido e sussurros agudos.

    Em seguida, um rugido agudo e gutural — como o de uma fera ancestral adormecida há muitos anos — lançou grandes quantidades de areia e rochas inteiras para o alto, criando um cenário ainda mais devastado naquele deserto.

    No interior do que deveria ser a garganta da criatura, havia um canhão enorme, acumulando lentamente toda a energia radioativa que havia absorvido.

    Mesmo que, em teoria, o Miasma fosse uma fonte inesgotável, fluindo das Linhas Fractais para as Zonas Selvagens, sua abundância ainda podia ser comprometida pelo consumo incessante dos próprios Undeads que dele dependiam.

    Por isso, a Dama da Ruína não era uma ameaça apenas para o Caçador de Ossos, Kaern ou Jasper, mas para todos os Bestiais que habitavam sob as areias do Deserto de Sonata

    Com sua experiência, o ciclope ósseo sabia que seria insensato permanecer naquela dimensão com uma besta daquelas à solta. Ainda assim, o instinto de caçador queimava dentro dele, quase suplicando para que se arriscasse em um confronto direto.

    Sem tempo para pensar, o Caçador de Ossos percebeu várias esferas maciças envoltas em fumaça negra rasgando o ar em alta velocidade em sua direção e na de Kaern.

    Eram diferentes dos feixes de energia disparados antes, mas ainda assim letais.

    O lobo metálico reagiu ao ataque iminente com a mesma velocidade com que ele avançava, movendo-se em zigue-zague pelo terreno para reduzir as chances de serem atingidos.

    Sendo lançado de um lado para o outro, tanto pela movimentação brusca de seu lobo quanto pelas ondas de choque provocadas pelas explosões, o Caçador se via cada vez mais irritado.

    Mas que droga… esses desgraçados não dão descanso! Tudo bem, eu só preciso continuar até achar aquele maldito Vulto Negro. Depois, não será mais problema meu.

    No fim, nenhum dos disparos atingiu de fato os dois Despertos, o que só instigou ainda mais raiva no coração do comandante Zath, que permanecia imóvel na sala de comando da Dama da Ruína, com seus múltiplos olhos cravados nas imagens projetadas ao redor da esfera holográfica central.

    Se a situação continuasse assim, as chances de capturar o Vulto Negro diminuiriam drasticamente. E, diferente do ciclope ósseo traidor, ele não podia simplesmente matá-lo.

    As ordens eram claras e inegociáveis: o Vulto Negro deveria ser capturado vivo.

    — Malditos vermes… estão brincando demais com a minha paciência… — resmungou, sua voz abafada pelo ranger das placas metálicas que se comprimiam com raiva.

    Num movimento rápido, ele girou parte do corpo, voltando a atenção, e alguns tentáculos, para Mirage, que assistia à cena com entusiasmo típico de quem vê um espetáculo.

    — Quando pretende começar a acertá-los, Mirage? Essa sua mira deplorável está comprometendo a missão! — rosnou, as palavras carregadas de veneno, enquanto seus olhos a atravessavam como lanças de acusação.

    Mirage, como sempre, permaneceu indiferente. Girando nos calcanhares com a graça de uma dança, inclinou a cabeça de lado, fazendo os sinos de sua máscara tilintarem provocativamente.

    — Ah, comandante… — respondeu, com voz melosa e debochada, levando a mão ao peito em um falso gesto de ofensa — Você sabe que não é de propósito.

    Estalou os dedos com um sorriso por trás da máscara dourada.

    — Mas, já que foi com tanto carinho… acho que está na hora de mostrar um pouco mais de “precisão artística” — disse, abrindo os braços teatralmente, enquanto suas armas começavam a carregar o próximo tiro.

    Novamente, um feixe de energia concentrado partiu na direção dos Despertos, um raio sólido de pura destruição avançando em linha reta com velocidade absurda.

    O Caçador de Ossos viu aquilo vindo como se o tempo desacelerasse ao seu redor. Por um instante, não havia som, vento ou o barulho da areia… só o brilho mortal daquela linha de energia.

    Mas, no exato momento antes da morte, o lobo freou de forma abrupta, lançando seu líder para longe e livrando-o da explosão.

    O mesmo, porém, não podia ser dito de Kaern, que foi atingido em cheio pelo feixe; a energia destrutiva percorreu todo o seu corpo. A explosão foi violenta, levantando uma nuvem colossal de poeira e destroços, e abrindo uma cratera de fogo e rochas entre eles.

    O ciclope ósseo girou no ar durante a queda, preparando-se para colidir contra o solo. Sabia que, naquela situação, não podia se dar ao luxo de baixar a guarda; perder sua postura de combate seria inviável.

    Auxiliado pelos espinhos presos aos pés, conseguiu se estabilizar já no primeiro contato com o solo, seguindo em disparada rumo à saída do Deserto de Sonata, aparentando indiferença pelo que acabara de acontecer com seu parceiro.

    Droga… odeio essa sensação de areia entre minhas placas ósseas. Uma pena não poder voltar para a Zona anterior; mas uma floresta também não é tão ruim.

