Capítulo 4 (Parte 2) - Entrevistas e Avaliações 1 estrela
Fora duas horas de preparação. Ademais, “Ednaldo Madeira Filho” estava pronto. A barba estava feita, seus longos e sintéticos cabelos loiros chamavam a atenção de todos que passavam por ele. Enquanto Axel caminhava com um sorriso de confiança no rosto, Baret andava com um pouco de cautela, tentando não chamar atenção. “Ednaldo” por sua vez, parecia estar gostando bastante.
“Eu to fabuloso” pensava “Ednaldo”.
Após alguns minutos de caminhada, chegaram no cartório. Era um local com estrutura precária: um prédio velho, de tinta seca. Seu interior não era muito melhor: era sujo e úmido. Baret jurava que tinha visto um rato passar quando entrou.
Havia somente uma única atendente no balcão. Com o local completamente vazio, mantinha-se mexendo no celular; levou um tempo até ela notar a presença do pequeno grupo, e quando notou, os encarou com seu olhar de peixe morto.
Baret e “Ednaldo” se aproximaram da atendente, enquanto Axel sentou numa cadeira da recepção.
— Posso ajudá-los? — Não havia emoção nenhuma em sua voz.
— Oi, então, a gente precisa de dois serviços, o primeiro deles seria… — Baret colocou a mão no ombro de “Ednaldo” e deu um sorriso largo — … Fazer um registro de gunslinger! Meu amigo aqui vem de uma vila selvagem, não tem nenhum documento com ele. Vamos precisar de um registro temporário.
— Tá — sem qualquer tom de animação, a atendente sequer moveu os lábios direito. Pegou um pequeno papelzinho debaixo de sua mesa e uma caneta. Colocou logo em sua frente, e não disse mais nada.
“Ednaldo” pegou o papelzinho. Era uma espécie de ficha que deveria ser preenchida com dados simples como nome, idade, local em que nasceu. O mais engraçado de tudo, e o que fez rir levemente, foi o fato que todos os tópicos tinham “opcional” ao lado.
Ainda assim, escreveu as informações que sabia, ou melhor dizendo, as que teve ideia para criar do nada. Decidiu colocar que nasceu numa vila qualquer que visitou anos atrás e que seu aniversário seria no dia 20 de outubro. Após terminar de preencher todas as informações, colocou a ficha de volta à mesa da atendente.
— Slinger. — Continuando sem emoção, a atendente pegou seu celular e colocou no modo câmera — Em cima da mesa.
“Ednaldo” pegou sua arma do coldre e fez conforme o mandado. Se tratava de uma pistola, parecida com uma .45 dos séculos antigos, com o cano um pouco mais longo e carregador pequeno. Seu metal prateado e seus detalhes dourados davam o ar de certa nobreza. A atendente tirou a foto, em seguida, sem avisar, tirou uma foto de “Ednaldo”. Começou a digitar algumas coisas no computador, imprimiu papéis, pediu assinaturas. Todo aquele processo burocrático que fazia o gunslinger ter um belo sono. “Ednaldo” só não puxava assunto por conta daquele olhar de peixe morto que a atendente tinha.
Após vários minutos, finalmente pareceu ter um fim. Uma última impressão foi colocada na mesa, e então, olhando tanto “Ednaldo” e Baret nos olhos, disse:
— Vai ser mil créditos.
— … Hein? — Ambos falaram em simultâneo.
— O pagamento pode ser feito à vista em dinheiro, PIX, caixa eletrônico, depósito ou boleto. Vocês possuem 30 horas para fazer o pagamento e sem confirmação do depósito, haverá juros simples de 20%. Com a falta de pagamento em até uma semana, será emitido um mandado de busca para o senhor Ednaldo.
Baret arregalou os olhos, ficando quase sem ar.
— Desde quanto registro de gunslinger é pago?!
— O registro temporário se tornou pago desde o começo do ano — informou.
Baret olhou para “Ednaldo” que olhou para Baret. De forma quase telepática, ambos perceberam que estavam quebrados demais para ter a mínima capacidade de pagar aquela taxa. Lentamente, e com uma face de desespero, Baret virou o rosto até Axel, que apenas assistia de camarote.
Ele não estava sorrindo, na verdade, estava tão surpreso quanto eles. Mesmo assim, ele perguntou:
— Tão olhando o quê?
— Você não teria dinheiro? Tipo, só pra pagar o negócio agora?
— Tá falando sério? — Axel afastou-se um pouco, mesmo que já estivesse a metros de distância. — Nem fodendo!
— Qual é! É pelo time. — Baret se aproximou.
