Do topo da montanha à frente, Jasper presenciava a cena abaixo, atônito. Seu único amigo havia acabado de morrer, e ele não pôde fazer nada. A sensação de impotência o corroía por dentro, algo familiar e detestável.

    Talvez, se tivesse agido antes, as coisas pudessem ter sido diferentes. Ou, se tivesse sangue frio para fugir, ao menos não carregaria aquela imagem na mente.

    Seus instintos primitivos imploravam para que abandonasse tudo e fugisse para salvar a própria vida. Mas, ao se lembrar da gentileza de Kaern e da ajuda, mesmo que ranzinza, do Caçador de Ossos, tomou sua decisão.

    Eu sempre convivi com a morte e tive medo… não quero me arriscar, mas sinto que, se não conseguir superar esse desespero, nunca vou alcançar a vida melhor que tanto almejo.

    Essa era a verdade na qual ele escolheu acreditar: mesmo que atravessasse a Linha Fractal, tudo o que encontraria seriam apenas perigos iguais àquele.

    Estava na hora de agir, antes que aquilo se tornasse seu padrão de comportamento.

    Movido por uma vontade vinda de suas origens, Jasper saltou do penhasco sem hesitar, calculando mentalmente a distância e o impulso necessários.

    Ignorando o medo que o paralisava, arriscou o pouco que tinha, confiando em suas habilidades para alcançar um objetivo menor que o original, mas ainda assim importante.

    Durante o breve instante no ar, teve certeza de que falharia. Porém, algo estava diferente: sua percepção especial estava mais aguçada do que nunca.

    Os quinze metros ao redor, onde conseguia captar até a menor alteração, pareciam diferentes.

    Ele sentia as correntes de vento movendo-se sutilmente, quase coordenadas, como se o próprio ar conspirasse para sustentá-lo. E Jasper compreendia o motivo daquilo.

    A asa… pelo visto, foi uma boa escolha não ter devorado aquele abutre.

    Pela primeira vez, manipulava seu Sentido do Vento de forma tão avançada. Com a ajuda da asa, conseguia permanecer em um breve estado de voo; uma sensação de liberdade nostálgica percorreu-lhe a mente.

    Se pudesse, viveria naquele estado para sempre, solto pelos céus.

    Mas logo a realidade o puxou de volta: começou a despencar. A ausência de uma segunda parte causava desequilíbrio, reduzindo sua sustentação.

    — Droga, droga, droga — repetiu, buscando desesperadamente uma solução.

    Lá embaixo, o mundo parecia prestes a se despedaçar.

    O solo do deserto estava tomado por crateras fumegantes; colunas de poeira subiam aos céus como torres cinzentas, e as sombras dos abutres riscavam as dunas deformadas pelo calor e pelas explosões.

    No centro do caos, Jasper avistou seu alvo: o cíclope ósseo, lutando contra os Bestiais com prazer visível, refletido no pulsar das placas sobre o corpo.

    Os artrópodes atacavam em conjunto, aproveitando as brechas geradas pelo longo balanço de seu martelo.

    E o maior problema não era esse, e sim que Jasper estava prestes a colidir com ele, um projétil humano em queda livre.

    A única solução que conseguiu bolar naquele momento era fazer o oposto do que vinha tentando: inverter o fluxo das correntes ao redor, tentando frear a queda.

    Sem saber do que estava prestes a acontecer, o Caçador esmagava outro artrópode, fazendo os restos voarem pelos ares, ao mesmo tempo em que sentia um Bestial traiçoeiro perfurar seus músculos pelas laterais.

    A dor parecia excruciante, e era de fato, mas não o suficiente para afetar alguém como ele. No entanto, uma sensação de perigo iminente se aproximando o alertou.

    — Hã? — murmurou, antes de ser atingido.

    CRASH!

    Jasper colidiu a toda velocidade contra os dois, rolando entre a areia e fragmentos de ossos. A pancada gerou faíscas entre as placas da armadura do garoto e o corpo ósseo do cíclope, enquanto a carapaça do artrópode já estava em pedaços.

    — Mas que porra! — o Caçador se ergueu tossindo, com a expressão marcada por dor, raiva e surpresa.

    Seu crânio rachado estalava levemente, mas o único olho já estava fixo em Jasper, caído de bruços e ofegante.

    O garoto virou-se lentamente, encarando o Desperto com um olhar inexpressivo, mas com um leve sorriso por baixo do elmo curvado.

    — Vim retribuir o favor de antes — disse, ofegante. — Algum problema?

    Você me ajudaria muito mais se tivesse fugido, imbecil! pensou irritado. Ainda assim, aquela atitude inesperada o deixou intrigado.

    O silêncio tenso entre eles foi quebrado apenas pelos gritos distantes das feras e pelo rugido metálico da Dama da Ruína se aproximando.

    — Sim. Primeiro: você é uma péssima isca! — bufou, erguendo o cabo do seu martelo de ossos. — Segundo: agora nós dois estamos com um pé na cova.

    A resposta de Jasper veio com ação: um corte limpo que se transformou em uma lâmina de vento, passando de raspão pelo Caçador, mas abrindo o torso de outra criatura bestial que se aproximava deles.

