Capítulo 12 (Parte 3) - O começo do sonho
Ao final da tarde, Baret e Nil estavam chegando na garagem. Nil carregava por cima do ombro mecânico a churrasqueira portátil, e por baixo do outro braço, uma sacola de carvão. Baret também estava com as mãos ocupadas, segurando várias sacolas de carne.
O local estava aberto, era possível ver de longe Quincas, sentado em uma cadeira de plástico e dando goles em uma cuia de chimarrão. Quando viu os dois se aproximando, deu um sorriso e levantou-se.
— Levou um tempo! E estou sentindo um cheirinho de carne… — Colocou a cuia no chão e se levantou, mas logo em seguida questionou: — Quem é seu amigo?
— Boa tarde para você, Quincas — Nil respondeu, colocando a churrasqueira no chão e a sacola de carvão do lado.
— E como ele sabe meu nome? O que você falou sobre mim, Baret?
Baret estava prestes a dar a resposta mais simples possível, mas preferiu ir por um caminho mais cômico. Soltou as sacolas de carne próximas à churrasqueira e disse:
— Não se lembra dele?
— Hã? Não, sinto em dizer que não.
— Ele salvou a sua vida!
— Salvou?!
— Sim, poxa, talvez você tenha amnésia. Mas acho que não é uma surpresa, você bateu a cabeça bem forte naquela hora. Se não fosse por ele… não seria a memória que iria perder! Nossa, até fico desesperada pensando nisso. Imagina ter que esperar na fila do hospital com você sem pau? Que horror seria!
Quincas fechou as pernas instintivamente. Engoliu saliva a seco e, repentinamente, deu um abraço em Nil.
— Obrigado, camarada! Posso não lembrar, mas saiba que sempre serei grato!
Nil deu leves tapas nas costas de Quincas. — De nada, cara.
— Eu tô zoando com a sua cara, Quincas. Esse é o agiota que devemos dinheiro, se chama Nil. — Baret deu uma risada e começou a abrir as sacolas de carne. Quinas soltou Nil na hora com uma expressão de dúvida.
— A gente não tava devendo dinheiro para Simone? — questionou e virou o olhar para Ni. — Você é irmão dela? É ruivinho que nem ela, tem o braço que nem o dela…
— Eu sou a Simone.
— Ah. — Uma mera surpresa para Quincas. Olhou de baixo para cima e, com um olhar de alguém que tinha visto um pelo prato, continuou: — Hmmmm… — Sentiu um soco de Baret em seu ombro no mesmo momento. — Ai! Qual é?!
— Sem flerte na Carreta.
— Pô, achei que era só com os membros DA Carreta.
— Pois é, a notícia é meio que essa. O Nil ta dentro. — Nem sequer olhou para Quincas para ver sua reação. Colocou o carvão dentro da churrasqueira e ajeitou algumas configurações.
— Que barulheira é essa aqui?
Saindo da garagem, veio Axel. Estava todo sujo de graxa e óleo, além de usar uma máscara de solda. Ao tirar a máscara e mostrar seus óculos escuros para todos verem, limpou o rosto com a mão e se aproximou do grupinho.
— O que caralho de churrasqueira é essa? E o quê o agiota tá fazendo aqui? — Sua sutileza inspirou o coração de Nil. Cruzou os braços, deu um sorriso provocante e disse:
— Te incomodo? Sabe, não ouviu a sua chefe? Eu faço parte da Carreta agora. Sou seu colega.
— Hah! Ok, conta outra. Agora sério, o quê está fazendo aqui?
— Não é meme — Baret disse. O sorriso de bom humor de Axel sumiu. A expressão se fechou como um dia de chuva prestes a virar uma tempestade.
— Estou acostumado com burrice, e não espero muita coisa de você, mas mau-caratismo já é demais — falou olhando diretamente para Baret, em seguida, continuou: — eu não vou trabalhar com agiota.
Nil deu uma risada enquanto Baret colocou a mão na cintura, pensando no que responder. Quincas, sentindo que o clima estava ficando tenso, correu para sua cadeira e pegou a cuia de chimarrão. Tentou oferecer para todos ali, mas não deu certo.
Após pensar um pouco, Baret perguntou:
— Qual o problema agora? O Quincas era não-registrado até pouco tempo, e nenhum de nós sabe as cagadas que ele fez. Por que agiota te incomoda, mas o Quincas não?
