Capítulo 3 - Para entrar na história
“A construção da América pode ser chamada de uma verdadeira colaboração entre povos. Inicialmente, os europeus e povos indígenas colaboraram na construção das primeiras cidades. Após algumas décadas, africanos também se juntaram ao projeto, se tornando uma parte essencial da formação dos países desse novo mundo. Especialistas da agricultura, eles foram responsáveis pelas grandes plantações de açúcar. Os europeus, por outro lado, ficavam na administração e na navegação…”
O homem lia atentamente o livro. Seus olhos fixados passavam pelas palavras do texto sem pausa alguma, assimilando cada uma daquelas informações. Aquela não era a primeira vez, nem seria a última, que leria aquele livro. Toda vez que se sentia cansado, toda vez que se sentia desmotivado, bastava abrir uma página aleatória e numa questão de minuto, sua fé era restaurada.
Ouviu uma batida na porta. Rapidamente, fechou o seu livro “A grandiosa história da humanidade” e virou sua cadeira em direção à porta, apoiou os braços na mesa e disse numa voz um tanto cansada:
— Pode entrar.
A porta se abriu e uma mulher com roupas militares e cabelos curtos e escuros entrou. Segurava um tablet com sua mão, mexendo um pouco nele por alguns segundos, até finalmente olhar diretamente ao homem.
— Com licença, senhor Loid, gostaria de confirmar uma coisa: apareceu um compromisso chamado “Discurso, às 19:30” na sua agenda. Eu tenho quase certeza que não fui eu que pus tal coisa. Foi você que colocou?
Loid deu um suspiro, ajeitou seus óculos e deu um sorrisinho envergonhado.
— Sim, desculpe, Ahika, acabei esquecendo de lhe informar. Peço também que chame a imprensa para cobrir o discurso, todos devem chegar ao menos trinta minutos antes.
— Certo. — Seus dedos eram incrivelmente velozes, pois numa questão de alguns segundos, já tinha cumprido a ordem. — Pronto, mandei o convite para toda a imprensa da cidade. Alguma outra observação ou informação que eu deva saber?
— Não, é isso. Por sinal, amanhã é aniversário do seu filho, não é?
A mulher o olhou um pouco confusa e até mesmo surpresa dele ter trazido aquele tópico. Ficou em uma postura mais casual e abraçou o tablet.
— Sim, qual o motivo da pergunta?
Loid coçou o cabelo e falou num tom simples:
— Emende amanhã com o fim de semana. Acho importante você poder aproveitar um tempo com ele.
— Ah… — A mulher ficou sem palavras por um instante. — Senhor, você tem certeza?
— Não se preocupe, uma folga não faz mal, não é? — respondeu e deu sorriso — eu irei informar a equipe de gestão, então não se preocupe com sua folha de pontos. Você pode ir.
Após alguns segundos processando o que tinha ouvido, Ahika apenas confirmou com a cabeça. Tinha um sorriso contido em si.
— Certo… Obrigada. Com licença. — E saiu da sala, fechando a porta.
Loid ficou sozinho mais uma vez. Abriu seu computador e digitou um e-mail para a gestão informando da folga de sua funcionária. De certa forma, não sabia exatamente o porquê de estar fazendo isso, simplesmente parecia o certo a se fazer. Talvez era porque sabia que os próximos meses seriam cheios.
Na verdade, não importava, o que tinha sido feito estava feito. Ele sobreviveria um dia sem secretária.
— Talvez eu devesse tirar folga amanhã também… — Se deixou soltar na cadeira, tomando pequenos impulsos com seus pés e fazendo ela girar. — Nah… Amanhã vai ser cheio, e depois de amanhã… E depois…
Aquela era uma vida cheia de coisas para se fazer. “Trabalho duro e árduo é o pilar da humanidade”, esse era o lema de sua turma da escola de quando era criança. Na superfície, seu trabalho era simples: assine aquilo, diga isso, mande outro fazer um pouco disso. Ao mesmo tempo, se tratava do trabalho mais importante de todos: o de tomar decisões por uma cidade inteira.
Parou de girar com sua cadeira no momento que se sentiu um pouco enjoado. Deu mais um suspiro de cansaço e foi até sua mesa novamente. Estalou os dedos e voltou a digitar.
