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    Suas mãos hesitaram por um segundo, mas Atlantis abriu a porta. E a sala era justamente como imaginava: um carpete vermelho por todo chão, dois sofás de couro frente a frente, em meio a eles uma mesa curta. Sentado ao sofá em sua frente, estava o presidente de Benzaiten, Loid III, atrás dele, sua própria guarda pessoal. Ele estava com uma expressão calma, quase sorridente. Quando seus olhos caíram sobre Atlantis, o sorriso se alargou, levantou-se do sofá. 

    — É um prazer, Atlantis — disse em uma voz gentil. Na medida que Atlantis se aproximava, Loid ergueu a mão. O mais novo decidiu ser educado. Quando ficaram frente a frente, Atlantis apertou sua mão com firmeza. 

    — Que aperto forte! — Loid comentou — por um segundo, achei que era um gunslinger

    — Fui ensinado a sempre apertar com força — respondeu enquanto sentava no sofá oposto ao de Loid. Frente a frente, encaram-se por um segundo, até que Loid fez uma expressão de algo ter surgido em sua mente. Pôs a mão no bolso e tirou de lá uma latinha cor de rosa. Dentro dela, há diversas balinhas de morango. 

    — Gostaria de uma? — Ofereceu, e logo em seguida pegou uma para si. — Sei que orfenienses gostam de coisas doces. 

    Menta, até então atrás de Atlantis sem dizer uma única palavra, pensou em intervir. Podia parecer besteira, mas não poderia saber que tipo de coisa haveria naquela goma. Porém, quando olhou para a própria guarda de Loid, Chyou, que estava com as sobrancelhas franzidas de estranhamento, decidiu deixar para a decisão de Atlantis. 

    “Ele deve recusar, então…”

    — Obrigado. — Atlantis confirmou com a cabeça e estendeu a mão para pegar uma das balinhas. Abriu a embalagem e colocou na boca. — Hm, doce mesmo, mas não ao ponto de deixar a boca ácida, é muito gostoso. 

    — É feito a partir do extrato de uma glândula de um peixe muito comum no lago salgado que Benzaiten está localizada. Sempre houve diversos estudos sobre a possibilidade que esse extrato podia ser usado para a indústria alimentícia e farmacêutica, mas a falta de um equipamento especializado impediu a exploração disso por décadas. Até, é claro, há dez anos, a Universidade de Benzaiten criar esse equipamento.

    — Parece ter orgulho desse doce — o jovem observou. 

    — Não diria orgulho… Mais uma felicidade de ter sido graças ao meu governo que meu doce favorito foi criado — Loid disse, colocando mais uma dessas balas na boca. — Se bem que… Isso é orgulho, não é? Ah! Onde estão meus modos… Sua guarda vai querer um também?

    Atlantis olhou para Menta, esperando sua resposta.

    — E-eu, errr… Não. Obrigada. — No fundo, ela queria. 

    — Entendo. Chyou, vai querer um? — Dessa vez, se virou para trás e encarou sua guarda. Ela respondeu certeira: 

    — Não, senhor.

    Um leve silêncio predominou, mas não durou muito, Atlantis decidiu tomar as rédeas.

    — Podemos ir ao assunto que nos trouxe aqui? — Cruzou os braços e ajeitou a postura. Loid por sua vez confirmou com a cabeça, respondeu em voz clara: 

    — É claro. O assunto é nada mais que o meu discurso de dias atrás, sobre unificar a humanidade em cinco anos. Creio que seja isso, não é mesmo?

    — Naturalmente. Como um dos jornalistas pontuou naquele dia… Há uma súbita declaração de guerra. Isso é algo dispensável, tanto Orfenos quanto Romaniva gostariam de evitar algo dessa escala, enquanto mantemos nossa independência. Não quero ser grosseiro, mas…

    — Mas…? — Loid questionou. 

    — Não é um tanto quanto hipócrita, logo Benzaiten, a cidade que iniciou o processo da separação da humanidade em Vulcano ser justamente a mesma que agora está exigindo uma unificação novamente?

    — Hm… Sua colocação faz sentido superficialmente, mas é importante notar que a Benzaiten de 200 anos atrás e a Benzaiten de hoje, são completamente diferentes. Não há um único cidadão do processo de independência vivo hoje. Assim como a Orfenos racista e com políticas de segregação não é a mesma Orfenos de hoje em dia, não? Governos são feitos de pessoas, e as pessoas não são eternas. 

    — É uma colocação válida. Nesse caso, eu vou ser mais direto e ir para a verdadeira raiz do problema: Benzaiten é uma ditadura. Uma que usa de um passado fictício para manipular sua população. Uma unificação nesses termos é impossível, até porque imagino que a unificação seria a partir dos seus termos… Da SUA administração. 

    — Um passado fictício, não é…? — Loid repetiu as palavras com certa tristeza. Mas não durou muito, olhou aos olhos de Atlantis e questionou: — conhece a teoria da recordação impossível?