    O cíclope ósseo analisou aquilo com surpresa, percebendo que o Vulto Negro havia evoluído bastante em pouquíssimo tempo, o que fez um sorriso torto surgir entre seus dentes pontiagudos.

    — Bem… se for pra morrer, pelo menos vou levar você pro inferno junto comigo — provocou, enquanto fatiava mais alguns inimigos que se aproximavam.

    — Interessante… qual o nome dessa técnica? — perguntou, enquanto desmanchava sua arma pesada e a transformava em uma alabarda de ossos.

    — Eu não pensei nisso… — admitiu, franzindo a testa por um instante — que tal ‘Corte da Ventania’?

    Após um riso abafado, o cíclope ósseo girou sua alabarda. A rapidez do movimento fez a lâmina de ossos parecer um esboço opaco aos olhos de quem a visse por um instante.

    — Quanta criatividade. — ironizou, a voz ecoando pelo campo de batalha enquanto avançava.

    Com uma estocada precisa, destruiu diretamente o núcleo de uma das criaturas, fazendo-a colapsar.

    Do outro lado, Jasper desferia vários Cortes da Ventania, superando em muito seu limite anterior, quando não era capaz de utilizá-los mais de cinco vezes consecutivas.

    Os grunhidos estrangulados dos Bestiais ecoaram pelo deserto quando a tempestade de lâminas de vento os alcançou. As correntes cortantes atravessavam carapaças, patas e mandíbulas sem piedade.

    Em poucos instantes, tudo o que restou foram pedaços de carne e osso, lançados ao ar apenas para se desfazerem em nuvens de fumaça negra antes de tocar o chão.

    Entretanto, aquele não era o fim. Atravessando a névoa negra deixada pela morte dos soldados da Dama da Ruína, um feixe de energia rasgava em direção a Jasper, que sentiu o ar queimar através de seu Sentido do Vento.

    Uma silhueta sombria, envolta por relâmpagos rubros, surgiu no último instante para interceptar o ataque. Não era um inimigo, mas sim o lobo metálico: Kaern.

    Seus segmentos reluziam em tons mutáveis e, dentro de sua estrutura, o núcleo que sustentava seu corpo mutante absorvia o feixe, convertendo-o em poder.

    — Já estava na hora… — murmurou o líder do Undead lupino.

    Jasper mal teve tempo de processar o retorno do aliado, forçado a recuar diante do vapor fumegante que ele liberava ao conter tamanha energia acumulada.

    O rugido de Kaern ecoou num estrondo, carregando uma esfera vermelha gigante de pura radiação, que atravessou parte do escudo energético azulado que a envolvia, rachando-o como vidro cristalino.

    Mirage, que assistia tudo relaxada com os pés sobre a mesa, foi lançada contra a parede, ricocheteando como uma bola de borracha descontrolada.

    — Aí, meus ossinhos de estimação! Quem foi o infeliz que ligou o modo terremoto?!

    Zath precisou usar vários tentáculos para se manter firme. Até então, mantinha a raiva sob controle, mas, ao ver sua criação sendo atacada, perdeu completamente a calma.

    — Ativar o canhão principal. — A ordem veio com uma calma enganosa, prenunciando uma explosão de fúria.

    — Espera aí, chefinho… e o lance de capturar o Vulto Negro vivo? Se atirarmos agora, ele vai morrer, e aquele Lobo Negro deve estar quase sem energia depois daquele ataque.

    — Dane-se o Vulto Negro, dane-se a missão, dane-se a Igreja Amaldiçoada e aquele babaca do Skarneth! Eu disse: ATIVAR O CANHÃO PRINCIPAL!

    A própria embarcação reagiu, liberando toda a energia de seu Núcleo.

    Placas espessas se abriram, revelando o canhão principal: uma fenda monstruosa onde a energia se acumulava em espirais violentas.

    As cores oscilavam entre o violeta corrosivo, dourado febril e azul profundo, girando ao redor de um núcleo vivo, uma esfera pulsante de carne, metal e ódio condensado.

    O Caçador de Ossos sabia que, se não agisse, seria o fim. Saltou sobre Kaern, pronto para atacar, mas o lobo não se moveu.

    — Tá de sacanagem? Numa hora dessas você vai travar?!

    Com um sorriso torto no rosto ossudo, o cíclope entendeu: Kaern não partiria sem Jasper. Então agarrou o braço do garoto e o puxou para cima do Undead lupino.

    — Me agradeça depois, garoto… se é que estaremos vivos até lá. — Soltou uma gargalhada histérica enquanto o lobo acelerava com tudo que tinha.

    O canhão vomitou um feixe de destruição pura, largo como um rio e veloz como um raio. A rajada cortou o céu como papel velho, deixando um rastro incandescente.

    A explosão inicial engoliu a paisagem com uma onda brutal, levantando dunas inteiras e pulverizando rochas milenares. O céu se pintou de branco e laranja, como se uma aurora tivesse nascido à força no coração do deserto.

    Nenhum sinal dos três fugitivos podia ser detectado pelo radar da Dama da Ruína.

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