Capítulo 24 (Parte 1) – Assegurado
As pessoas nunca o entenderam, e em resposta, ele nunca entendeu as pessoas. Essa mútua estranheza sempre foi o seu escudo, sua barreria. Achou que isso o protegeria para sempre. Achou que, contanto que nunca o entendessem, estaria eternamente seguro.
Estava errado.
Estava errado em achar que isso o salvaria. Estava errado em achar que isso salvaria as pessoas ao seu redor. Mais errado ainda em achar que essa fortaleza de estranheza iria deixar aqueles que importavam próximos a eles.
Ele pode estar errado em tudo, mas havia algo que se manteria certo: ele jamais seria entendido. Nem mesmo por si próprio. Nem mesmo por quem seria.
. . .
Um arrepio foi a primeira coisa que sentiu, e então, se fez a dor. Os olhos se abriram, embaçados e cegados pela luz branca. Sua cabeça estava uma bagunça e pesada como uma bola de boliche. Tentava olhar ao redor da sala, e o máximo que conseguia era distinguir algumas cores e formatos, todos os detalhes lhe escapavam.
Levou um tempo para sentir o cheiro forte de álcool e o gosto ruim da boca, de quando não se come por muito tempo. A dor também não parava, sentia em cada fio de pelo, da ponta dos dedos e dos pés até o pescoço, como se fosse perfurado.
A audição foi a última dos sentidos que recuperou. Foi alvejado por sons de maquinários, sons de beep e injetores.
Ficou assim por minutos, horas, talvez; sentindo o súbito balançar, uma sutil vibração pelo seu corpo que fazia o estômago ir pra cima e pra baixo. Quando um dos doutores chegou e notou que ele estava acordado, fez uma gritaria:
— Ele acordou! — E saiu correndo.
Uma multidão se juntou naquele quarto. Enfermeiras e médicos, todos em volta de sua cama, o olhando, cochichando. Foi apenas um, porém, o com aparência mais velha, que decidiu falar algo.
— Está consciente? Consegue me ouvir?
Ele balançou levemente a cabeça, com dificuldade para sustentar o peso. O médico pareceu satisfeito com aquilo.
— Ótimo. Seus sinais vitais me parecem bons, dada a situação… Providenciem um pouco de estimulante neurológico! É importante mantermos ele consciente. — Dada a ordem, as enfermeiras pegaram frascos e as puseram numa das máquinas. Ele logo sentiu o líquido entrando no seu corpo, sua mente começou a ficar mais acelerada.
O colocaram para sentar na cama, ainda coberto por um fino cobertor branco. Um projetor holográfico apareceu em frente a cama, com imagens do corpo humano, com um zoom na cabeça.
— Normalmente, eu deveria fazer alguns exames antes de explicar sua situação… Mas eu imagino que o seu senso de identidade e memória estejam um tanto… confusos. Você sofreu um ataque… Um bem feio. — Quando disse isso, alguns estilhaços de metal apareceram na imagem holográfica, perfurando o crânio. — Sete estilhaços de metal de alguns milímetros perfuraram seu crânio. Atingindo praticamente todas as partes do seu cérebro, principalmente o lobo frontal.
Um incômodo. Ele sentiu apenas um incômodo ao ouvir isso. Nada mais.
O médico continuou:
— Retiramos esses estilhaços, é claro. E tivemos que mover o seu cérebro para garantir que não haveria hemorragia cerebral, usamos massa encefálica artificial… Sequelas mentais e psicológicas são… bom, esperadas, para dizer ao mínimo. Dito tudo isso, eu preciso saber: você se lembra do seu nome?
Isso era uma resposta fácil. Sabia disso, mas o nome não vinha. O incômodo aumentou, fez expressão de dor.
— Injetem mais estimulante.
O líquido entrou em seu corpo e correu para sua mente. Flashes apareceram, ele lembrava, ou melhor, sabia. Não havia realmente memória em sua mente, apenas informação fria e distante, mas informação.
— Atlântis. Eu…. Eu lembro do ataque.
— Ótimo… Bom… Nesse caso, eu posso ser mais franco e direto. Atlântis, você esteve em coma por duas semanas, e nesse meio tempo… você “morreu” 73 vezes, metade dessas “mortes” ocorreram nas primeiras 60 horas, com o maior período tendo sido por 2 minutos e 19 segundos.
Atlântis não respondeu. Não conseguia.
