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    Siegfried se escondeu atrás dos muros de pedra destruídos, quando a patrulha passou por ele. A sua pele estremeceu com a chuva que castigava a noite e ele precisou abrir e fechar as mãos dormentes algumas vezes para fazer o sangue voltar a circular. Mas manteve a sua posição.

    A fortaleza não era mais que um apanhado de pedras enegrecidas encobertas por musgo. Os muros haviam caído há muito tempo, com apenas algumas partes ainda de pé. Partes não muito maiores do que uma criança; pequenas demais para servirem como defesa contra invasores, mas grandes o bastante para um jovem mercenário se manter escondido — enquanto permanecesse agachado.

    Um relâmpago iluminou o céu e o rapaz pôde ver.

    Um pelotão de soldados estava em forma no centro do antigo pátio. Sujeitos aos rigores da noite, permaneceram imóveis, com as espadas de ferro enferrujado em punhos e cotas de malha como armaduras. Não se moveram para a chuva fria que desabava sobre eles. Não se moveram para o vento cortante que atingiu a nuca do mercenário como mil agulhas. Não se moveram quando um trovão atingiu o topo da torre de pedra atrás deles.

    E não se moveriam até que recebessem suas ordens.

    Afinal, os mortos não sentem. Enquanto fidalgos comuns precisavam convocar camponeses para suas guerras, o Rei Negro ia mais além. Ele os tirava do seu sono eterno para lutar em seu nome.

    Siegfried olhou mais de perto. Alguns dos soldados desmortos ainda vestiam trapos com os quais foram sepultados; túnicas velhas, calças de lã e… Algodão. Nem mesmo os nobres estavam além da sua convocação.

    Em alguns casos, até mesmo a causa da morte ficava evidente. Alguns estavam terrivelmente queimados, com a pele derretida colada aos ossos e crânios deformados de maneiras que o rapaz já estava bem familiarizado; alguns meio afundados por golpes de maça, outros por cascos de cavalos e até pedregulhos. Havia muitas formas de se esmagar a cabeça de um homem. Todas bem características.

    Se fosse um exército de verdade ocupando a região, árvores já teriam sido derrubadas e defesas teriam sido montadas. Mas os mortos nada constroem.

    Desprovidos de qualquer sentido ou consciência, além da completa obediência às vontades dos seus mestres, eles se mantiveram em forma de maneira impecável. Organizados, imóveis e silenciosos. Apenas a espera de suas ordens.

    O jovem sorriu. Não era muito diferente do que o seu comandante esperava dele ou dos seus companheiros. A bem da verdade, achou que o capitão Eradan teria apenas coisas boas a dizer se os visse agora.

    “Vê como eles mantêm a formação? E que bela formação. Muito diferente de vocês vermes encardidos que não conseguem passar cinco segundos em forma sem reclamar de como os seus pezinhos de moça doem. É por isso que estamos perdendo a guerra!”

    Mas nem todos os desmortos estavam imóveis. Siegfried sabia que aquele era apenas o pelotão de infantaria principal. Seu trabalho era avançar pelo campo de batalha e lavar o chão com o sangue dos vivos. Quando não estavam em batalha, esse era o seu estado natural.

    Mas não era apenas de assassinos que se fazia um exército.

    As sentinelas patrulhavam a fortaleza em duplas, caminhando ininterruptamente pelos arredores. Outra vantagem dos soldados mortos-vivos, podiam estar mortos, mas não faziam corpo mole.

    Ainda assim, o incrível exército de monstros do Rei Negro, com a sua obediência cega, vigor infinito e incrível capacidade de se manter em forma por dias a fio, também tinha uma fraqueza.

    O mercenário estava muito longe de ser um mestre assassino, e mesmo sem uma armadura para fazer barulho, estava ainda mais longe de ser furtivo. Por sorte, os esqueletos não enxergavam muito bem; talvez pela completa ausência de olhos… Vai entender. Tanto a chuva como a noite densa os deixava praticamente cegos e surdos. Siegfried podia muito bem caminhar até um deles, e ele provavelmente só o notaria quando a sua espada já estivesse a meio caminho de cortar sua cabeça.

    Mas isso pouco bem lhe faria. Logo depois teria de enfrentar uma multidão cinquenta vezes maior e mais atenta aos arredores. Pronta para descer as suas espadas em qualquer coisa com mais carne do que eles.

    Não. O seu objetivo era outro.

    — Achei.

    Do outro lado do acampamento, o rapaz avistou as sentinelas que faziam a vigia nas duas pequenas torres que ainda se mantinham de pé. A única coisa bloqueando o avanço do seu grupamento.

    Fortalezas tinham um propósito. Elas não eram erguidas em qualquer lugar e as vantagens do terreno permaneciam, mesmo muito depois de sua queda. E quem construiu aquela, sabia muito bem o que estava fazendo.