— “A construção da América marcou a história moderna…” Não, muito americano. Que tal…? Ah, já sei! — Deletou a frase anterior e começou a reescrever. — “O Japão foi o primeiro país a utilizar energia nuclear, e o motivo disso se deve…” Não, também não…
Discursos eram um fraco seu. Como líder, ele precisava ser bom nisso. Mas tomar decisões e anunciar decisões são coisas muito diferentes. Num discurso, ele precisa fazer com que a informação seja palpável e inspiradora. Talvez essa fosse sua grande dificuldade. Ele não queria que fosse simplesmente fácil de entender, queria que cada discurso seu fosse como uma flecha que penetrava fundo nos corações das pessoas. Mais do que um mero discurso, uma verdadeira canção de Orfeu.
Por isso estava lendo o livro mais uma vez, para ver se ganhava alguma inspiração. Tinha-o lido tantas e tantas vezes que, muito provavelmente, qualquer inspiração que fosse possível de se tirar de lá tinha sido usada. Mas agora, com o pouco tempo que tinha, buscar outro livro para achar inspiração seria complicado.
Levantou-se da cadeira e começou a andar em seu escritório. Era certamente confortável; feito com as madeiras mais caras, cheias de poltronas e sofás de tecidos com cores e texturas diferentes; além dos mais diversos apetrechos, como uma geladeira que se abastecia sozinha. O tipo de lugar que qualquer um não se importaria de morar pelo resto da vida.
Decidiu parar de divagar. Deu leves tapas na sua cabeça e tentou entrar no estado de foco.
— Ok, vamos ver… Tem que ser sobre união! Algum exemplo de união do passado é fundamental para começar o discurso. América parece errado, energia nuclear no Japão… Hm, chato também. Talvez algo do antigo governo mundial da Terra? Não é uma má ideia…
Sentou em um dos sofás e encarou o teto. Os pensamentos iam e vinham em uma velocidade assustadora. Metodologias diferentes passavam por sua mente em uma questão de segundo.
— Depois disso, anuncio a notícia. Precisa ser feita de forma calma, metódica. Algo grande como esse não é digerido de forma fácil, se eu tentar aumentar ou diminuir ela, as coisas podem sair de controle. Preciso ser coeso e factual. Por fim, a declaração…
Olhando daquela maneira, era realmente mais simples do que parecia. Bastava estruturar o texto, ou melhor dizendo, o discurso em apenas três partes. Passado, presente e futuro. Levantou-se brevemente apenas para pegar seu tablet, aquele sofá estava lhe dando ideias boas demais para desperdiçar.
Pela primeira vez em muito tempo, parecia que tudo estava fluindo perfeitamente.
. . .
Diversas câmeras estavam apontadas ao palco. Pelo menos doze jornalistas diferentes e outros membros importantes do governo estavam lá, além é claro de centenas de cidadãos da cidade de Benzaiten. Foi um anúncio surpresa sobre um “discurso oficial”, mas que obviamente deixou todos muito ansiosos para o que quer que fosse.
E então, exatamente às 19:30, o homem apareceu no palco. Andava calmo, estoico. Acompanhado de seus guardas, foi até o centro do palco, atrás da mesa de discurso. Ajeitou alguns papéis, testou o microfone, falou brevemente com seus subordinados, até finalmente começar.
— Boa tarde a todos. — Flash de luzes piscara, deixaria qualquer um que não estivesse acostumado cego. — Agradeço a todos que disponibilizaram um pouco do seu tempo livre para vir aqui. O anúncio que faço hoje é de… — deu uma breve pausa, ajeitou seus óculos. — vital importância. Porém, antes, gostaria de comentar sobre algo. Uma parte da história, nossa história.
Mudou a página de seu papel, deu uma breve lida. Voltou seu olhar novamente à plateia.
— Desde que nos reconhecemos como seres humanos, olhamos as estrelas e nos perguntamos o que havia além. Humanos querem ir para todos os lugares que os seus olhos podiam ver, mas por séculos, tivemos que nos contentar apenas em sonhar. Domamos os céus no começo do século XX, quando os primeiros aviões, seja dos Irmãos Wright ou de Santos Dumont, foram inventados. Algumas décadas após tomarmos o céu azul, fomos além! Alcançamos a imensidão que chamamos de espaço, vimos o lindo azul da Terra pela primeira vez e então… Alcançamos a Lua, o satélite natural da Terra.
Fechou os olhos por um breve momento, um pequeno sorriso pôde ser visto em seu rosto.
