Martim desabou na cadeira mais próxima, o suor frio escorrendo pelas têmporas. Fechou os olhos e respirou fundo, tentando acalmar seu estômago, que estava prestes a expelir todo o café da manhã. Quando a sensação ruim finalmente passou, abriu os olhos e contemplou a cena ao seu redor.
    O barulho voltou a aumentar. Em contraste com o silêncio sepulcral de poucos segundos atrás, agora parecia haver milhares de pessoas falando ao mesmo tempo, tamanha era a gritaria produzida pelos soldados.
    A maioria exclamava descrédito e assombro, alternando entre comentários que diziam que algo de extraordinário havia ocorrido e xingamentos e ofensas ao comportamento da capitã. Martim ouviu um choro alto. Era Belchior, ao lado do corpo de um dos soldados mortos:
    — Ele era meu primo! Maldita, era meu primo! — dizia, aos prantos, enquanto socava levemente o peito do parente falecido. Ele morreu alvejado por cinco flechas que atravessaram seu peito e barriga.
    Martim aproximou-se de Carlos. O amigo estava muito estranho. Suas pernas e braços tremiam, e sua boca estava meio aberta. Martim perguntou:
    — Carlos, está tudo bem?
    — S-sim, acho q-que s-sim — gaguejou.
    — Venha, sente-se um pouco. — Era Tomás, que se aproximava com uma cadeira.
    Carlos sentou-se e começou a balbuciar:
    — Ela… e-ela… m-matou… matou… ela m…
    Os colegas entreolharam-se, preocupados. Martim tentou acalmar o amigo:
    — Calma, você está bem. Está tudo bem agora.
    — Mas… todos eles eram? C-c… Eram mesmo c-cons… conspiradores?
    — Eu não sei — respondeu Tomás. — Eu não conhecia direito esses caras. Mas mesmo que fossem, como ela saberia?
    Carlos arregalou os olhos e disse, assustado:
    — Ela sentiu meu cheiro. Eu percebi, e-ela realmente sentiu meu cheiro. Encostou em mim, bem pertinho… E s-sentiu o cheiro deles também. E-ela s-sabia… e-ela…
    — Bobagem! — Ouviram uma voz vinda de trás. Era Bento, um soldado de quem Martim não gostava muito, mas que estava sempre perto dele e de seu grupo de amigos próximos. Ele chegava para conversar naquele momento, com a cara amarrada.
    — Fala, Bento — disse Martim, sem muita disposição para aturar a conversa mole do colega.
    Bento tinha um nariz grande e um pouco torto, em contraste com a fina boca que era perfeitamente simétrica. Os olhos verde-escuros pareciam brilhar em meio à face pálida emoldurada pelos cabelos negros e levemente encaracolados. Seu corpo era musculoso e ele tinha estatura baixa, dando-lhe a aparência de alguém extremamente forte. Ele continuou:
    — Usem a cabeça! Ela deve ter perguntado a alguém quem eram os soldados que estavam na lista e memorizou seus rostos. Aí fez esse teatrinho só para impressionar a gente.
    — Teatrinho? — perguntou Ricardo, com um sorriso irônico. — Acho que você está sendo meio modesto nas palavras, meu caro.
    — Chamem do que quiserem, teatro, encenação, mágica… Foi um truque para assustar os fracos. — Apontou o nariz para Carlos, que ainda estampava horror no rosto.
    — E você não se assustou, não? — perguntou Carlos. — Se não, parabéns, acho que foi o único.
    — Nem um pouco! Eu logo percebi a enganação e sabia exatamente quem estaria caído no chão. E eu sabia que não seria um deles — disse, de queixo erguido.
    Os amigos se entreolharam, e Martim percebeu a confusão nos olhos dos colegas. Bento continuou a reclamação:
    — E ela nem teve coragem para fazer tudo sozinha, a covardona. Por isso trouxe malditos arqueiros para terminar o seu trabalho sujo. Depois de matar um ou dois, ela sabia que os outros iriam se entregar.