    Os seus muros podiam ter sido derrubados além da restauração, cinco das suas sete torres de vigia também estavam para lá de qualquer utilidade, e a única construção que ainda se mantinha firme era a pequena torre de dois andares no centro das ruínas, mas a estrutura fora construída numa longa clareira, escondida no meio de uma floresta densa.

    Em seu auge, deve ter sido bem eficiente. Algumas armadilhas e patrulheiros posicionados na mata poderiam causar belos estragos a qualquer exército que se aproximasse. E quando os sobreviventes chegassem do outro lado, encontrariam apenas uma grande área de vegetação rasteira, desprovida de qualquer cobertura contra os arqueiros posicionados na fortaleza, que teriam um caminho livre para abater quantos inimigos quisessem, antes que os cavaleiros de prontidão atrás dos muros se fizessem necessários.

    Os desmortos não tinham patrulhas na floresta, nem armadilhas, ou muros, mas tinham mais soldados. Soldados do melhor tipo. Soldados que seguiam ordens sem questionar. Soldados que não sentiam medo. Soldados que não caiam no chão gemendo de dor quando enfiavam uma espada afiada em suas entranhas — a maioria nem tinha entranhas.

    A única esperança era um ataque surpresa. Um grupo de infantaria que pudesse se lançar contra os inimigos antes que o seu comandante tivesse tempo de organizá-los. O caos era a esperança. Mas isso também era impossível; a menos que algum mercenário maltrapilho e louco o bastante matasse as sentinelas antes da investida.

    Ele precisava agir rápido.

    Então apoiou a mão na pedra molhada e ergueu a cabeça para poder enxergar. As sentinelas estavam muito distantes e olhavam para o lado certo; bem em direção ao acampamento da sua seção.

    A tempestade fornecia cobertura, mas também o deixava mais lento e o caminho era longo. Teria de atravessar até o lado oposto da fortaleza, passando bem no meio do pelotão de soldados mortos-vivos. E as patrulhas não interrompiam seus deveres nem por um instante.

    Siegfried olhou ao redor. Era mais seguro dar a volta e atravessar pela floresta oposta, mas isso iria demorar muito.

    Estavam bem no centro da clareira. Ele teria de voltar para a floresta e caminhar por vários quilômetros com a lama prendendo seus pés como grilhões de ferro. Olhou então para o céu. Ainda estava escuro, muito escuro. Mas isso significava apenas que a noite estava em seu auge; quando chegasse do outro lado, já estaria perto de amanhecer e os inimigos poderiam notá-lo com mais facilidade.

    Ele não tinha tempo.

    Engoliu em seco e respirou fundo. Teria de se mover rápido. Hesitação era morte.

    “Rápido e baixo. Rápido e baixo. Rápido e baixo”, repetiu para si mesmo, como um mantra.

    Um relâmpago iluminou as ruínas e foi quando viu.

    Um vulto na escuridão teve a mesma ideia que o rapaz, porém mais ousado. Durou apenas um instante, mas não restavam dúvidas.

    Alguém invadiu a torre do comandante.

    Mas quem?

    Lembrou então do prazo. O capitão havia deixado claro a importância da sua missão. Não tinham mais suprimentos para se manter naquela posição. O ataque teria de ser amanhã. Ou não haveria ataque.

    Será que eles enviaram outro sabotador?

    Não. Aquele vulto não foi atrás das sentinelas. Seu alvo era a torre. Isso poderia arruinar tudo. Fosse quem fosse, se o capturassem, entrariam em alerta e aumentariam as patrulhas; ele nunca chegaria até às sentinelas.

    O mercenário olhou para os vigias, e então para a torre do comandante. Voltou a olhar para o seu alvo e praguejou, antes de correr atrás do vulto. Por sorte, os patrulheiros estavam longe e a torre perto, então não teve dificuldades em cruzar o acampamento.

    A estrutura era feita de pedra com suportes de madeira. Ao contrário das outras construções, se mantinha firme; claramente os pedreiros deram atenção especial a ela. Não precisava ser um mestre estrategista para entender o motivo; aquela era, antes e agora, a residência de quem quer que controlasse a fortaleza.

    Muros poderiam tombar, soldados poderiam perder suas vidas e um cerco poderia ser montado ao seu redor, mas aquela torre havia sido feita para persistir. E ela assim fazia.

    Ele abriu a porta de madeira e uma rajada de luz atacou seus olhos. O calor das tochas abraçou seu corpo, afastando o frio da tempestade que açoitava a noite e permitindo ao mercenário um momento de alívio, até que sentiu a sua carne se romper.

    O calor acolhedor da torre se foi. Em seu lugar, tudo que sentiu foi a lâmina gelada que rasgou a sua túnica de lã e abriu seu peito, fazendo o sangue escorrer e se misturar com a água da chuva que deixava suas roupas pesadas.

    O rapaz se afastou, erguendo o escudo e a espada, enquanto seus olhos se adaptavam à claridade.