— Os historiadores dizem que a maior conquista humana foi a linguagem, sendo essa a base de todas as coisas. E de fato, sem ela isso não seria possível. Mas pessoalmente, sair da terra que nos prendia com maquinários tão complexos, através da colaboração de milhares, não, milhões de pessoas, foi, na minha opinião, o verdadeiro auge da humanidade, o que solidificou nosso verdadeiro potencial e mostrou a todos o que eramos realmente capazes de fazer. Contanto, é claro, que fizermos uma coisa:
O povo esperou em silêncio ansiosamente.
— Colaborar. Essa é a base da sociedade, o que nos diferencia de todos os animais. A capacidade de colaborar, não apenas pelo objetivo de sobrevivência, mas de buscar objetivos e metas que vão muito além da necessidade. Foi isso que nos permitiu prosperar, e mais ainda… Foi o que nos permitiu chegar em Vulcano. — Olhou para cada pessoa daquela plateia. — A morte da Terra… Foi um evento triste. Não sabemos de fato o que aconteceu com os humanos que ficaram ou que estavam nas outras naves. Mas também somos parte da humanidade! Enquanto não descobrimos o que ocorreu com os outros humanos, devemos nos focar nessa humanidade, na nossa.
Mais uma pausa.
— Benzaiten foi quem iniciou a separação da humanidade aqui, como uma forma de escapar do racismo e preconceito que Orfenos praticava. Nós lutamos usando as primeiras armas slingers, abrimos espaço para outros grupos não contentados também se rebelarem e alcançar sua liberdade. Mas agora estamos fragmentados, e se quisermos alcançar as estrelas novamente, isso não pode continuar. A humanidade deve se unir mais uma vez, sermos somente um povo. — Sua cara se fechou, ficando mais séria. — Mas o governo de Orfenos e Romaniva não querem isso. Intoxicados pela ganância e individualismo, eles apenas querem manter seus luxos, construídos com o esforço e suor da população e mantidos por mentiras malditas. Como um ser humano, não posso deixar isso continuar acontecendo! Por isso…
E então, fez algo que simplesmente chocou todos que estavam vendo. Abriu a palma da sua mão, mostrando seus cinco dedos.
— Cinco anos. Em até cinco anos, nós de Benzaiten iremos unificar a humanidade mais uma vez; para que a paz e o progresso sejam alcançados.
A plateia começou a conversar entre si, muitos comemoravam a fala enquanto outros tinham suas dúvidas. Mas apenas uma delas foi direcionada diretamente a Loid.
— Isso é uma declaração de guerra?!
Loid ficou em silêncio por alguns segundos, até dar uma resposta:
— Interprete como bem-quiser. Entretanto, esse não é o único anúncio que farei. É obviamente uma declaração polêmica, dado a isso, decidi informar ao mundo sobre como a colaboração em prol do progresso pode nos trazer.
Todos ficaram em silêncio novamente.
— Povo do mundo, de cidadãos de Benzaiten que me ouvem aqui e agora e aqueles de fora que acompanham pela imprensa; hoje declaro que a humanidade deu um passo: nós fomos capazes de, pela primeira vez em dois séculos, recriar uma arma slinger!
Mais uma vez, o barulho dominou a sala, mas todos voltaram a prestar atenção no momento que Loid abriu sua boca.
— As slingers foram armas usadas inicialmente para nos separarmos e criarmos nossa cidade. Mas mesmo com seu potencial ilimitado, nunca conseguimos desvendar a forma na qual Leonardo Tálio foi capaz de criar tais armas. Devemos jogar seu potencial fora?! Devemos limitar elas para serem apenas instrumentos da morte? Claro que não! Hoje, apenas conseguimos replicar uma, mas faremos mais e mais. E a cada vez que criarmos uma slinger, vamos aprender um pouco. Inevitavelmente, iremos descobrir seus segredos mais profundos. Por isso quero que entendam: precisamos nos unir! Assim, iremos progredir mais rápido ainda! Eu conto com todos, cada um de vocês; inclusive aqueles de fora da cidade, pois somos todos humanos!
O barulho dominou, gritos de esperança, felicidade e glória atendiam nos ouvidos de todos. E, a fim de aumentar ainda mais essas chamas…
— Glória aos Humanos! — gritou Loid, com toda emoção que pode. E a população, até mesmo alguns jornalistas, repetiram, com tanta emoção ardente quanto ele.
“Glória aos Humanos!”
“Glória aos Humanos!”
“Glória aos Humanos!”
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