Índice de Capítulo

    — E você? O que acha da cancelada do momento? — o apresentador do podcast perguntou enquanto dava uma tragada no seu cachimbo. — Drama ou justíssimo?

    — Vamos combinar, né! Pegar a mulher do cara só para matar ele num duelo oficial, beleza, conceito de estratégia. Matar um gunslinger só para achar uns números que na cabeça da pessoa, vai levar pra um tesouro é de um mau-caratismo que olha… Por isso que no meu mandato…

    Essa era uma conversa comum de um podcast comum. Em notas oficiais, por outro lado:

    “Nota de repúdio: a Universidade Regional de Romaniva vem por meio desse comunicado informar que não temos nenhuma ligação com Baret Leone e que ela jamais foi uma aluna em nossa instituição. Qualquer conexão ou diploma nosso que ela clama ter, é no mínimo, fraudulento. Acreditamos que a cultura dos gunslingers faz parte do legado da nossa cidade, por isso, respeitamos os costumes e tradições perante a eles, mesmo que não sejam necessariamente citados em lei. Matar um gunslinger e não clamar sua arma para si, é um grande desrespeito. Damos nossas condolências para os familiares do falecido.”

    E não parava nisso. No Actua, o assunto estava nos trendings topics por quase um dia inteiro. 

    “Hoje vou me encontrar com a esposa de Josh Amaldoa, na qual foi vítima de uma grande manipulação de Baret. Eu não posso deixar isso passar impune. Peço a todos os meus seguidores para compartilhar a entrevista! #viboratalarica #justiçaporjosh #naopassarao

    “Aí gente, e essa Baret aí que fingia ter diploma pra dar aula particular???? Como os pais podem deixar suas crianças com uma mulher dessa?”

    “Nossa, quem diria que deixar os gunslingers jogados assim não daria ruim? Tinha que ser que nem Benzaiten, onde o estado controla todos os gunslingers. Não tem duelo, não tem toda essa zona. A gente precisa mais disso por aqui.”

    Tudo isso o dia todo e mais um pouco. 

    Baret mantinha seus olhos fixos na tela, lendo cada comentário, post e nota de repúdio que surgia, tudo isso enquanto ouvia os inúmeros podcasts que estavam rolando. Todo esse drama focando em apenas uma coisa: nela. O fato de ter matado um gunslinger apenas para não pegar a sua arma especial como prêmio foi o suficiente para revoltar a população. E não há coisa mais perigosa que uma população revoltada e com acesso às redes sociais. 

    Deu uma colherada no seu pote de sorvete e engoliu tudo de uma vez. Passou a mão sobre o olho, tentando limpar as lágrimas e evitar que a maquiagem estragasse mais ainda. Não deveria ser qualquer coisa que deixaria ela tão abalada, mas…

    — Meu diploma! Porra, eles tão fingindo que meu diploma é falso! — Colocou o notebook de lado e levantou da cama. — Trinta horas! Em um dia eu perdi meu diploma, os pais dos meus alunos cancelaram as aulas e noventa por cento dos políticos tão me usando de escada eleitoral! Que filhos da puta!

    Andou em passos pesados até a cozinha, o que não levou muito tempo no seu apartamento de um quarto só. Abriu o freezer e jogou ali o pote de sorvete, sem se importar com mais nada. Ficou indo de um lado para o outro, tentando pensar alguma coisa, algum pronunciamento ou uma estratégia. Já viu muitos cancelamentos em sua vida, e não mentiria: participou de alguns também. Mas viver na pele? No máximo um bullying ou outro nos tempos de escola. 

    — Faço um pronunciamento? Não, isso só vai jogar lenha na fogueira. Processo? Não! Vai demorar muito, sem contar o dinheiro que eu gastaria! Só fico em silêncio e espero acabar? Como que eu vou me sustentar desse jeito?! — Colocou as mãos no cabelo, puxou com força o suficiente para alguns fios serem arrancados.

    Estava começando seriamente pensar em fazer um vídeo de desculpas quando o podcast que estava ouvindo em segundo plano tocou num assunto:

    — Então, sobre o tesouro do Tálio que você perguntou mais cedo… — O convidado fez uma breve pausa. — Até existem algumas evidências históricas que deixariam a entender que o Tálio, após criar as slingers, mas antes de se matar, teria criado um tesouro, um bunker, alguma coisa escondida. Mas olha, fazem duzentos anos desde que isso ocorreu. As duas luas vão cair em Vulcano antes da gente achar esse negócio, isso se alguém já não achou e nunca disse nada. Enfim, voltando ao assunto de antes: de fato, a Baret sofre de uma sociopa… — Ela fechou o computador antes que completasse aquela maldita frase. Ainda assim, aquilo tinha servido para deixar seus pensamentos fluírem. 