— Isso aí é papo de esquema de pirâmide.
— Veja bem. — Ednaldo se aproximou também — Creio que um colega deve se sacrificar pelo outro. Além disso, se a gente não pagar agora, o valor só vai aumentar. Se a gente quer trabalho, a gente precisa disso pra agora.
Axel deu um suspiro longo. Cochichou “Que saco” e levantou-se. Pegou o celular, apontou para o QR code, e após alguns segundos, gritou em mau-humor.
— TÁ PAGO! Eu hein, vocês dois tão me devendo mil conto cada! E quero esse pagamento pra ontem. — Passando pelos dois, sentou-se novamente onde estava, e virou o rosto para o outro lado.
— Valeu! — Baret deu um sorriso. Teve a impressão que talvez, apenas talvez, Axel não era tão ruim assim.
A atendente digitou mais algumas coisas, pediu mais assinaturas, dessa vez, do grupo inteiro. E após uma longa, longuíssima burocracia.
— O grupo “Carreta Fogueteira” está formado. Adições ou retiradas de membros do grupo podem ser feitas no site do governo, utilizando-se do Código de Pessoa Física e assinatura digital. — E então, entregou uma carteirinha do próprio grupo em si.
Baret e “Ednaldo” deram um sorriso, enquanto Axel mantinha-se afastado e com rosto fechado. Cochichava para si como tinha se metido num golpe. Ainda assim, saíram juntos dali e após andar alguns quarteirões, Axel finalmente falou algo.
— Belê, agora que nossa querida… “Carreta Fogueteira” está formada, eu posso dar uma olhada na carreta? Quero saber qual é a lata velha que eu vou passar meus próximos dias. Porque se for lata velha mesmo, eu vou fazer uns ajustes.
— Não comprei ainda — Baret respondeu do jeito mais simples possível.
Silêncio por alguns segundos.
— Como que é? — Os dois homens perguntaram.
— Eu era professora e tô cancelada agora. Realmente acham que eu teria dinheiro pra comprar até mesmo o carro mais vagabundo?
— Achei que não seria tão burra de fazer um grupo de mercenários chamado “Carreta Fogueteira” sem ter a porra da carreta! Caralho, hein! — Axel gritou tão alto que diversas pessoas da rua olharam para o pequeno grupo. Mas Baret não recuou nenhum passo. Pelo contrário, manteve o rosto firme. E após alguns segundos de silêncio entre os dois, e com Quincas tentando falar alguma coisa para aliviar a tensão, Baret respondeu confiante.
— Eu tenho um plano.
Axel recuou uns passos, com a sobrancelha tão levantada que era possível ver ela acima dos óculos escuros. Cruzou os braços, e meramente disse: “qual?”. Baret pegou seu celular, digitou algumas coisas e mostrou a ambos: um site de notícias, falando especificamente do encontro diplomático de Orfenos e Benzaiten, que aconteceria em alguns dias para discutirem as falas polêmicas do presidente da segunda cidade.
— Isso aqui!
— O encontro diplomático de Benzaiten com Orfenos… Ah, pera lá! Tu não tá falando sério! — Axel indagou.
— O sê to! Esses encontros sempre geram uma porrada de contratação para mercenários. Os ricaços e o governo até podem ter seus próprios gunslingers, mas se qualquer merda acontecer, eles podem simplesmente culpar os mercenários que contratam. Logo, uma grana preta pode ser conseguida com isso. É só a gente se colocar como um grupo disponível e BANG! Vamos conseguir serviço.
— Não acha que essa parte de “culpar os mercenários” é um pouquinho preocupante? — O homem de óculos escuros argumentou.
— É, pode dar problema… Principalmente com Benzaiten… Ditadura… Declaração de guerra… E tudo mais… — Quincas comentou, com a mão no queixo, uma certa preocupação emanava de seu olhar.
— PRINCIPALMENTE COM BENZAITEN! Esses caras… são o suco de problema.
— É só a gente não aceitar de Benzaiten, duh. Pegamos algum serviço dos nobres de Orfenos, ou até de gente daqui. Vai ser algo simples: proteger algum cara importante ou algum lugar, nada de mais! — Baret respondeu certeira — confiem em mim! A gente vai conseguir dinheiro, pra caramba! Aí compramos nossa Carreta e já é!
Axel e Quincas trocaram olhares, porém não falavam nada. Fizeram gestos e expressões até parecer terem chegado a uma conclusão.
— Tá, vamos. — Axel confirmou com a cabeça. — Preciso que vocês tenham dinheiro pra me pagar mesmo.
