Capítulo 24 (Parte 2) - Assegurado
“No quarto dia, desde que acordou, as enfermeiras foram chamadas pelo alarme, o quê, até então, não tinha ocorrido. Reclamou de dor, mesmo com a quantidade de drogas analgésicas que estava sendo injetada nele.
Quando perguntado sobre a localização, Atlântis localizou a dor na mão esquerda, aquela que tinha perdido. Sem dúvidas, dor fantasma. Mesmo sendo colocado para dormir, comentou que sentiu a dor mesmo sob coma induzido.
Tal dor se espalhou para as perna esquerda no quinto dia e, no sexto dia, a perna direita. Eram em pontos específicos, específicos até demais. Foi quando os médicos fizeram uma descoberta: Atlântis apenas sentia dor nos pontos onde fragmentos de osso — e apenas os de osso humano — lhe atingiram em seus membros.
Sua mente, de alguma forma, era capaz de distinguir o material dos fragmentos que lhe causaram dano, ainda que fosse aqueles onde os fragmentos não ficaram alojados.
A dor cessou ao marco de uma semana que acordou, sendo substituída apenas por uma sensação fantasma; como se seus membros perdidos ainda estivessem ali, intocados. Daquele dia em diante, estimulantes pararam de ser administrados, além dos anestésicos e controladores de humor.
Mesmo assim, continuou em um estado de transe. Afirmava ter memórias do ataque e do dia em questão, entretanto, se viu incapaz de responder qualquer tipo de pergunta em relação aos detalhes do ocorrido, muito menos questões simples como os dias anteriores.
Porém, não demonstrou trauma. Ou melhor, não demonstrou trauma aparente em relação a armas de fogo, visto que houve um episódio onde acabou tendo contato com um guarda armado. A presença do guarda não o incomodou; pelo contrário, Atlântis descreveu com perfeição o modelo do fuzil, junto de sua história e versões alternativas. Por sinal, ele percebeu que o modelo não é usado por nenhuma empresa orfeniense.
Sugiro que…”
O médico jogou o relatório a mesa e bufou. Sentado, apoiou o queixo a mão e perguntou:
— Acha que ele vai começar a suspeitar?
— Pessoalmente? Já imagino que ele suspeite. E se não, vai começar a suspeitar em breve. De toda forma, não é a minha função pensar nisso ou não, e sim garantir que a segurança mental dele esteja em dia.
— Eu sei. Eu sei. — Levantando-se da cadeira, o médico foi até uma das janelas do escritório, olhando o grande e plano horizonte azul. — Talvez devêssemos deixar ele sair um pouco, tomar um ar.
— Posso providenciar uma cadeira de rodas. Só imagino que ele não vá ter permissão de sair sem acompanhamento, não é?
— Certamente, Doutora. Por favor, na próxima consulta, diga a novidade. Irei avisar a tripulação e… terminar de ler seu relatório… No devido tempo.
. . .
Era difícil girar o cubo mágico com apenas uma mão. Estava há dias tentando completar aquele cubo, mas não conseguia. Uma atividade que levava apenas alguns minutos para si estava levando dias. Mesmo assim, nem sequer cogitava a ideia de desistir.
Às exatas 16 horas, a porta se abriu e a psicóloga que estava acompanhando-o todos os dias chegou. Assim como todos os dias, pegou um copo, encheu de água e sentou-se ao lado de Atlântis, pondo o copo na mesa ao lado.
— Vejo que não terminou o cubo mágico ainda — comentou ela. — Sem stress, ok? Eu mesma levo dias para conseguir um.
— Não era meu caso. — Tentou girar mais uma vez, só que se frustrou. Largou o cubo e deu um suspiro frustrado. — Estou com dificuldades para imaginar ele. Em… ver ele na minha mente.
— Afantasia?
— Algo assim. Minhas imagens mentais eram tão nítidas, só que agora estão tão… embaçadas. Tentei usar as técnicas que eu conheço para fazer o cubo mágico se resolver de toda forma, só que nem com isso eu…
— Não pegue tão pesado. Algumas tarefas simples vão ficar complicadas enquanto outras… De toda forma, como está se sentindo? Conseguiu sonhar com algo?
— Um pouco. Só que acho que foi mais uma… memória, não um sonho. Eu… não consigo descrever direito.
— Pode tentar?
Lentamente, confirmou com a cabeça. Seus olhos distantes miraram ao nada.
— Estava voando e aí… me afogando. Os meus olhos estavam pesados, não conseguia manter eles abertos e ver ao redor. Mesmo assim, as sensações eram tão vívidas… Por isso acho que não é um sonho.
— Uma memória do atentado?