    A teoria de Bento fazia sentido. E se de fato era verdade, foi uma excelente tática para ganhar o respeito daqueles homens e abafar essa tal conspiração. Se na cerimônia do início da manhã todos eram contrários à ideia de serem liderados por Maria, depois dos combates e da demonstração de minutos atrás a grande maioria iria pensar muito bem antes de desrespeitar sua nova líder.
    — E tem outra coisa… — continuou Bento. — Ela não matou todos os conspiradores. Vocês sabem que tem outros aqui dentro.
    — Eu nem sabia que tinha uma conspiração! — disse Martim.
    Bento deu um sorriso maldoso para Martim e respondeu:
    — É claro que não sabia! Ninguém seria louco de confiar em você.
    Martim cerrou os punhos, mas não disse nada. Bento continuou:
    — Só estou dizendo que ela não tem poderes mágicos. Se tivesse, teria eliminado pelo menos uma dúzia, e não cinco.
    — Mas então os cinco que morreram eram mesmo traidores? — perguntou Tomás.
    Bento sorriu ao responder:
    — Traidores? Não sei… depende do ponto de vista. Eu diria que eram patriotas!
    — Shh, Bento! — disse Carlos. — Pare de dizer essas coisas ou vai nos causar problemas! Vou embora daqui.
    — Vou com você, Carlos! — concordou Martim. Maria podia não ter um olfato mágico, mas era esperta, e um tanto maluca. Era uma combinação perigosa.
    — Isso, vão embora, fujam com medo da mulherzinha! Grandes soldados vocês são!
    Neste momento, outros homens se aproximaram e Bento ficou quieto. Silas, um soldado troncudo e com uma enorme cicatriz na cara, disse, olhando diretamente para Martim:
    — O que está acontecendo aqui? Está querendo causar confusão, fracote?
    — Fica na sua, Silas! — respondeu Martim.
    — É melhor VOCÊ ficar na sua, moleque! Já não basta tudo o que causou por aqui?
    Martim olhou para ele e para os soldados que se juntavam ao seu lado. Pelo menos cinco homens o encaravam de volta, de punhos apertados e dentes à mostra.
    — Vamos, Martim! — disse Carlos, no ouvido do amigo. — Sem briga, vamos embora daqui!
    Enquanto saía da sala, Martim viu entrarem alguns homens carregando grandes caixões de madeira. Vieram retirar os corpos, provavelmente a mando da capitã ou do secretário da rainha. Havia cinco caixões, exatamente a quantidade de mortos ali dentro. Fez o sinal da cruz e continuou seu caminho em silêncio, tentando lembrar se já não tinha visto esses mesmos caixões mais cedo, antes de entrar na sala.


    O resto do dia transcorreu muito mais normalmente, para alívio de Martim. Como estava de folga, aproveitou para fazer um passeio pela cidade. Além de se distrair um pouco das fortes emoções daquela manhã, ficaria longe de Bento, Silas e da grande maioria da guarda que o desprezava.
    Fez algumas compras, principalmente um pouco de comida. Não planejava retornar ao salão da guarda naquele dia para as refeições, pois não achou que conseguiria retê-las no estômago. Além disso, queria evitar mais confusões e brigas com os colegas, que certamente estariam loucos para provocá-las.
    Também comprou um novo par de botas, pois achava que as atuais tinham sido arruinadas pelo estrume de cavalo. Tentaria limpá-las posteriormente, mas não queria correr o risco de ser obrigado a usar botas fedorentas o tempo todo.
    No final da tarde, retornou à caserna e foi direto para o dormitório. No caminho, preparou-se para dispensar qualquer um que aparecesse, pois não queria conversar. Não precisou se esforçar, pois ninguém estava com humor para bate-papo, de modo que chegou ao seu destino sem ser incomodado. Lavou-se no banheiro coletivo e foi para seu alojamento descansar um pouco antes de fazer a última refeição. Dormiu tão logo deitou a cabeça na cama.