— É. E eu preciso de dinheiro pra pagar ele. — Quincas apenas repetiu o que já foi dito.
Baret deu um sorriso. Entrou no site de contratação, colocando a Carreta entre os vários grupos disponíveis.
O gigantesco barco estava apenas a alguns quilômetros de chegar ao porto de Romaniva. “O Orfeno Voador” era, dentre todos os barcos, o mais luxuoso da cidade de Orfenos. Tão gracioso que parecia mais pairar sobre as águas do que de fato navegar por elas. Essa era a origem do nome.
Mas o que tornava ele tão especial era o seu interior: uma verdadeira mansão aquática. Seus quartos mais básicos eram melhores que noventa por cento de todas as acomodações de Orfenos, sua área de lazer era dotada de várias piscinas, toboáguas, bares com bebidas extremamente caras. Em resumo, era o navio perfeito para levar toda a comissão diplomática da cidade, liderada por ninguém menos que o dono e CEO da Water Inc., Atlantis Dayone, o príncipe democrata.
Liderando uma comissão composta por cinquenta e três membros e seus guardas, a sua missão era assegurar a paz entre as três cidades, prosperidade nas discussões, debates e negociações com Benzaiten. Era composta das mais influentes e capacitadas pessoas, o que, em Orfenos, significa apenas os que tinham mais dinheiro.
E isso explicava porque ela estava naquele barco, supostamente.
— Por que me trouxe aqui mesmo? — A garota perguntou, enquanto encarava o irmão mais velho. Estava sentada numa cadeira de veludo, fazendo ondinhas com os seus dedos em seus cabelos brancos e azuis.
— Essa é a quarta vez que me pergunta isso nessa viagem. — O irmão mais velho, Atlantis, respondeu. Tinha as mesmas cores de cabelo que a irmã e usava um óculos ligado a um colar. Era um homem parrudo, de braço grosso e torso forte, mas muito elegante no jeito de se vestir. Um CEO que passava o ar de respeito. Tomando uma xícara de café, sua expressão não demonstrava grande irritamento, mas sua voz já deixava claro o que sentia. Pelo menos, para alguém já acostumada a isso.
— Tá, mas diz dessa vez de uma forma mais simples.
— Hunf… Escute, Émile. — Colocou sua xícara de volta na mesa. — Para trabalhar na Water Inc., não… Em qualquer coisa, experiência é necessária. Estudar a experiência dos outros te leva até determinado ponto, mas não importa o quanto você leia as regras de um jogo, você apenas ficará boa nele se de fato o jogar. Essa viagem é para você aprender a jogar o “jogo”.
— Eu sei disso… — Émile desviou o olhar. — Mas agora? É um encontro diplomático logo com Benzaiten, nem você fez isso! NEM NINGUÉM DE ORFENOS! Imagine eu?!
— Não é como se eu fosse botar você para conversar com o presidente Loid — comentou — você vai fazer algo simples.
— Tipo?
— Contratação de mercenários.
— Ah, muito simples mesmo. Qual é a próxima coisa que vai me pedir pra fazer? Fazer bolo pra dar de presente diplomático?! — falou em tom sarcástico.
Atlantis ergueu a sobrancelha. “Por que fazer um bolo se poderia simplesmente comprar um?” pensou.
— Bom, deixe isso. Essa será sua função, contratar um grupo de confiança, tanto proteger você durante a sua estadia na cidade de Romaniva, quanto para guardar o pavimento leste da área de encontro.
— Hm… Espera aí…
— O que foi?
Émile não respondeu de primeira. Começou a pensar um pouco, o público deveria estar extremamente animado para saber como as negociações se desenrolam. Ela poderia usar isso e sua posição privilegiada dentro das negociações para gravar uma ou outra coisa. O sucesso parecia garantido.
Seus olhos brilharam, como se tivesse pensando em como chegar a uma mina de ouro. Levantou da cadeira, e com a voz animada, falou:
— Apenas tive uma ideia de milhões! Irei buscar um grupo agora mesmo! — Não perdeu mais tempo, saiu correndo da sala.
Logo após sair, outra pessoa entrou. De cabelos brancos com os dois irmãos, mas sem as mechas azuis. Tinha uma face mais androgênica, a maioria das pessoas ficariam confusas em determinar o gênero da pessoa. Se era homem, mulher ou nenhum dos dois. Mas o que chamava a atenção era a arma que tinha em suas costas: um rifle de precisão, e deixava claro para todos que olhavam que se tratava de uma arma slinger. Atlantis não ficou intimidado, pelo contrário, deu um sorriso ao ver ela entrando, e com a voz calma e mais bem humorada, disse:
— Agni, e então?
