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    O sol tinha acabado de raiar quando a Carreta Fogueteira se reuniu. Estavam descansados, mas não renovados, o cheiro de lixo velho não permitiria tal privilégio. Mas não seria isso que impedia Baret; estava pronta para uma verdadeira missão de extermínio, se necessário. 

    Ainda assim, sabia que precisaria de alguém para consertar a carreta, e com certeza essa pessoa não seria Axel, que não tinha dado nenhum sinal que acordaria tão cedo. 

    — Temos que decidir quem fica com o vegetal — Disse Baret — Tem que ser um de nossos gunslingers, pois se der merda, tem que se forte pra carregar o cara e tacar-lê o pau. 

    — Acho que isso é trabalho pra mim. — Quincas deu um passo a frente e um sorriso. — No momento que der problema, eu pego minha slinger e fujo rapidinho. Carregar o Axel vai ser um pouquinho difícil… Mas dou conta. 

    Nil se encostou na parede, puxou o último cigarro que tinha na sua caixa e o ascendeu com um estalar de dedos do braço mecânico. Puxou toda fumaça que poderia e soltou. 

    — Não sei se damos conta de tanta gente assim. Pelas interrogações, o grupo inteiro deles tem o quê? Umas duzentas pessoas? Não sei se eu e Émile damos conta desses números. 

    — É por isso que não vamos atacar eles de primeira! — Baret corrigiu. — Só precisamos que a Carreta seja consertada. Se fizeram isso, libertamos os prisioneiros e todo mundo fica feliz!

    — Tsc, sabe que esse plano aí vai dar problema, né, chica? — Deu uma última tragada no cigarro e em seguida jogou no chão, pisando em cima dele. — Matamos uma caralhada deles, eles não vão ficar muito felizes com isso. Mesmo que consertem a Carreta… Não quer dizer que vão nos deixar ir embora. 

    — É, mas não dá para ficar aqui! Talvez nós não conseguimos matar todos se der merda, mas alguns, a gente certamente consegue. Se eles tiverem algum neurônio na cabeça, vão querer evitar perdas desnecessárias!

    — E se nos matarem, eles conseguem pelo menos duas slingers. CINCO, se conseguirem pegar o Quincas, Axel, e a slinger da Arya que está na Carreta. 

    Baret desviou o olhar e fez uma expressão frustrada. A lógica de Nil era um banho de água fria para alguém imundo. Horrível, mas necessário. Vendo o impasse que havia, Arya levantou a mão.

    — Hã… a gente pode tentar tirar a Carreta daqui. Se afastar o suficiente para não nos acharem tão facilmente. 

    — Como? Ela não funciona de jeito nenhum. 

    — Quincas e Émile, o quão longe vocês conseguem acertar um alvo?

    Os dois se olham e pensaram. Responderam logo em seguida. 

    — Uns quarenta metros, se for o tamanho certo? Isso no olho, é claro — respondeu Quincas. 

    — A minha média recorde no estande de tiro é tipo, trinta e cinco metros. Mas posso tentar passar desse limite. 

    Os olhos de Arya brilharam. 

    — Ok! Escutem o meu plano: se pegarmos alguma dessas sucatas, grande o suficiente para ser um alvo fácil, mas pequeno o suficiente para carregar na mão, e posicionar ele o mais longe possível, a gente pode usar o feitiço do Quincas para trocar a posição da carreta com a sucata, não é? E vamos intercalando entre eles dois. Se tudo der certo… a gente consegue se locomover, o quê? Um quilômetro, talvez?

    Quincas ficou em silêncio, sua expressão ficou séria. Fez cálculos dentro de sua cabeça, até um sorriso se abrir. 

    — Isso na real pode funcionar! Vai levar alguns segundos para cada troca e para levar a sucata para longe, mas funciona! 

    — Por que faríamos isso, em primeiro lugar? — Nil questionou. 

    — Deve ter alguma vila próxima, não é? Podemos questionar um dos prisioneiros sobre isso, e perguntamos também a localização da base deles, para tentarmos ir pelo caminho oposto. Talvez não conseguimos chegar tão perto… Mas com certeza longe o suficiente para eles não nos acharem! E quem sabe, conseguimos chegar numa vila a pé para pedir ajuda!

    Todos os olharem se voltaram para Baret. A última palavra só poderia ser dela. 

    — Não tenho problema com esse plano se vocês dois me garantirem que vão conseguir acertar todos os tiros. — Quincas e Émile não hesitaram: sorriram e fizeram positivo com a mão de maneira sincronizada. — Tá bom… Me dem um minuto, eu vou questionar os caras. Procurem uma sucata e… Bem, coloquem o Axel na Carreta. 

    Todos foram fazer seu trabalho. Baret pegava um dos reféns e os deixava sozinhos numa das casas, fazia todas as perguntas e em quando terminava, botava-os para dormir com um coice forte nos seus queixos e pescoços. 

    Embora muito não dessas respostas satisfatórias, conseguiu encaixar os pontos: a basa principal da gangue deles ficavam cerca de doze quilômetros ao norte, e a vila mais próxima, controlada por uma gangue rival, cerca de 7 quilômetros em direção leste. 