    No dia seguinte, como de costume, Martim acordou bem cedo, antes de todo mundo. Lavou-se e foi até o salão da guarda tomar seu desjejum. Ele gostava de comer no salão vazio, assim não precisava se preocupar com o ambiente hostil e as caras feias. Havia, é claro, vantagens de cunho mais prático. Não precisava enfrentar filas para pegar sua porção do café da manhã, nem ficar procurando um lugar vago nas mesas. Também gostava de bater papo com o pessoal da cozinha e da limpeza, que era muito mais amigável com ele do que a maioria de seus colegas soldados.
    A primeira coisa que reparou foi que o salão estava mais limpo do que o normal, o que indicava que a equipe de limpeza trabalhou em dobro para desfazer os efeitos do banho de sangue sofrido pelo chão de pedra.
    Outro reflexo dos acontecimentos do dia anterior eram as conversas. Certamente o assunto do dia entre os soldados seria a nova capitã. Mas enquanto estes não acordavam, os serviçais também não falavam de outra coisa. Teorias de conspirações e o temperamento quente da mulher que agora trabalhava ali era só o que Martim conseguia ouvir. Decidiu retomar sua rotina normal, e por isso evitaria participar de qualquer conversa dessa natureza, pelo menos até ter certeza de que não corria perigo. Com relação à capitã, seria o mais obediente dos soldados, e ficaria o mais longe possível dela.
    Assim que os colegas começaram a chegar no recinto, Martim, que já tinha terminado de comer, levantou-se e foi até o lado de fora do castelo. Havia ali uma pequena tenda com roupas leves para os soldados fazerem seu treinamento diário. Novamente, por ser o primeiro, trocou-se sem dificuldade e logo saiu para sua corrida obrigatória.
    O treinamento durava pouco menos de uma hora e consistia de três atividades: primeiro havia uma corrida leve de três quilômetros, que podia ser completada dando-se duas voltas pelo perímetro do castelo. Martim não gostava muito dessa atividade e quase sempre terminava o percurso ofegante e cansado.
    A segunda atividade era o treinamento com pesos. Cada homem precisava carregar pedras, puxando-as com cordas, ou carregar pesados sacos de areia nas costas, repetindo os exercícios ao longo de uma pista comprida. Cada saco pesava cerca de quinze quilos, e havia pedras que pesavam até trinta quilos. Devido à sua grande força muscular, Martim não achava essa atividade muito difícil. Conseguia facilmente completar o percurso com ampla vantagem sobre os colegas.
    A terceira atividade, que era a preferida de Martim — e de quase todos os soldados — era o treino com armas. A cada dia uma arma diferente deveria ser praticada: espada curta, espada longa, arco, lança e maça. Ele preferia a espada curta, mas naquele dia deveria praticar com a maça. O treinamento consistia em praticar os movimentos básicos de cada arma, primeiro sozinho, e depois golpeando bonecos feitos de palha ou de madeira.
    Algumas vezes, a depender da arma, eles praticavam em duplas, e nessa ocasião deveriam também portar um escudo para se defender. Martim se esforçava para formar dupla com amigos ou pessoas mais próximas a ele. Caso tivesse que parear com um de seus desafetos — e estes eram muitos —, o treino quase sempre se transformava em uma luta real, com braços ou pernas machucados.
    Enquanto praticava com a maça e golpeava um pesado boneco de madeira, os soldados começaram a aparecer. Martim reconheceu as vozes de Bento e Belchior, que trocavam de roupa dentro da tenda enquanto falavam em voz alta:
    — Ela nem quis me ouvir, não pediu desculpas, nada. Nada! — Era Belchior.
    — Mas o que foi que você falou para ela? — Bento perguntou.