— Hah, aí você acha que tem um ponto, mas permita-me te refutar: eu confio no Quincas? Certamente não. Ponho minha mão no fogo por ele? Jamais. Durmo ao lado dele tranquilo? Nunca. Só que o Quincas tem uma característica: contanto que eu não espere nada dele, ele não me decepciona. Mas com Agiota aqui. — Ele apontou para Nil, que estava achando graça da situação. — O buraco é mais embaixo. Tenho que lembrar que esse filha duma puta quase me explodiu e, mais ainda, QUASE ME PRENDEU?
— Gostei dos argumentos dele — Nil comentou, enquanto abria um pacote de carne. — Achei bem válido, no lugar dele eu não pensaria diferente. Embora gostaria de relembrar que o Quincas fugiu daquela vez.
— Opa, opa, eu não chamaria aquilo de fuga… — Quincas tentou interromper. Mas Axel falou mais alto:
— Então que tal só vazar? A Baret já te pagou o que deve, não precisamos de gente da sua laia.
— Ai que você se engana, anjo — Nil disse com o tom de voz de Simone, deu alguns passos para frente e colocou o dedo indicador entre os lábios de Axel, que recuou alguns passos para trás, tão incomodado que colocou a máscara de solda novamente. — A Baret não pagou o que deve. Ou melhor, VOCÊ não pagou o que deve. A dívida foi causada por você, afinal das contas.
— Do que tá falando? Ela pagou os vinte mil, não? — Quincas dessa vez conseguiu terminar a frase.
— Digamos que houve custos adicionais. E de vinte mil, a dívida foi para cento e dez mil, sobrando então noventa mil a ser pago… Nesse caso, eu dei uma alternativa de pagamento: eu me juntar à Carreta. Mas caso isso incomode tanto, eu posso só ficar na minha, e de tempos em tempos ir cobrando o dinheiro, e quando o tempo passar, e eu não receber o dinheiro… Só colocar umas recompensas na cabeça de vocês e deixar a Wild Hunt fazer o resto, depois pego suas slingers e dou um jeito de vender. Soa melhor pra você?
— Na verdade, não — Quincas disse — Não sei se recomendo vender slingers, nunca dá certo e sempre rola prejuízo e tragédia.
— Você entendeu a ameaça — Nil respondeu.
— Entendi sim. Gente, eu voto em deixar ele continuar na Carreta.
— É, eu também voto em deixar ele no grupo — Baret comentou — Além disso, ele trouxe carne pra gente fazer churrasco! Pô, ele não é tão ruim assim!
— Vota? Desde quando esse grupo é uma democracia, pô? Eu pensei que tu era a chefona! — Axel protestou.
— Prefere que eu só mande você calar a boca? Eu disse no post do Actua quando anunciei o grupo, não falei? Prefiro manter o negócio democrático. Eu só vou usar minha autoridade quando eu precisar de fato.
— E isso não é um desses momentos? — cruzando os braços, Axel tirou a máscara de solda mais uma vez para mostrar sua expressão irônica.
— Bom, se ele tá falando sério de nos matar, é só a gente matar ele antes — a forma tão natural que Baret disse foi o suficiente para deixar os três homens um tanto quanto incomodados. Não ligou, continuou a falar — Enfim, a Émile precisa chegar para dar o voto dela.
— Com isso são quatro votos, não são? Precisaria de um método de desempate se ela votar contra. — Nil comentou.
— Primeiro precisamos esperar ela… Ah, olha ela aí! — Apontou para frente, ao outro lado da rua, onde estava Émile e Arya se aproximando. Todos ficaram cara de surpresa quando viram a Arya aparecer, mas mantiveram-se centrados.
— Oi, gente! Então… Eu estava pensando…
— Calma lá, Émile! — Baret interrompeu, apontou para Nil e questionou: — o que tu acha? Ele entra ou não entra para a Carreta?
Apenas um olhar de confusão, tanto de Émile quanto de Arya, foi necessário para Baret perceber que tinha sido um tanto abrupta demais. Então, deu o contexto:
— O Nil é a Simone, a agiota que a gente tava devendo dinheiro, que ajudou a gente no seu resgate.
— Ah… Hã… contra? — Émile respondeu sem pensar. Mas quando ouviu Quincas falar “ela vai nos matar se não aceitarmos”, logo mudou sua resposta. — A FAVOR!
— Então está decidido — Baret falou, confiante — Nil está oficialmente na Carreta! Por favor, podemos fazer logo o churrasco? Eu to com fome!
Axel revirou os olhos e voltou para a garagem, Quincas deu um sorriso bobo e disse:
— Deixe comigo o churrasco! — Não perdeu um único segundo, foi logo para próximo da churrasqueira. — Se tem uma coisa que sei fazer, é carne!
— Então beleza! E você, Nil? Vai fazer o quê?
— Encher o saco do Axel. Me chame quando a carne estiver pronta.