    — Explique. 

    — A teoria argumenta que, por conta do sistema de recordação de dados que a nave Galahad usava, é impossível ter exata noção da história humana. O motivo é simples: a caixa de pandora, isso é, o banco de dados que carrega toda a história humana não é perfeita, ela se danifica a partir dos anos, por consequência, a informação é mudada, mesmo que seja por um dígito. 

    — Continue. 

    — Para reverter esse problema, ela possuía um programa de diagnóstico que comparava as informações em diversas fontes para consertar. Por exemplo… Vamos pegar a independência do Brasil, oito de setembro de 1822. Deve haver milhões de sites, livros, panfletos e todo tipo de lugar que cita essa data. Caso houvesse um erro em, vamos dizer… dez sites que citam a data de independência errada, o programa iria comparar esses dez sites aos outros milhões que colocam a informação correta e iria manualmente corrigir essa data para a data correta. 

    — E qual é exatamente o problema que abre essa teoria?

    — O problema é que esse programa não é sem falhas. Se ele deixar apenas um por cento dessas informações erradas sem ser corrigida, essas informações erradas vão ser usadas futuramente como base para determinar o que é certo e o que não é. Multiplique isso por mil, por talvez centenas de anos… Uma data errada, uma palavra colocada ou tirada em um texto… Quantos erros isso criaram? Quantas interpretações erradas?

    — Fascinante… Mas é um tanto quanto estranho que eu nunca tenha ouvido falar desse programa. Isso deveria ser um conhecimento público, não acha? É um tanto conveniente para a sua narrativa. 

    — Bom, o próprio programa se apagou na medida dos séculos, afinal, ele também tinha que corrigir seu próprio código, menções de sua existência em relatórios, sites… Lembre-se, nesses duzentos e trinta anos, nós recuperamos apenas cerca de quinze por cento de toda informação que existem no banco de dados. Muito foi perdido. 

    Atlantis ficou em silêncio por um segundo. Refletindo sobre o que tinha acabado de ouvir. Para si, aquilo era o maior absurdo que testemunhou. História não é algo que pode ser contado a partir de “talvez”. Se existem interpretações, “duas histórias humanas”, então o próprio conceito de história é inútil. 

    — Desculpe-me, mas não consigo acreditar na história que Benzaiten clama ter. 

    — Se estudasse a teoria…

    — Não digo sobre a teoria, isso eu de fato preciso estudar melhor. Mas o ponto é que a sua história é muito ideal, conveniente. Os Europeus colaboraram com os africanos para criar a América? Hiroshima e Nagasaki foram as primeiras cidades a usar energia nuclear? Uma única Coreia…? Isso tudo é um tanto quanto… excludente. 

    — Excludente? — Loid repetiu — excludente como?

    — Excludente da natureza humana. Se a sociedade humana sempre foi tão ideal, colaborativa, por que aqui em Vulcano, não vemos o mesmo? Por que Orfenos, nos primeiros anos de existência, aplicou segregação racial, se era algo que nunca existiu em primeiro lugar?

    — Estudos indicam que a Síndrome de Roger pode causar efeitos no humor e na moral humana, não apenas na memória como muitos pensam. Algo inevitável, visto que a humanidade precisava usar sono criogênico para a viagem interplanetária. 

    — E alguns desses estudos são de algum lugar além de Benzaiten? — Atlantis perguntou, mas Loid não respondeu com nada além de um sorriso. — É simples assim. Unificação da humanidade não é necessariamente ruim, mas Benzaiten é problemática. Uma nação que não conhece a própria história….

    — Peço que não termine essa frase. 

    O silêncio predominou a sala por um segundo. Loid mantinha um sorriso, mas ele parecia um tanto quanto vazio. 

    — Atlantis, falamos de hipocrisia mais cedo. Se você tivesse terminado essa frase, seria o maior hipócrita dentro dessa sala. 

    — Como?

    — Permita-me fazer um argumento para a unificação da humanidade sob o governo de Benzaiten, dessa vez, usando a história sangrenta que vocês de Orfenos, clama ser a verdade. 

    — Diga. 

    — 1789. É nesse ano que a França eclode em uma revolução. O contexto é muito simples: a maioria da população vivia em pobreza e principalmente, sem representatividade política. O primeiro e segundo estados, Clero e Nobreza, por outro lado, viviam com fartura, luxo e não precisavam pagar imposto algum. Como o voto era feito por estado, em vez de cabeça, eles eram quem decidiam o futuro da população. Esse modelo de país… Não soa familiar?