    — Você não tem carne demais pra um soldado esqueleto? — debochou a garota encapuzada, com uma adaga em cada mão.

    Siegfried piscou algumas vezes e finalmente pôde enxergar. Ela não devia ter mais do que quatorze anos, era apenas uma criança; não que ele fosse muito mais adulto com seus dezesseis anos. Vestia um colete e calças justas, ambos de couro preto, por baixo de um manto de lã negra. A pouca pele desnuda da garota revelou um tom de ébano pouco comum em um reino onde as nuvens negras de tempestade pareciam afugentar o sol durante o ano inteiro.

    Quando seu olhar cruzou com o da jovem, ele se perdeu em meio ao azul vibrante. Mesmo com o rosto envolto pelas sombras do capuz, brilhavam como duas estrelas gêmeas na escuridão.

    — Você é uma criança.

    — É mesmo?! — Ela abaixou as adagas e abriu a guarda, enquanto olhava para o próprio corpo. — Ora, isso explica muita coisa. Obrigada por compartilhar comigo tamanha sabedoria.

    — Temos que ir. Antes que alguém–

    O som de uma bandeja de metal caindo no chão de madeira chamou a atenção dos dois para a ponta oposta do corredor.

    Um cavaleiro de armadura completa havia acabado de sair por uma porta. Levou um momento para os três avaliarem suas opções, e o cavaleiro foi mais rápido; ele correu até a parede próxima e puxou uma alavanca, ativando um mecanismo oculto por entre as paredes, que rangiam conforme a engenhoca iniciava uma reação em cadeia.

    Nem Siegfried, nem a garota esperaram para ver o que aconteceria. Ambos correram em direção ao inimigo.

    A pequena foi mais rápida. Era ágil como uma ratinha devia ser, mas também feroz. Antes que o adversário tivesse tempo de sacar sua lâmina, ela saltou e enfiou as adagas pelas frestas da armadura; entre os olhos e a garganta.

    O cavaleiro abandonou o cabo da espada e levou as mãos ao pescoço, raspando o metal com os dedos enluvados, na esperança de alcançar o corte. Cambaleou para trás e tossiu sangue quando se engasgou tentando puxar o ar pela boca.

    Um erro.

    Siegfried passou por baixo das grades de ferro que caiam do teto, apenas alguns instantes antes delas se fecharem, transformando o corredor em uma jaula. Infelizmente para o cavaleiro ferido, o jovem mercenário estava do lado errado das grades.

    A sua lâmina deslizou pelo ar suavemente e os seus olhos cruzaram com os da sua vítima, que brilharam, não de uma forma sobrenatural como os da garota. Não. Era um brilho que o rapaz conhecia muito bem.

    Ele estava chorando.

    Em seus últimos momentos, quando a esperança morreu e o seu destino se tornou tão claro quanto o dia, o covarde chorou.

    Eles sempre choram.

    O aço afiado atravessou o gorjal mal equipado e dilacerou a carne macia por baixo do metal. O impacto jogou seu corpo para o lado, batendo na parede de pedra, enquanto os músculos do pescoço se rompiam e a cabeça deslizava para baixo, rolando pelo chão com um rastro de sangue.

    Com a sua morte, veio também a calma, e Siegfried pôde dar uma boa olhada no cadáver. No calor do momento e vendo a armadura de batalha, pensou se tratar de um cavaleiro, mas era pequeno e magro demais para ser um adulto. E a forma como reagiu…

    “Um escudeiro.”

    Olhou então para a bandeja que o rapaz derrubou quando os viu; pão e vinho. O escudeiro do comandante. As coisas tinham acabado de piorar.

    — Ah, agora eu entendi pra que servem os capacetes. — A menina sorriu. — É pra não machucar a cabeça quando ela cair no chão, né?!

    — …

    — Que foi? Muito cedo? Bom, tanto faz, eu tô meio ocupada agora, então… A gente se vê por aí. Ou não.

    — Espera! — Siegfried a agarrou pelo braço no momento em que ela se virou, pronta para subir as escadas até o próximo andar. Até o comandante.

    — Me solta!

    — Você enlouqueceu? O que acha que vai encontrar lá em cima?

    — Um ladrão sujo e alguns cadáveres. Agora me solta, ou vou te ajudar a entrar pro exército dos mortos. — Ela sacudiu o braço e escorregou pelos dedos molhados do mercenário, subindo as escadas dois degraus de cada vez.

    — Merda!

    Amaldiçoando a si mesmo, foi atrás dela.

    A encontrou já no corredor, se aproximando de uma porta de madeira, e se apressou em agarrá-la antes que fizesse alguma besteira. Talvez rápido demais.

    A lama e o sangue do escudeiro morto deixaram as suas botas escorregadias. Quando alcançou o braço da jovem e tencionou parar, seu corpo não obedeceu, ao invés disso, deslizou pelo chão de madeira desgastada.

    A porta quebrou com o seu peso e os dois caíram dentro dos aposentos.

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