    — Não fiz isso pra nada, é pra achar o tesouro… É, é! É pra achar o tesouro! Então… — Voltou a andar pelo apartamento. Estava com os olhos brilhando; sentiu uma epifania dominar sua cabeça. — Então eu preciso achar o tesouro! E ficar aqui não vai adiantar! Isso, isso! Se eu sair pelo mundo como mercenária, devo conseguir achar o tesouro! E aí, e aí!

    Começou a pular de empolgação, dando risadas e mais risadas. Correu no apartamento de tão animada que ficou. Todo seu bom humor acabou quando bateu o dedinho no pé de uma mesa.

    — PORRA! Ai… Caralho, merda… — Agachou e segurou o pé enquanto repetia cada xingamento que sabia. Os olhos ficaram vermelhos de lágrimas novamente. Deitou-se no chão e ficou ali, caída que nem uma fracassada. A realidade fria bateu em seu pé como se fosse um martelo. 

    A verdade se pôs ali: sozinha, não iria muito longe. 

    Levou alguns minutos para se levantar. Colocou uma roupa casual e decidiu sair de casa, dar uma volta, espairecer os pensamentos. Já era de madrugada, mas a cidade ainda estava viva. As ruas cheias de neon eram o suficiente para iluminar o local como se fosse dia. 

    Coberta por um capuz, tentava andar sem ser reconhecida. Estava contida, sozinha, censurada e cancelada. Sentia-se como um cachorro que mordeu a pessoa errada e agora está presa em uma jaula. 

    A multidão ao seu redor não a reconhecia, mas ainda havia aquela ansiedade: quando eles iriam perceber? O que fariam se descobrissem? Xingariam ela? Cuspiriam? Ou iriam gravar ela sendo espancada, espalhando essa justiça na internet para ganhar milhares de curtidas?

    “Por que não trouxe o meu revólver?” pensou consigo mesma. 

    Sentou-se num banco qualquer. De cabeça baixa, olhava apenas os pés de cada pessoa passando por ali. 

    — Forte o suficiente para se destruir, fraca demais para reconstruir. É foda… 

    Não levou muito tempo até alguém sentar ao seu lado. Era um senhor imundo, de barba grisalha e roupa ruim. O cheiro? Cheiro que todo mendigo tinha: o cheiro de fome, de pobreza e de azar. Baret a princípio não se importou, na verdade, pouco percebeu ele ali. Apenas acordou para realidade quando ouviu suas palavras roucas. 

    — Tem fogo?

    — Hã? — Acordou do transe, virou o rosto ainda escondido pelo capuz. — Não. Foi mal. 

    — É claro que não tem. Ninguém nessa cidade tem fogo pra mendigo. — Fez cara feia e cruzou os braços. Os olhos de Baret olharam ao redor, enquanto ela tentava pensar em algo. Após muito pensar, respondeu à coisa mais óbvia para si: 

    — Foi mal? Eu não fumo. 

    — Mentira, todo mundo nessa cidade fuma — afirmou. 

    — Eu não. 

    — Com esse look de traficante? Corta essa. Me diz aí: quanto eu vou precisar pagar para tu acenderes o isqueiro? Um crédito? Ou melhor, corta logo essa bobagem e me vende o negócio. — Colocou a mão no bolso e de lá tirou alguns trocados. Seu semblante deixava claro que estava sério em suas palavras. 

    — Mano, eu não sei do que tu tá falando. De verdade. 

    — Tsc, é cada uma… — Guardou o dinheiro e colocou a mão na barba, coçou um pouco e então, falou com tom seco. — Sai do meu banco então. 

    — Seu banco? Esse banco é público. 

    — Público até certo ponto. Deixa de ser seu quando você para de pagar os impostos. 

    — Eu pago meus impostos! Pera… — Notou um detalhe. — E você paga?

    — Claro que não. Eu tenho cara de quem consegue pagar algo além de droga? 

    — Então como esse banco seria seu?

    — Simples. Me adulterei dele. Eu peguei do estado, logo sou inimigo dele. Até o estado vir guerrear por esse banco, eu sou o seu legítimo dono. 

    Baret deu um suspiro. Não pensou que sua noite seria resumida em conversar com um maluco viciado. Mas algo dentro dela mandou continuar. 

    — Acho que vou guerrear com você e tomar metade desse banco, pelo menos até a minha bunda começar a doer. 

    — Neste caso, você também seria inimiga do estado. 

    — Já devo ser mesmo, dada a quantidade de político que está me usando de “farm” de votos no Actua. Se pá, até o presidente vai fazer um pronunciamento. 

    O mendigo abriu os olhos por um segundo, como se tivesse finalmente entendido algo. 

    — Você que é a Baret!

    — Caralho, até mendigo sabe quem eu sou?! — Jogou as mãos no ar, apenas para elas caírem em cima de suas coxas. — É. Sou eu mesma. Pode me bater, ou me chutar, ou sei lá. Só… vai logo. 