Nil saiu dali e foi em direção à garagem. Após alguns segundos de eco de reclamação de Axel, Émile e Arya aproximaram-se de Baret. Deram alguns olhares tímidos, e então, Émile disse:
— Então… Eu e a Arya estávamos conversando… e pensamos que talvez, só talvez, fosse uma boa oportunidade para ela entrar na Carreta. O que tu acha?
O coração de Arya disparou de ansiedade. Baret fez uma expressão surpresa quando ouviu aquilo, mas não demorou um segundo para responder.
— Nem fodendo. — O coração de Arya quebrou-se em mil pedaços, de tal forma que até Baret conseguiu perceber aquilo. Num ato desesperado, tentou corrigir. — CALMA! Falei “nem fodendo” por expressão! Sabe, de quando não acredita no que acabou de ouvir? Foi isso!
— Ah. — Arya recuperou a vida nos olhos e ficou vermelha por um segundo. Deu uma risada envergonhada e disse: — M-mas não tem problema! Eu não sou muito útil, eu disse isso para a Émile!
— Se valoriza, mulher! Baret, você precisa aceitar ela! Além dela saber umas coisas sobre corpos, o que dá pra usar como médica, ela tem uma slinger!
— Como é? — Baret não acreditou no que tinha ouvido. Ainda que nojento, limpou a cera do ouvido com o dedinho e repetiu o que ouviu. — Ela é uma gunslinger?
— Não exatamente. — Arya negou com a mão. — Eu tenho uma slinger, era do meu pai. Nunca consegui clamar para mim, sabe? Tentei várias vezes, por anos e mais anos, mas nada acontece. É como se tivesse algo… faltando. Algo em mim.
— Ah, é por isso que tu quer entrar na Carreta, então?
— Exato. — Arya desviou o olhar por um momento, apenas para olhar para Baret nos olhos. Era possível notar sua determinação. Para Baret, aquilo era estranho, pois de certa forma, entendia o sentimento por trás. Conseguia sentir a determinação por trás daquele olhar; talvez o motivo não lhe fosse similar, mas o puro sentimento era. — Quero me redescobrir, e então, ser apenas “eu”.
— Saquei, eu acho. — Colocando os dedos no queixo, pensou um pouco. Não havia realmente motivo para negar sua entrada, além é claro do espaço da Carreta. “Mas se duas pessoas dormirem no chão ou nos bancos de motorista, tá valendo”, pensou. — Sinceramente? Eu não to em posição de recusar ninguém que queira entrar para Carreta… sem ofensa. Confesso que tu não fez lá muita coisa no sequestro da Émile, mas você tentou! E se conseguir virar uma gunslinger, então vai ser show. Tá dentro também!
— Não se preocupe! Eu vou dar o meu melhor, nem que seja só para lavar as roupas de todo mundo! Obrigada, Baret.
— Nah, não precisa agradecer. Na verdade, até agradeço por falar agora, agora o churrasco é ainda melhor! Bora fazer essa comida!
A comemoração foi pouco a pouco aumentando na medida que mais e mais carne era feita. As primeiras rodadas de linguiça e coraçãozinho abriu o apetite de todo mundo e melhorou o humor do único mal-humorado do grupo. Conversaram ao redor da churrasqueira, os assuntos foram diversos: de começo, falaram sobre faculdade. Começou com Baret contando sobre perder seu diploma de matemática, seguido de Émile contando histórias da faculdade de administração e por fim, de Axel revelando ser formado em engenharia mecânica, embora insistisse em não contar onde se formou. “Uma faculdade aí”, disse.
Depois disso, gravaram vídeos para Émile ao seu pedido. Quincas, Nil e Arya foram os principais dançarinos, Quincas foi especialmente bom no rebolado; foi o dançarino com mais comentários positivos. A maioria dos comentários, por outro lado, diziam em como estavam decepcionados por uma artista tão renomada “surfar na onda do hype”.
Na leva de carnes mais pesadas, como alcatra e fraldinha, Axel tentou ensinar os membros da Carreta a como trocar um pneu. Para o seu desgosto, a única que se mostrou ter entendido suas instruções foi Baret. Mais alguns minutos se passaram, a carne já estava em seus momentos finais, só sobrando os pedaços que todo mundo não queria mais. Axel foi até a churrasqueira com seu prato de plástico, tendo um fio de esperança que acharia o que queria.
— Pô, a linguiça já acabou? — questionou com tom decepcionado.
— Faz tempo. — Disse Baret.
— Hey, Axel, você quer minha linguiça? — Quincas apontou para seu prato. Ainda havia uma unidade de linguiça; grande, redonda e com a ponta estranha, escorrendo gordura derretida num pequeno buraco. — Só pedir com educação que eu dou!