    Quando terminou os interrogatórios, foi até o resto do grupo que terminavam as preparações. Tinham separado um galão de combustível enferrujado e um poste de trânsito. Após Quincas colocar Axel na Carreta, estufou o peito e disse: 

    — Beleza pessoal! Vamos fazer assim: duas pessoas ficam responsáveis em segurar os lixos e posicionar eles, é uma puta duma corrida, mas vale a pena! Um fica na Carreta e outro corre para colocar a sucata, aí quando trocarmos de posição, o que fica na Carreta corre, e o que ficou para trás corre até a Carreta, entenderam?

    — Um corre e outro fica, depois alternam… Tá, simples o suficiente. — Baret se encostou na Carreta, deu um suspiro e continuou: — A vila mais próxima fica em direção leste. Parece que ela é controlada pela tal da Gangue dos Varjões. O povo daqui é bom com nomes, hein. — Baret coçou o cabelo, mordeu os lábios e apontou em direção à vila. — São uns oito quilômetros daqui. Fora de questão da gente conseguir fazer a Carreta chegar só no tiro. 

    — Estou presentado um “mas” — comentou Nil. 

    — Mas nada. O plano continua o mesmo. Eu tô vendo uma… mata? Sei lá, não é uma floresta, mas é mato. A gente tenta esconder a Carreta ali, e depois uma parte de nós segue a pé até a tal vila. É, me parece bom o suficiente, bora trabalhar!

    A maioria do grupo começou a andar, a única que ficou parada foi Arya. Hesitou um pouco em perguntar, mas após tomar coragem, fez a pergunta que todos, no fundo, queriam saber:

    — O que fazemos com os prisioneiros? A gente vai levar muito mais tempo se tiver que obrigar eles a andar… A gente só deixa eles aqui?

    Os olhares se focaram em Baret mais uma vez. A decisão caia sobre ela. Sem muito o que fazer, Baret bufou, pegou a arma de pregos e disse em tom cansado:

    — Comecem o lance do teleporte, eu lido com eles. 

    — Pera! Vai matar eles?! — Émile não acreditou no que tinha acabado de ouvir. — A gente pode só deixar eles desmaiados como a gente tem feito o tempo todo! Não é só… Mais fácil?

    — Sem supervisão, um deles pode acordar, se soltar e então vai ter uma duzia pessoas na nossa cola. Não sei você, mas eu prefiro não correr esse risco. 

    Émile tentou argumentar, mas não conseguiu. Olhou para as pessoas ao seu redor, esperando alguma espécie de apoio. Nada. Todas estavam quietas, silenciosamente concordando: aqueles homens não poderiam continuar vivos. 

    — Sério, gente? Pô, Quincas! Você deve ter uma solução! Você sempre tem!

    — Foi mal, Émile. — Quincas deu de ombros, coçando a barba com a ponta da slinger. — Mas as coisas por aqui são assim: ou você sangra, ou faz os outros sangrarem. 

    Sabendo que não haveria como discutir mais, Émile apenas abaixou a cabeça, derrotada. Não disse mais nenhuma palavra. Sem mais protestos, o trabalho sujo precisava ser feito. Baret arrastou cada um dos reféns desacordados para uma das cabanas, enquanto ouvia o som do resto do grupo mobilizando a estratégia, fazendo a Carreta trocar de lugar. 

    Era uma duzia de pessoas, nove homens e três mulheres, das mais variadas idades e formas, todos com a pele queimada pelo sol quente, desmaiados por golpes ou por desidratação. Segurando o lança pregos, não perdeu tempo: mirou na cabeça do mais próximo e…

    “Mas você realmente não sentiu nada ao matar pela primeira vez? Um choque, ou arrependimento?”

    … Foi incapaz de atirar de primeira. 

    Não era pena, muito menos algum sentimento parecido com arrependimento. 

    — Que irritante…

    Independente do que era aquilo, não foi forte o suficiente para impedir o inevitável. Baret apertou o gatilho e pregou a cabeça do primeiro homem a interrogar. Foi certeiro, e a respiração dele parou pouco a pouco, até meramente morrer. 

    Nem sequer jorrou sangue. 

    O próximo era um homem mais jovem, loiro, depois um trintão pardo; a lista continuou: uma mulher careca, um moleque que talvez nem tivesse passado da maioridade, um senhor que já deveria ter se aposentado, um homem negro com uma cicatriz gigante no rosto, uma mulher com cabelo ondulado e sem um dos seios, uma mulher muito parecida com a primeira ao ponto de talvez serem irmãs, um homem que usava óculos e um homem que faltava metade do braço. 

    Onze mortes. Alguns não morreram com o primeiro disparo, e precisaram de um segundo prego no coração para morrer. Faltava apenas mais um. 

    Baret deu um suspiro e andou sobre os corpos até o outro lado da sala. A madeira podre rangia e por vezes parecia que desbaria com o sangue que absorveu. Apontando a pistola para a cabeça dele, notou algo: ele estava com os olhos semi-abertos, eram vermelhos sangue. 