    — Nem ferrando. — Ele recuou um pouco. — Tô todo desnutrido. Você iria me destruir. 

    — É.

    Um silêncio. Ambos ficaram em silêncio por alguns segundos, vendo gente cruzar sem ao menos fitar na dupla do banco. Passavam os mais variados tipos de pessoas: pessoas de terno, pessoas de regata, pessoas com roupa que dá vergonha só de ver. Pessoas normais em sua diferença e pessoas diferentes em sua normalidade. 

    — Eu queria ser agiota — o mendigo comentou com uma voz nostálgica — o maior! Mas para ser agiota, precisava de dinheiro, aí entrei nas apostas… Ferrei tudo numa única noite. Só faltava me comer! Mas não, mantive meu orgulho. 

    — É foda. Acho que a moral da história é não se envolver com gente que não deve. 

    — Não, não, a moral da história é que eu devia ter apostado a bunda mesmo. 

    — Como que é?! Tipo… Não, cara. Não. — Ela negou com a cabeça enquanto um semblante de nojo a dominou. 

    — Mas é verdade! Olha como eu estou agora: morando na rua, viciado e conversando com você. Podia ter sido diferente! Bastava eu ter apostado a última coisa que eu tinha! Mas não… Preferi me foder do jeito mais difícil!

    — Tu tá mandando eu ir me prostituir? Porque se for o caso, eu volto pro meu apartamento, pego meu revólver e tu vai tomar três tiros para ficar esperto.

    — Não, não! Tipo, só se você quiser! O que eu tô falando aqui é simples: se você tem uma oportunidade de consertar as coisas, use ela! Não importa se é arriscado, maluco, ou sei lá. Se é a tua última chance, a palavra “limite” não deveria existir. Só vai. 

    Baret parou por um segundo. Pensou. Pensou mais um pouco e lentamente, começou a concordar com a cabeça. 

    — Cara, você tá certo. Se eu já tô fodida mesmo, o jeito é ir com tudo. Se eu me foder mais ainda depois, qual a diferença? Caralho, tu é um gênio! — Levantou do banco, deu um sorriso e tirou o capuz. No exato momento que tirou, alguém que passava cuspiu no seu pé. Isso não abalou seu sorriso. — Eu vou com tudo agora mesmo! Valeu chefia!

    — De nada. Agora, me dá fogo? Sério, eu quero muito fumar um beck agora. 

    — Já falei que eu não fumo. 

    — Então me dê um dinheiro. 

    — Só tenho PIX. 

    — ENTÃO SAI DAQUI, SUA VAGABUNDA!

    Baret saiu, mas saiu sorrindo. Chegou no apartamento e foi direto pro seu notebook. Abriu o bloco de notas e começou a escrever:

    “Bom dia, boa tarde e boa noite! 

    Entendo que estou deveras impopular com as recentes polêmicas, entretanto, eu ainda tenho um sonho a cumprir e não será um cancelamento que vai me parar! Após muito refletir, percebi que Romaniva já me deu o que tinha que dar, então, vou pôr o pé na estrada e explorar o mundo, em busca de gunslingers para achar novos códigos e desbravar finalmente o tesouro do Leonardo Tálio. 

    Entretanto, sou uma mera mulher que sequer é uma gunslinger. E como as estradas são perigosas e escassas, vou precisar fazer uns trabalhos mercenários pra ganhar um money e pra isso preciso de companheiros, preferencialmente fortes! 

    O trabalho será simples, mas demorado: eu e mais o grupo vamos viajar pelo mundo, fazendo todo o trabalho mercenário (ético!) que encontrarmos, dividindo o lucro igualmente, além de catalogar todos os números de slingers que acharmos (mais detalhes para quem for contratado!). Assim que acharmos o tesouro, eu ficarei com a primeira slinger e todos os outros membros ficarão com partes iguais do resto. 

    Fácil né?! É uma oportunidade de ouro para aqueles que querem riqueza, conhecer o mundo e fazer amigos! Gostou? Mandem seus currículos! Mais informações e regras no post abaixo!” 

    — Perfeito! Agora, preciso de um nome… Qual vai ser o nome do grupo…? — Olhou pela janela e viu algo: uma carreta passando. Uma epifania surgiu em sua mente. — Carreta… Carreta… CARRETA FOGUETEIRA!

    Continuou escrevendo e quando finalmente terminou, jogou tudo no Actua

    Só faltava postar. Faltava apertar o botão de postar. 

    Respirou fundo. Aquela era sua aposta final, sua última ficha para vencer ou não. Não havia tempo para hesitar. Sem esperar um único minuto…

    Apertou o botão de postar. 

    E não levou mais do que dez segundos para uma notificação aparecer em sua tela: “seu post recebeu 50 dislikes”. 

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