O homem de óculos encarou a linguiça de Quincas. Apesar de aquele pedaço lhe chamar a atenção, de fato era uma linguiça cheia de conteúdo, suficiente para saciar sua ânsia; algo lhe dizia, quase ao nível espiritual, que deveria recusar solenemente.
— Deixa quieto. Perdi o apetite. — Deu uma desculpa qualquer.
Ao começar da noite, o churrasco tinha acabado. Sentados ao redor da churrasqueira já vazia, deixavam seus estômagos descansarem. Era um silêncio acolhedor, alguns, como Quincas e Émile, estavam a um passo de cair no sono. Para evitar que tivesse que escutar os roncos incessantes de Quincas, Axel puxou assunto:
— E então, chefia, qual é o seu plano?
— Hein? Meu plano? — Baret questionou um tanto confusa. Parecia meio avoada, mas logo se ligou de fato. — Ah, bem… acho que agora é seguir ao oeste, ir para alguma das vilas da fronteira da área de influência de Romaniva, tem alguns gunslingers lá.
— Isso me lembra… qual é exatamente dos números? Por que acha que esse negócio vai levar ao tesouro?
— Coordenadas de Borhn.
Axel apenas confirmou com a cabeça como quem sabia exatamente do que se tratava. Todos os outros, entretanto, ficaram confusos.
— O que diabos é Borhn? — Nil questionou.
— Borhn é… — Axel se pôs a explicar. — Bem, o autoproclamado rival do Leonardo Tálio. Toda vez que o Tálio fazia alguma invenção, o Borhn ia lá e fazia algo quase do mesmo nível. Ele parecia meio patético em comparação ao Tálio, mas era realmente um gênio.
— E o que isso tem a ver com o tesouro? — Dessa vez, foi Quincas que perguntou.
— Uma vez, o Borhn postou um artigo sobre como o teletransporte seria tecnicamente possível. Nesse artigo ele propôs um sistema de coordenadas que, segundo ele, seria mais preciso. Quando ele exigiu a opinião do Tálio… ele só respondeu “Essas coordenadas serviram perfeitamente a uma caça ao tesouro.” — Baret explicou — Se trataram de quatro grupos com vinte e cinco números diferentes em cada, totalizando cem. Os grupos são A, B, C e D. Pegando todos os números e jogando na fórmula, você consegue achar a localização que quer. Entende o que quer dizer?
— Em resumo, precisamos achar esses cem números para ter a localização do tesouro? — Émile pareceu animada com a possibilidade. Conseguia sentir o gosto de todo o engajamento que aquilo causaria.
— Não precisa ser todos… Quanto mais números, mais preciso a localização. Se acharmos uns setenta e cinco ou oitenta, já dá para diminuir a área de busca o suficiente para conseguirmos achar. É meio impossível achar todos os…
Baret parou subitamente de falar. Sentiu um pesar em seu corpo, uma tontura, uma ânsia. Levantou-se da cadeira e disse, com uma voz trêmula:
— Eu vou achar um banheiro.
Não esperou ninguém responder. Saiu correndo com toda a velocidade que tinha. Não havia banheiro naquela garagem, e não havia lojas próximas. Quando tomou distância o suficiente para não ser ouvida por nenhum do grupo, entrou em um beco qualquer.
O corpo estava trêmulo, e a cada vez que mexia as pernas, suas articulações doíam. Não tinha mais como aguentar, caiu de joelhos no chão e vomitou. Vomitou toda a comida que tinha no estômago e um pouco mais. Foram minutos, quando achava que ia acabar, mais e mais vinha.
Quando seu corpo já não conseguia mais expelir qualquer coisa, levantou e deu alguns passos para trás, apenas para cair de novo. Sua garganta machucada não conseguia falar, apenas gemer de desconforto. Olhou para a mão esquerda, a mesma mão que tinha sido dilacerada, que tinha sido perfurada por chumbo. Os pedaços nunca tinham sido retirados. Ela não parava de tremer.
Lembrou das palavras de Axel. Se ela não tirasse aqueles pedaços logo, causaria intoxicação. Mas ela não tinha esse tempo. Não poderia ficar parada. Segurou os seus tremores. Levantou-se lentamente e limpou a boca com a manga da camisa.
— Não tenho tempo para perder. — Sua voz estava fraca, rouca, danificada. — Esse é apenas o começo do sonho.
Fechou a mão à força e começou a andar até a garagem novamente. Seu olhar determinado estava firme em seu rosto, e não seria derrubado tão fácil.
Não com uma simples intoxicação.
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