    — Eu tentei dizer que ela assassinou meu primo sem dar nenhuma chance para ele se defender. Disse que não era justo, mas ela nem deu bola. Continuou acusando-o.
    — E o que ela disse?
    — Ah, ela falou para eu pedir uma audiência com a rainha, e que ela explicaria e me mostraria todas as provas.
    — Sei.
    — E ela me perguntou se eu não sabia mesmo que ele estava conspirando. Ora… — soltou um riso — se eu sabia? O que ela queria que eu respondesse?
    Martim não ouviu Bento responder. Foi Belchior quem continuou:
    — E… ela também disse que… se ele foi morto pelas flechas, foi por que ele sabia que era culpado e tentou fugir. Os três que tentaram fugir, na verdade, tinham praticamente confessado sua culpa.
    — É, isso a gente tem que admitir — respondeu Bento. — E você vai falar com a rainha?
    — Vou, é claro! Ela vai ter que me mostrar essas tais provas!
    — Hunf! — resmungou Bento. — Perda de tempo! Boa sorte com isso!
    Depois disso, saíram da tenda e começaram sua corrida.
    Depois do treino, Martim voltou ao castelo. Um dia típico de um soldado da guarda real dividia-se em rondas e tarefas diversas, como carregar suprimentos de um local para outro, receber encomendas ou ajudar outros serviçais. Havia ainda os horários de descanso, que os soldados passavam conversando, jogando ou fazendo um treino livre com armas de sua preferência. Foi numa dessas folgas que viu a capitã pela primeira vez.
    Ela vestia a mesma armadura do dia anterior. Foi obviamente limpa, pois não exibia manchas de sangue ou lama, mas usava calças e blusa marrons ao invés de brancas, o que a tornava mais discreta. Ainda usava o elmo que cobria todo o rosto.
    Não ficou ali por muito tempo. Estava acompanhada do secretário da rainha e de outras pessoas que Martim não conhecia. Entrou pelo salão, cumprimentou alguns soldados, que responderam com uma saudação bastante formal, conversou com seus acompanhantes sobre algum assunto que Martim não ouviu e foi embora.
    De fato, nos dias seguintes, quase não se via a capitã, exceto nas raras ocasiões em que ela aparecia para observar ou fazer perguntas, normalmente para o secretário, mas também para alguns soldados próximos. Estava interessada nas atividades e rotinas diárias e não deu nenhuma ordem específica ou tomou alguma atitude que fizesse alguma diferença no dia-a-dia da guarda. Isso gerou um alívio geral, pois todos temiam grandes mudanças assim que a rainha decidiu trocar o comando do batalhão.
    Mas isso durou pouco tempo. Cerca de duas semanas após observações e questionamentos, veio a primeira ordem da capitã. O treinamento físico diário — a corrida e o treinamento com pesos, especificamente — deveria ser dobrado. Ao invés de duas, os homens deveriam agora correr quatro voltas ao redor do castelo, e carregar pesos pelo dobro do tempo. A prática com armas não seria alterada.
    O anúncio foi feito pela própria capitã, que reuniu os homens no fim do dia e explicou os motivos:
    — Uma corrida de apenas um quarto de hora não serve para melhorar o seu condicionamento, assim como o treinamento com pesos, que deve ser um pouco mais longo para dar tempo de os músculos ganharem força. Sei que todos aqui já tem uma excelente forma física, mas somos da elite, e devemos sempre estar um grau acima do restante do exército. Isso pode fazer uma grande diferença na batalha.
    No momento do anúncio, ninguém ousou falar nada, mas assim que a capitã deixou a sala a revolta se fez presente. Xingamentos foram ditos em profusão, e praticamente todos os soldados foram dormir com uma dose a mais de ódio por sua líder. Martim também não gostou, mas evitou reclamar em voz alta. Seguiria seu plano de ser um soldado obediente. Iria treinar dobrado, e talvez melhorar sua saúde. E ficaria, assim esperava, longe da atenção de Maria.

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