    Apertou o gatilho. A cabeça subitamente se virou, e o prego que estava indo em direção ao meio da testa acertou no ouvido. O homem nem precisou se apoiar para levantar, a força do ódio e puro desejo de sobrevivência, somado a litros de adrenalina, foi o suficiente para forçar suas costas a levantarem. Mas foi traído pelos braços e pernas amarrados, perdeu o equilíbrio e caiu no chão mais uma vez. Quando percebeu isso, os olhos começaram a lacrimejar. 

    — Não me mata! Eu tenho um filho! Preciso botar comida na mesa! — A boca estava quase espumando de raiva, a expressão de fúria não combinava com as lágrimas e os gritos desesperados. Sua boca dizia algo, mas seu instinto queria outra coisa. 

    Baret, que tinha dado alguns passos para trás para escapar de qualquer ataque, ficou sem reação. Olhou de relance para a janela empoeirada, e podia ver, mesmo que pouco, o seu grupo. Aquilo foi mais que o suficiente. Guardou a arma de pregos e pegou o seu revólver, conferiu se estava carregado e puxou o cão da arma. 

    — Por favor! Por favor! Ele só tem a mim! A-a m-mãe dele morreu no parto! Por favor… — calou-se quando sentiu o cano frio da arma na testa. Fechou os olhos com toda a força que tinha. E então… 

    O som ecoou pela cabana. 

    . . .

    Levou duas horas a mais que o planejado para o pequeno exército de sucateiros chegar ao seu antigo posto avançado. Dos sessenta homens que estavam ali, cinquenta e sete estavam a pé e três em um carro, isso, se aquela velharia pudesse ser chamada assim. Era uma lata-velha com quatro rodas e um motor primitivo, movido a combustível. Mal havia uma lataria que pudesse proteger o carro. Quilos e mais quilos de fumaça negra eram jorrados para cada dez metro que aquilo andava, isso, quando não dava defeito. 

    — Quem fez esse… troço? — questionou Ramona, sentada no “trono” de trás do carro, com a cabeça apoiada sobre o punho.

    — F-fui eu, mãe — respondeu um dos homens que andava ao lado do carro — o a-a-antigo pai me chamava de Sir Jerry…

    — Esse é o pior carro que já vi em minha vida. Por que fazer um lixo como esse quando você tinha peças tão boas para os lanças-chamas e armaduras? 

    Jerry tremeu. 

    — A-as armas e armaduras sagradas são a mais alta honra que um dos nossos pode receber. São f-f-feitas de tecnologias especiais, difíceis de compreender… Se eu as desmontasse para fazer um motor, eu poderia acabar…

    — Entendi, é ruim demais para fazer algo decente. Graças a você, perdemos horas do nosso tempo. — Ramona levantou-se do trono e desceu do carro em movimento, tomando a frente do pequeno exército. Quando chegaram de fato na vila, procuraram, mas não acharam um único indício do tal grupo de invasores e sua montaria, além dos diversos corpos. 

    — Impossível… — O mesmo homem que escapou do ataque bateu o punho numa das paredes — Como pode o carro ter desaparecido sem deixar marcas de pneu?!

    — Não precisam deixar marcas de pneu. — Ramona o corrigiu, apontando para marcas no chão. Eram marcas retangulares, pesadas. Indo em direção leste, elas apareciam a cerca de quarenta metros uma da outra. — É o feitiço daquele cara… Foram para mata alta, é? Vão ser caçados pelos alíopes a noite…

    — Mãe, suas ordens?

    — Cale a boca, estou pensando. 

    Ramona pegou a slinger e usou a mira como telescópio. Não dava para ver muito, mas conseguia ver dali algumas árvores altas. 

    — Para leste tem alguma vila?

    — Hã… T-tem o quartel-general dos Varjões, a uns oito quilômetros, 

    — Entendi. Tá, vamos lá então, não devem ter ido muito longe.

    — Hã?! — Jerry correu para frente de Ramona, se pondo como uma parede. — N-não pode! Ou melhor, não deve! Mãe, essa mata é território do El…

    — Tá querendo morrer? — Ramona ignorou completamente o aviso, passou por cima dele, como se fosse lixo. Poucos passos antes de entrar na mata, ordenou: — Não ligo para o que acham aqui. Vão até a vila da outra gangue, e se o grupo que estamos caçando estiver lá, ofereçam alguma coisa para eles os entregarem. 

     Não esperou uma confirmação, começou a andar sobre a mata, mas ouviu de trás os diversos “Sim, mãe!” vindo da gangue. 

    As marcas no chão estavam desaparecendo na medida que adentrava ainda mais sobre o mato. O solo fofo e a grama resiliente ocultaram qualquer pista que poderia ter sido deixada. Ainda assim, aquilo era o suficiente para Ramona. 

    — Na melhor das hipóteses, aquele velho deve ter uns cinco ou seis recarregamentos, mantendo a média de quarenta metros por tiro… Isso é uns dois quilômetros, no máximo. Não sei o quão grande é toda essa área, mas eles não chegam a vila. Se estão levando o carro com eles, é importante. 

    O plano para si era mais que óbvio:

    Iria caçar cada um deles. 

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