— O capitão disse que chegaremos em breve. — Sua voz, por outro lado, era um pouco mais fina e feminina — Já deixei suas coisas prontas de antemão.
— Obrigado. Quer um café?
— Ah… Não… Obrigada. — Agni se retraiu um pouco. Mas logo em seguida se aproximou, ficando ao lado de Atlantis. — Vi a Senhorita Émile passando, sorridente e saltitante. O que ocorreu?
— Não sei dizer. Apenas falei que ela ficaria responsável por contratar o próprio grupo de mercenários… Uma hora ela estava completamente contra, aí do nada… Bom, você viu. Mas não importa, o bom humor dela geralmente dá bons frutos.
— Sim… Mas tem certeza que ela está pronta para isso? Se ela contratar alguém de más intenções…
— Não se preocupe. Ela é inexperiente, mas não é burra… às vezes. Vai ficar tudo bem. — Pegou seu café e tomou mais um gole. — Minha verdadeira preocupação é com a conversa diplomática.
— Imagino, há um imenso peso sobre o senhor. Deve ser um pouco angustiante.
— Quando eu fiz aquela declaração dizendo estar disposto a conversar, confesso que achei que ele não iria aceitar, principalmente depois daquele discurso que ele deu. — Tomou mais um gole — Mas ele aceitou. Então, ele deve ter algo a negociar. Eu estudei um pouco sobre as estratégias diplomáticas de Roma, Império Mongol, Império Britânico e dos Estados Unidos. Mas como eu disse para Émile, o estudo apenas te leva a um certo ponto…
Agni apenas confirmou com a cabeça, sem saber exatamente o que responder. Pensou um pouco, e disse:
— O que tornava a diplomacia desses impérios fortes era que eles sempre estavam prontos para qualquer resposta. Devemos estar prontos também, mesmo para o pior dos casos. Assim como nossos antecessores estavam quando chegaram nesse planeta.
— Não se preocupe, eu tomei medidas. Não vou deixar uma guerra acontecer. Uma perdida, pelo menos. — Cruzou os braços, manteve a cara firme por um segundo, apenas para aliviar quando lembrou de algo — Agora é esperar para ver quem Émile vai escolher.
A página já tinha recarregado três vezes. Émile já estava ficando um pouco cansada disso tudo. Sabia que a internet não seria a mais estável quando estivesse em alto-lago, mas, se aquele navio era o melhor e mais luxuoso de Orfenos, tinha medo do sinal de internet nos navios mais comuns.
— Pelo menos parece ter estabilizado — comentou. Mexeu o mouse e foi descendo a barra do site. A lista de grupos de gunslingers era… um pouco decepcionante. — Como que pode se chamar de grupo se só tem uma pessoa nele? Será que eu contrato vários? Não, fica sem charme… Preciso de algo extravagante, picante! Com um carisma nato…
Desceu mais um pouco. O filtro estava sendo na base das avaliações, mas por enquanto, os mais bem avaliados não chamavam atenção. Os nomes eram genéricos, chatos. Pareciam ser apenas isso: mercenários de cara fechada que só fazem o que são mandados e pronto.
Chegou a três estrelas. Nada.
Desceu um pouco mais para as duas estrelas, só viu as coisas mais estranhas possíveis, o suficiente para querer ficar longe.
E então desceu para uma estrela, onde encontrou algo surpreendente.
— Caramba… “Carreta Fogueteira”! Existe faz uma hora e já tem sessenta avaliações de uma estrela, pensa num hate… — Estava prestes a descer mais um pouco, até subitamente parar. — Espera, o nome não me é estranho.
Abriu o seu celular, entrou no aplicativo do Actua e foi nos trendings topics, então, tudo fez sentido.
— Ah, é! Esse é o tal grupo da cancelada do momento. — Colocou a mão no queixo, estava um tanto fascinada com o que estava vendo. Eram dezenas, não, centenas de comentários. E se isso era apenas em um post, imagina quantas visualizações um stories disso pegaria? Quantos seguidores surgiram apenas para ver a jornada da tão odiosa Baret e sua Carreta?
Mesmo com os comentários de ódio, era inegável que era uma mina de ouro, um entretenimento bruto que poderia ser refinado em algo muito acima das expectativas de qualquer pessoa.
— É isso que eu estou procurando!
Não demorou mais que um segundo para selecionar a Carreta como um grupo desejado a fazer contrato. Apenas enviou uma única mensagem:
“Encontre-me no Hotel Vancouver em 4 horas para fazermos negócios”.
Em menos de um minuto, o site enviou uma notificação:
“Deu match!”
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