    Com sua visão de longa distância aprimorada, o Undead pôde notar uma pequena silhueta no topo de uma montanha mais à frente.

    Ao focar seu único olho, ampliou ainda mais seu alcance, enxergando com clareza a figura de Jasper.

    Agora, só precisava contornar a montanha e deixar que a Igreja direcionasse sua atenção para o verdadeiro alvo. Por um instante, ouviu o som das turbinas daquela carcaça de metal voadora mudando de direção.

    Mas, ao dar mais um passo rumo à saída, seus instintos dispararam em alerta, enviando um arrepio sinistro pelos músculos e fazendo vibrar as placas ósseas sobre ele.

    Ao olhar por cima do ombro, percebeu uma fumaça escura se aproximando. Conhecendo bem a Igreja Amaldiçoada, sabia que aquilo não passava de mais uma de suas artimanhas.

    Ela escapava lentamente dos restos das esferas metálicas, que haviam se desfeito após o impacto contra o solo.

    A princípio, parecia apenas um subproduto da explosão, mas, aos poucos, começou a se condensar, ganhando densidade e forma. O ar ao redor tornou-se mais pesado, como se a própria atmosfera estivesse sendo sugada.

    Os contornos escuros se moldavam em algo alto, esguio e animalesco, com membros alongados e olhos luminosos espalhados pelo corpo, como rachaduras incandescentes.

    Criaturas que lembravam artrópodes gigantes começaram a emergir.

    Primeiro, formaram-se cabeças protegidas por carapaças semelhantes a capacetes naturais, com fendas estreitas onde olhos sombrios espreitavam e mandíbulas monstruosas prontas para dilacerar.

    Logo abaixo, um torso alongado era revestido por um exoesqueleto segmentado, reforçado e grotesco. Múltiplas pernas longas, finas e afiadas sustentavam os corpos, prontas para cortar qualquer coisa.

    — Olha só… soltaram os bichinhos para a festa — murmurou o ciclope ósseo, abrindo um sorriso torto com dentes expostos.

    Esse era um dos piores defeitos do Caçador de Ossos: se visse algum Bestial que julgasse interessante o suficiente, não importava o quanto tentasse conter a vontade assassina, ele teria que caçar.

    — Eu não gosto de ser forçado a lutar… mas, já que trouxeram presas tão valiosas, acho justo retribuir, eliminando cada uma da forma mais brutal possível.

    O Desperto parou por um instante, o olho focado nas criaturas que avançavam, analisando suas características físicas para responder ao ataque da maneira mais eficiente possível.

    De início, lançou duas adagas de ossos retiradas das juntas do braço, que acertaram em cheio os olhos estreitos do primeiro artrópode que se aproximava.

    — GRRRAAKH-KZZZKHHHRRR!!! — a criatura soltou um lamento doloroso enquanto caía, sem visão alguma do inimigo ao seu lado.

    As várias patas do Bestial se debatiam desesperadamente no solo arenoso, tentando recuperar o equilíbrio. Infelizmente para ele, o Caçador nunca permitiria que isso acontecesse.

    Com um rugido abafado, um martelo de guerra feito de ossos desceu sobre o crânio do artrópode. O golpe esmagou a criatura com um estalo seco, seguido pelo estilhaçar da couraça e pelo derramamento viscoso de fluidos esverdeados.

    Os membros da aberração tremeram em convulsão antes de se estenderem, imóveis, em meio à poeira levantada pelo impacto.

    Realmente, armas contundentes são ótimas contra esse nível de proteção, mas… moldar algo tão grande de repente é ruim pensou, enquanto erguia a arma, feita a partir da carapaça óssea de seus braços.

    Contraindo os trapézios rígidos, onde suas lanças de osso estavam cravadas, as hastes começaram a ranger, vibrando como se fossem puxadas de volta por raízes invisíveis.

    O som era áspero, um misto de fratura e sucção, enquanto as lâminas se desfaziam em lascas, refluindo sob a pele.

    Veios brancos correram pelo corpo até alcançarem os braços, onde a carapaça começava a se recompor em camadas, como placas de marfim emergindo de dentro da carne.

    Num instante, os dois membros estavam novamente recobertos por aquela couraça densa e viva, pulsando em sintonia com sua respiração.

    As marcas nos ombros se fecharam lentamente, sem sangue, apenas um brilho úmido que logo se apagou.

    Voltando a atenção para as criaturas, o cíclope ósseo notou que, ao verem a forma como seu aliado foi morto, elas desistiram de atacar diretamente e se dispersaram ao redor, tentando cercá-lo.

    — Parece que não são tão burros quanto eu pensei… — O sorriso torto do Caçador se alargou ao presenciar aquela cena. — Maravilha, vocês só deixaram as coisas ainda mais interessantes.

    Como uma onda de pesadelo, os Bestiais retomaram a investida, suas patas grossas afundando na areia enquanto olhos incandescentes brilhavam com fúria predatória, prontos para o ataque mortal que se anunciava a cada instante.

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