    — …

    — Não gosto de ser acusatório, mas você começou chamando Benzaiten de uma ditadura. Eu serei tão direto quanto você: Orfenos apenas usa maquiagem de uma democracia, mas a maioria do povo não possui representatividade política alguma. É claro, isso não será um problema… Até algo ocorrer. Talvez uma safra ruim, uma seca, talvez o sistema SNOW pare de funcionar e o calor seja forte demais para suportar. Talvez apareça outro serial killer como aquele de alguns anos atrás. Muitos talvez. Quando isso acontecer… Quando a população quiser fazer exigências, mas não tiver onde fazer… A história que vocês clamam ser verdade, irá se repetir? … Mais uma Antonieta de cabelos brancos vai ter sua cabeça decepada?

    Atlântis ficou em silêncio por um segundo. Fechou os olhos e imaginou aquela imagem tão ruim. Talvez não houvesse uma contra resposta apropriada, mas mesmo assim tentou insistir. 

    — E isso não vale para Benzaiten, também? Vocês também não possuem eleições. 

    — Mas somos um povo unido, e não me entenda mal… Humanos devem aprender com a história. Mas isso depende do conto que for passado, do legado deixado… Deve haver uma moral para ser aprendida, e uma esperança a ser herdada. É impossível imaginar um final feliz em uma história de terror, e a história que vocês contam é o maior dos terrores. 

    — Então imagino que não chegaremos a um acordo?  

    — Talvez não moralmente, mas lhe darei um argumento prático e lógico: O fato que conseguimos replicar uma slinger com perfeição. 

    — Você tem uma prova sobre isso? Gostaria de ver essa arma em ação, ou ao menos, ela de perto. 

    — E está. — Loid apontou para trás, onde Chyou estava parada. Deu um sorriso e ajustou os óculos logo em seguida — Minha guarda-costas é portadora da slinger criada por Benzaiten. 

    — Esse é seu argumento? Com todo respeito, pode ser apenas uma gunslinger comum. Um vídeo da arma sendo criada, usada seria mais convincente. 

    — Desculpe-me, mas por questões de protocolo, não permitirei isso. Bom, acho que teremos que adiar nossas negociações, pelo menos até o número de slinger criadas passar do cem, e aí teremos uma prova mais que concreta da… — Antes de terminar a frase, seu celular tocou. — Perdoe-me. — Pegou o celular e leu a mensagem que tinha recebido. A cara, que já estava fechada, tornou-se de poucos amigos. Guardou o celular e ficou em silêncio. 

     Numa questão de alguns minutos, a porta do lado de Benzaiten se abriu e um dos guardas armados entrou. Loid levantou na mesma hora com rosto sério, e o guarda logo anunciou suas intenções: 

    — Senhor, fomos comprometidos. Parece que houve uma invasão no prédio, peço que venha comigo imediatamente. 

    — Muito bem. Siga a instrução alpha B16 e lidere a frente. 

    — Sim, senhor! 

    O guarda se virou, foi até a porta até que…

    — Chyou — Loid deu a ordem, e a mulher apenas confirmou com a cabeça. Puxou seu rifle numa velocidade tremenda e metralhou o guarda, fazendo-o cair morto. Agni não ficou parada, foi logo à frente de Atlantis e puxou sua slinger, apontando para o presidente e sua guarda.

    — Peço que se expliquem, agora! — disse Agni em tom alto — Ou eu irei atirar! 

    Atlantis ficou de olhos abertos com isso, engoliu saliva e disse um tanto hesitante: — Menta, abaixe a arma. 

    — Mas senhor…

    — Não precisa ter medo. Por favor, abaixe a arma e deixe eles explicarem. 

    Agni seguiu a ordem relutantemente. Loid deu um suspiro de alívio, ajeitou os óculos e falou em tom baixo. 

    — Não há instrução “alpha B16” no meu comando. Todo guarda meu deveria saber disso. Chyou, faça-me o favor e tire o capacete dele. 

    — Certo. — Fez conforme o mandado e a teoria estava correta: aquele não era uma dos guardas de Loid, talvez algum mercenário ou…

    — Wild Hunt? — Atlantis supôs. — Se bem que todos da Wild são gunslingers, e a arma que sua guarda-costas usou é uma arma comum, pelo que consigo sentir… Outro grupo mercenário?

    — Uma distração — Loid concluiu — alguém para ser morto, mas não desse jeito ao menos. Você não recebeu nenhuma mensagem do seu chefe de guarda? 

    — Nada. 

    — Só o meu lado foi comprometido…? A sala é a prova de som, não iríamos ouvir um tiroteio, mas mandariam uma mensagem… E não consigo contatar o resto do time. A comunicação está falhando. 

    — Mas você recebeu uma mensagem, não foi senhor? — Chyou questionou. 

    — Não foi do grupo. Foi “dela”… Não importa, temos que evacuar quanto antes. Atlantis, se me permite, gostaria de sair pelo mesmo túnel na qual você entrou. Talvez haja uma armadilha no meu. E mais ainda… Que eu pegue minha própria slinger

    — … Não vejo problema. — Levantou, tentando manter a expressão calma. — Vamos lá.

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