Toda aquela informação lhe parecia… tão inútil. Tão simples. Mesmo assim, o médico continuou: fez um gesto com a mão e a imagem voltou a ser do corpo completo.
— Pedaços de aço, chumbo, alumínio, ossos… perfuraram o seu corpo. O dano foi alto, mas não tanto quanto as queimaduras… O que leva à questão principal, além das sequelas mentais… É melhor você mesmo ver.
Atlântis conseguiu, com algum esforço, segurar o cobertor com a mão direita e o jogar para o lado. Quando viu, começou a tremer. Seu braço esquerdo, suas duas pernas… sumiram.
Tentou falar algo, mas os seus dentes batiam um contra o outro, sem deixar espaço para a língua se mover.
— As queimaduras causaram dano severo a pele e aos nervos, junto dos fragmentos que abriram artérias e destruíram os ossos. Não tínhamos outra opção a não ser amputar. Já injetamos alguns calmantes para você não desmaiar de choque, mas eu entendo se…
— Próteses são possíveis? — Interrompeu o médico, ainda que a voz estivesse claramente alterada.
— São. Mas vai levar algum tempo até… Estarem disponíveis. Somado ao tratamento de readaptação. O melhor agora é você descansar, processar toda essa informação que acabou de ser dita.
Era estranho pensar que não estava surtando apenas pela quantidade de remédios que estavam fluindo pelo seu sangue, pela sua mente. Não parecia… verdadeiro. Algo estava errado.
— Quando vamos chegar a Orfenos?
— … O quê?
— Estamos num barco, não estamos? Consigo sentir as ondas.
Os médicos e enfermeiras se olharam, sabiam perfeitamente que aquilo não devia ser possível. O médico chefe aproximou-se.
— Não… estamos indo para Orfenos, no momento. Acreditamos que a situação pode ser um pouco crítica. No momento, ficaremos em alto-lago até termos confirmação de sua segurança. Por enquanto, descanse.
Sem mais respostas por Atlântis. As drogas começaram a ficar mais pesadas, e o sono começou a bater com força. Não havia como lutar contra o efeito.
. . .
Foram dois dias que passaram como alguns segundos. Dois dias que, por ordem médica, o proibiram de sair do quarto ou receber grandes visitas. Avaliações físicas foram feitas, avaliações neurológicas. Nada sobre notícias de fora, a situação que passou, ou planos futuros.
Tudo que os médicos falavam era apenas sobre o agora.
Ficava confinado no quarto, sem sair. Sem ver o céu. Atlântis não tinha noção de tempo. E os exames, continuavam sendo feitos.
— Ele demonstrou dificuldade na leitura e escrita. Foi capaz de definir com exatidão o significado das palavras e interpretação, porém, na hora de pôr isso em prática… — disse a psiquiatra, passando o relatório para o médico chefe.
— Esperado. O dano cerebral acertou as partes responsáveis pela leitura e escrita. Alguma outra sequela neurológica notável?
— Bom, não chamaria de neurológico, mas… psicológico. Tenho acesso a uma ficha de exames psicológicos feitos há quatro atrás. Um jogo de associação, sabe? Diga uma palavra, diga o que associa a ela… As palavras que ele usou foram… diferentes.
— E o que tem demais? Não espera que ele fosse responder com as exatas mesmas palavras, não é?
— As exatas mesmas palavras? Claro que não. Mas palavras de sentido parecido são esperados. A maioria das respostas foi similar, mas houve duas respostas que estranhei…
— Quais?
— “Barco” foi associado anteriormente a “comércio”, agora a resposta foi… “Ondulação”. Somado a sua sensitividade a ondulação do lago, o que não deveria ser possível… É curioso, no mínimo.
— E a outra?
— Essa foi a que me deixou incomodada. “Família” foi chamada de “quinteto”. Ele tem três irmãos, uma mãe e bem, ele mesmo. O pai não é próximo. Agora ele falou “quarteto”…
— Talvez se sinta externo a própria família, agora?
— Não posso determinar isso. Estou evitando sessões longas e complicadas, por enquanto testes simples são os mais apropriados, pelo menos até pararmos de usar estimulantes e calmantes nele.
Não tenho postado faz um tempo. A verdade é que tenho desanimado, e de certa forma, achado mais prazer em outras atividades do que a escrita; talvez isso tenha se refletido com o cap. Espero voltar a ter ânimo.
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