— Não. Sinto como se fosse antiga… Distante de quem eu sou.
A psicóloga pensou por alguns segundos, só que não respondeu. Não havia realmente o que dizer, ela mesma não entendia direito toda essa situação, apenas achava fascinante. Após alguns segundos de silêncio, tocou no assunto em questão:
— O médico-chefe deu permissão para você sair do quarto, tomar um pouco de ar fresco. O que acha? Pessoalmente, creio que te faria bem.
— Acho que sim. Pode ser.
Foi colocado numa cadeira de rodas elétricas, controlada por uma alavanca na direita. Pela primeira vez em dias, conseguiu ver como era fora do quarto: os longos e apertados corredores, de paredes azuis e linhas coloridas, indicando o caminho para cada parte do barco.
Indo até o convés acompanhado da psicóloga, a forte luz solar bateu contra si. Seus olhos foram cegados, levando minutos até recuperar a visão.
Vento úmido e doce bateu em seu rosto, o mundo pareceu lhe receber. Quanto a visão, ele viu: o vasto lago doce. Parecia infinito. Olhando para a borda, para a água parada, conseguia ver seu próprio reflexo: o cabelo raspado, cicatrizes pelo rosto.
Agora essa era a imagem de Atlântis. Um homem destruído, surrado. O ar pareceu ficar raso.
— É uma boa vista, não é? Não é sempre que eu fico em alto-lago, mas sempre que fico… Quase sempre fico sem palavras.
— Acho que sim. É bonito.
— Sente alguma frustração, Atlântis? Alguma… raiva? De tudo que lhe ocorreu? — perguntou a psicóloga, esperando alguma resposta.
Ele não respondeu de primeira. Olhou o grande lago azul, sentindo a brisa bater em seu corpo, até ele subitamente parar.
— Acho que não. Por que eu teria alguma frustração? As coisas são como são.
— Talvez, mas… é normal ressentir aquilo que nos causa dor e querer causar a mesma quantidade de dor. Eu só gostaria de entender como você está sentindo; o que está sentindo. Como está sua memória.
— Eu lembro da situação. Eu lembro do ataque.
— Podemos falar sobre isso?
— Não há o que falar.
O vento começou a soprar mais uma vez, dessa vez mais forte. As nuvens estavam começando a se juntar, lentamente escurecendo. Atlântis olhou ao redor, o convés estava quase vazio, exceto por uma guarda com seu uniforme levemente azulado, algumas medalhas douradas.
Aqueles ornamentos chamavam sua atenção. Os detalhes, tudo.
— Acho que irá chover. Espero que não seja uma tempestade.
— Estou realmente vivo? — inesperadamente, Atlântis perguntou — Estou realmente seguro? Tudo isso parece irreal demais. Aquático, até… Como se eu ainda estivesse afogando.
— Isso é real, Atlântis. Você, tudo ao seu redor… Você sobreviveu, e está vivo. Agora é uma questão de curar suas feridas e seguir em frente.
— É. Acho que é. Pode pedir para aquele guarda me trazer um copo d’água? Estou com sede.
— Certo, um segundo.
A psicóloga andou alguns metros e foi ao guarda mais próximo, encostado na parede e vigiando aquela parte do convés.
— Pode pegar… — Mas antes que pudesse ao menos terminar de falar, o guarda apontou, e gritou “Ele tá pulando!”. A psicóloga virou desesperada, e viu: Atlântis, usando seu único braço para se empurrar para fora do navio, tentando cair.
Correu. Correu o mais rápido que pode, só que ele foi mais rápido.
Atlântis sentiu o vento caindo e então, o som do splash inundou seus ouvidos e sua pele arrepiou-se pela temperatura da água. Sentiu suas feridas abrirem, lentamente afundando, a água azul cristalina ficou levemente vermelha. Água entrava pelas suas narinas, bocas e ouvidos. Afundava.
“Não é o dinheiro que decide quem vive e quem morre…”
Um som distante de sirene, abafado pelo líquido pode ser ouvido, ele sabia o que significa.
“Por favor… me deixe afundar…” pensou, enquanto ficava mais distante da luz, onde o oxigênio ficava mais escasso. “Deixe esses que vocês chamam de Atlântis se afogar… Vocês já tentaram me afogar, então… me deixa afogar de uma vez…”
O ar dos seus pulmões acabou. Só que seu corpo não lutou. Não houve instinto de sobrevivência que fez seu braço mexer, tentando ir à superfície. Não houve vontade. Seu corpo afundava, afundava, afundava…
Até finalmente se afogar.
Espero que n seja o ultímo cap do ano, vou me esforçar pra que n seja
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